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3 A CAUSA E O SENTIDO DA MORTE DE JESUS

3.4 Cruz e encarnação

A relação entre cruz e encarnação é tema pertinente na reflexão de importantes teólogos. Se, permanentemente colocarmos a questão sobre quem é Jesus de Nazaré e o que significa para a humanidade e, especificamente, que resposta ele dá ao mal e ao sofrimento, teremos acesso a uma imagem de Deus plenamente comprometido com os que sofrem, diferentemente da imagem tradicional do Jesus, fortemente marcada por sua divindade, que o torna estranho aos problemas humanos (como já vimos e insistimos, porque é crucial para o nosso trabalho). E essa imagem a partir de uma teologia renovada da cruz repercute sobre a compreensão da encarnação do Logos.

Segundo Leonardo Boff, a cruz dá acesso à verdadeira humanidade de Jesus:

É na humanidade total e completa de Jesus que encontramos Deus. A reflexão sobre a morte e a cruz nos propicia a oportunidade de pensarmos radicalmente a humanidade de Jesus. Na medida em que acolhemos Jesus assim como os evangelhos, principalmente os sinóticos, no-lo pintam em sua vida carregada de conflitos, em sua via dolorosa, na proporção em que tomamos verdadeiramente a sério a encarnação como esvaziamento, sim, exinanição de Deus, nesta mesma proporção acolhemos a nós mesmos com toda nossa fragilidade e miséria, sem vergonha e humilhação. Esta senda teológica coloca-nos imediatamente no seguimento de Jesus de Nazaré, porque ele, primeiro, seguiu até o último passo o nosso próprio caminho humano.65

Para Gustavo Gutiérrez, o sofrimento e o abandono vividos por Jesus, por conta da humilhante e escandalosa condenação à morte na cruz, o levaram a demonstrar de modo mais radical sua intenção de solidarizar-se com toda a humanidade e com cada ser humano, numa profunda atitude de comunhão. Ao gritar seu abandono na cruz, com o Salmo 22, Jesus revela a solidão da pessoa que crê, sua queixa e esperança, faz a experiência de que o sofrimento não é uma situação ideal e sim a aspiração pela vida.

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Cf. MOLTMANN, J. Trindade e Reino de Deus. op. cit., p. 162.

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O fato é que Jesus o faz seu e, cravado na cruz, apresenta ao Pai a dor e o abandono de toda a humanidade. Esta profunda comunhão com o sofrimento dos seres humanos o faz entrar até o mais fundo da história, precisamente no momento em que sua vida está a ponto de terminar.66

Também para Jon Sobrino, a morte de Jesus foi conseqüência histórica de sua vida. E acrescenta que a cruz é resultado do plano de Deus de encarnar-se em uma situação histórica marcada pelo pecado:

Plano de Deus entendido como a autêntica encarnação de Deus. Se Deus se encarnou na história, se aceitou os mecanismos, as ambigüidades e as contradições da história, então a cruz revela a Deus não só em si mesmo, mas conjuntamente com o caminho histórico que leva Jesus à cruz. A teologia da cruz deve ser histórica, isto é, há de ver a cruz não como um arbitrário desígnio de Deus, mas como a conseqüência da opção primigênia de Deus: a encarnação. A cruz é conseqüência de uma encarnação situada em um mundo de pecado que se revela como poder contra o Deus de Jesus.67

As grandes definições cristológicas do Concílio de Nicéia, no século IV trataram, no fundo, dos problemas Deus e o sofrimento. A controvérsia centralizou-se no Arianismo. Ário defendeu que o Logos não seria verdadeiramente Deus. Não seria igual ao Pai. Pelo contrário, o Logos fora criado do nada pelo Pai como a primeira e a mais excelsa criatura, a única realidade criada feita diretamente por Deus. A Palavra pode ser chamada Filho e Deus também (“e a Palavra era Deus” Jo 1,1), porém, não é da mesma substância do Pai. Mesmo existindo antes de todas as criaturas, a Palavra teve um início de sua existência; houve um tempo em que ela não era. No curso devido, o Logos funcionou como o instrumento do resto da criação (“todas as coisas foram feitas por meio dele” Jo 1,3), enquanto Deus permanecia à distância do mundo. Na encarnação, a Palavra se fez carne por meio da união com um corpo humano. Nenhuma alma humana estava presente, pois seu lugar fora tomado pelo Logos. Assim, Jesus Cristo na compreensão ariana, é um ser intermediário, nem divino nem humano.68

Entre outras palavras, estas afirmações visam a negar a realidade da crucificação. Em

A fé em Jesus Cristo, Sobrino afirma que a razão pela qual Ário não aceitava a divindade de

Cristo era fundamentalmente o sofrimento de Jesus, o Logos encarnado. Bispos e teólogos do Concílio precisavam tomar posição sobre a relação entre Deus e o sofrimento. Era necessário pensar que Deus não só age em favor dos que sofrem, mas que se converteu num deles. É isto

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GUTIÉRREZ, G. Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente. Uma meditação sobre o livro de Jó. Petrópolis-RJ: Vozes, 1986, p. 160.

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SOBRINO, J. Jesus, o Liberador. p. 171. citado por SINIVALDO S. TAVARES. Cruz de Jesus e o

sofrimento no mundo. A contribuição da teologia latino-americana. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002, p. 73. 68

que está em jogo em Nicéia, na perspectiva das vítimas. Para Ário, Cristo não só não era Deus, mas não podia ser Deus devido às suas limitações e sofrimentos. O Concílio, porém, proclamou a divindade de Jesus Cristo e, desta forma, teve que pôr em relação, de algum modo, Deus e o sofrimento. Este é o fato fundamental que expressará algo específico da fé cristã:

Ao pôr em contato os dois termos Deus-sofrimento, o concílio de Nicéia nos situa ante as duas questões mais decisivas que se deram na história e na vida dos homens. E ao responder afirmativamente que se dá uma cópula entre ambos, põe em relevo o próprio nervo da fé cristã em tudo que tem de irrupção impensada e inesperada, que não se encaixa facilmente nos esforços explicativos nem nos desejos humanos e que é antes juízo e condenação destes.69

Por fidelidade aos textos do Novo Testamento, os padres conciliares aceitaram a

divindade de um Cristo sofredor. Deus e o sofrimento se convergem. Com o interesse

soteriológico, a partir das vítimas, pode-se afirmar que sem a afinidade não há salvação. Afinidade que chega ao nível mais angustiante do ser humano, onde a expectativa de salvação é mais necessária, ou seja, na experiência do sofrimento. Vale aqui a máxima da teologia grega: “O que não foi assumido não foi redimido”. A divindade, portanto, é afetada pelo sofrimento. Isto é fato salvífico. É escândalo para a razão e, num primeiro momento é desolador que o mistério, excesso de luz, se torne também um enigma, excesso de obscuridade. Esta relação Deus-Sofrimento deve ser mantida como condição de possibilidade para expressar a realidade última de Deus, tanto em seu conteúdo, Deus é amor, como em sua

formalidade, Deus é mistério. Em contraposição à teologia grega do Deus-impassível, se

afirma, implicitamente em Nicéia, que Deus é afetado pela realidade dos seres humanos. A proclamação da divindade de Jesus Cristo e de sua perfeita humanidade ensina, portanto, o que é ser Deus. Deus ama os seres humanos à maneira humana. Nesse sentido, diante do sofrimento humano na história, a forma mais eficaz de mostrar o inefável e inapreensível de Deus é simultanear em Deus transcendência e sofrimento.70

Se os nossos sofrimentos dizem respeito a Deus e o faz sofrer também, o que nos enche de esperança, porque experimentamos sua ausência e seu silêncio nas horas de dor? Andrés Torres Queiruga nos apresenta uma resposta.

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FAUS, G. Humanidad nueva. p. 447. Citado por SOBRINO, J. A fé em Jesus Cristo. Ensaio a partir das

vítimas. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 395. 70