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Nesse contexto, Lepargneur chama nossa atenção para o surpreendente progresso das ciências médicas e o enfraquecimento das referências religiosas que provocaram uma crescente valorização da vida biológica e do bem-estar saudável, chegando ao nível de um paganismo da absolutização da vida física. Saúde orgânica e mental, conjugada com juventude e força, significa uma vida física plenificada. Este domínio do corpo demonstra a centralização do eu no ser humano. Na medida em que a sociedade descarta a possibilidade de vida após a morte, confere à vida humana um valor absoluto, isto é, que não pode ser comparada ou referenciada por ou com algo equivalente e superior.

Neste contexto, a doença surge como uma ameaça à plenificação da vida; como realidade que condena o ser humano à inutilidade; como negação do eu; como inimiga a ser derrotada a todo custo, pois não se concebe felicidade sem saúde. Quando não existe mais

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Cf. ibid., p. 22-23.

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nada a fazer diante do seu poder mortal, a doença recebe um anestesiamento religioso que nada acrescenta ao pensamento secularizado. Religião funciona como ópio necessário nesta hora.39

3.1 O sentido biológico da doença

Do ponto de vista biológico, Lepargneur diz que a doença constitui uma ameaça ao ser humano, mas não se pode dizer que o estado de sítio que estabelece não tenha por finalidade e efeito normal proporcionar estímulo às forças vitais em proveito do próprio indivíduo sofredor. A doença grave provoca a questão: ser ou não ser? Repentinamente a luta contra a doença se torna prioridade. O ser humano, neste estado, percebe-se dispensável de suas atividades profissionais e outras ocupações. Isto proporcionará questionamentos cruciais sobre si mesmo.40 Fará descobrir que a pessoa em sua corporeidade, à qual se está ligado, que funda o eu de cada um, que é para cada um o sustentáculo da existência do mundo (e não apenas no mundo), não escapa à lei da morte. A regra abstrata jamais oprimiu alguém; a sua aplicação é que custa.41

A doença desvela os limites do ser humano. Força à humildade; deita o ser humano altivo e o faz mudar as perspectivas:

Coloca-o à mercê de seu ambiente, da piedade deste, de sua delicadeza, de seus cuidados, de seus esquecimentos, de sua pouca paciência, de sua brutalidade, de sua irrecusável atenção também; desse meio que não foi feito para os doentes que, entretanto, não podem dispensar.42

A doença proporciona condições privilegiadas para uma experiência da desapropriação de si mesmo. A pessoa ferida pela doença não se possui integralmente. O corpo se lhe escapa e sofre as influências que não são suas. Para o racionalista, a doença pode ser a hora da abertura ao irracional. No estado de doença se vive estranhos paradoxos: de um horizonte indefinidamente monótono se faz o caminho de uma nova evolução interior. Doença é

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Cf. LEPARGNEUR, H. O doente, a doença e a morte. Implicações sócio-culturais de enfermidade. Campinas-SP: Papirus, 1987, p. 187-188.

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Cf. LEPARGNEUR, H. Evangelho da dor. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 32. “A doença proporciona a dilação inesperada para forçar um espírito que se embotava a dar atenção às verdadeiras questões. Tempo de doença, tempo de decantação. Faça-se dele o uso que quiser, no final da revolta ou da purificação, a doença proporciona com a provação o sinistro lazer destinado à sua ruminação: o instrumento e seu modo de emprego. É a partir dessa conjunção da provação e das condições de imobilidade próprias à sua destilação na consciência que se elaboram os caracteres originais de uma psicologia de doente” (ibid., p. 33).

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Cf. ibid., p. 32-33.

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carência. Enriquece o ser humano pelo despojamento das máscaras e dos valores que sustentavam sua independência e que o alienavam. Com efeito, a doença não pode ser o irredutível inimigo defrontado no início. É preciso haver-se com ela quando se aproxima.43

3.2 Doença e sofrimento

A dor aponta para um incômodo físico, fisiológico até, que pode inexistir num sofrimento que, por sua vez, molesta a mente e perturba a emotividade, embora não haja separação absoluta no composto humano. Para Lepargneur, o sofrimento diz respeito à consciência reflexa da dor. É um incômodo que atormenta o ser humano consciente e que projeta na imaginação seu próximo futuro. No sofrimento existe um substrato que escapa à ciência e à técnica. Nem tudo o que diz o doente pode ser medido, verificado e medicado. Toda dor ou angústia confunde-se com solidão. Dor física não se compartilha, sofrimento sim. Entretanto, o que diz a pessoa em estado de dor ou de doença constitui o discurso mais relevante sobre o sofrimento. A pessoa em estado de doença e que sofre por isso, revela um quadro de maior gravidade.44

O sofrimento desafia a liberdade à procura de sentido. A perturbação pode vir de fora, mas quem sofre é sempre a pessoa. A atitude reflexiva da autoconsciência do sofrer norteará o sofrimento humano. É imperativa aqui a noção de pessoa, que é atingida na sua liberdade. Como ser capaz de desafiar, de se expor, de arriscar, de inovar, de comprometer-se no tempo e no espaço, significa que a pessoa é dotada de liberdade e não apenas de autoconsciência. É liberdade condicionada, porém, reflexiva e serve de pré-requisito para o agir ético. A pessoa se apresenta, portanto, como capacidade de opção refletida, motivada emocionalmente, mas também, idealmente, direcionada pela razão:

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Cf. ibid., p. 34: “Algumas palavras de Léon Bloy encontram em nossa memória uma nova profundidade: ‘Oh! Ela (doença) não mudou... Mas ela se assemelha ainda mais. À força de sofrer de tal forma conquistou a sua identidade...’ O coração do homem tem recantos que ainda não existem, e onde a dor penetra a fim de que sejam”.

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Cf. LEPARGNEUR, H. A liberdade da pessoa enfrenta o sofrimento. in: O mundo da saúde 29 (3/2005), p. 387. Acolhendo esta reflexão de Lepargneur, Edson Fernando de Almeida sublinha que a dor, de natureza absolutamente orgânica, estará destinada a fazer-se sofrimento na medida em que o ser humano a refere a outras experiências dolorosas passadas, presentes ou futuras. Neste sentido, a dor adquire uma dimensão psíquica, repercutindo ou aumentando em proporções diversas o universo de outras dores. Ver ALMEIDA, E. F. Do Viver apático ao Viver simpático. Sofrimento e morte. São Paulo: Loyola, 2006, p. 125.

No ser humano, a reação emocional, que brota dos sentidos e atinge o córtex cerebral via o tálamo, está potencialmente perpassada por uma motivação que ultrapassa a corporeidade e embréia sobre a misteriosa liberdade que aciona a vontade.45

Nosso autor considera que só o amor transcende o sofrimento. Há distinção entre transcender e suprimir um sofrimento pela erradicação de suas causas fisiológicas, ora por medicação interna, ora por resolver os desafios externos que o suscitaram. A dor que causa impacto interno na pessoa em estado de doença e a impulsiona para o sofrimento suscita diversas reações: o sujeito tende a se fechar na defensiva, recolhe suas antenas externas, pode chegar a desconfiar de um mundo do qual espera apenas ajuda, conforto, alívio, consolo, mas receia alguma piora; o interesse para o resto tende a se diluir, ainda que as preocupações pelas próprias responsabilidades familiares ou profissionais contribuam pesadamente ao desconforto interno.

À resposta já expressa do sentido procurado e cultivado temos que acrescentar o coroamento do amor, do amor do outro pelo outro (disponibilidade e atenção, mais do que desejo e desfrute), como a radical força centrifugada da saída de si, mesmo se não faz esquecer as próprias desventuras e padecimentos. Não se pode ignorar a potencial força terapêutica desta inervação. A experiência da vida, notadamente em seus momentos dolorosos, ajuda a formar a pessoa, a aprofundar a personalidade e seu auto-conhecimento. Isso nos é testemunhado até referente a Cristo: “Embora fosse filho, aprendeu, contudo, a

obediência pelo sofrimento” (Hb 5,8).46