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3 A CAUSA E O SENTIDO DA MORTE DE JESUS

3.2 Jesus no Getsêmani

Não compreendido, mensagem rejeitada, Jesus vai ficando sozinho. O povo quer outro tipo de messianismo, quer fazê-lo rei. Jesus está radicalmente decidido pelo Abbá-Reino. Muitos discípulos não andavam mais com ele (Jo 6,66). Chega a hora da grande angústia e tentação. Hora em que o Pai fica em silêncio, não responde ao clamor do Filho:

Ele saiu e, como de costume, dirigiu-se ao monte das oliveiras. Os discípulos o acompanharam. Chegando ao lugar, disse-lhes: ‘Orai para não entrardes em tentação’. E afastou-se deles mais ou menos a um tiro de pedra, e, dobrando os joelhos, orava: ‘Pai, se queres, afasta de mim este cálice! Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!’ Apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava. E, cheio de angústia, orava com mais insistência ainda, e o suor se lhe tornou semelhante a espessas gotas de sangue que caiam por terra. Erguendo-se após a oração, veio para junto dos seus discípulos e encontrou-os adormecidos de tristeza. E disse-lhes: ‘Porque estais dormindo? Levantai-vos e orai, para que não entreis em tentação’ (Lc 22,39-46).

A reflexão sobre este doloroso momento na vida de Jesus tornou-se um símbolo, uma referência para os nossos sofrimentos, especialmente para as situações-limites. De fato, cada um de nós tem o seu Getsêmani, aquele terrível momento de dor, de tristeza, quando parece tudo desmoronar e não somos capazes de suportar. É fundamental que enxerguemo-nos Nele, porque nele estamos. Não focamos o anjo do episódio, pois o miraculoso tende a criar distância entre Jesus e nós, sobretudo quando estamos no “jardim”. Também o Jesus “Poderoso” e “Glorioso” parece não dizer quase nada à pessoa vitimada por uma dor insuportável, pelo câncer em estado terminal ou para a mãe que enterra seu filho, vítima de uma bala perdida. Jesus não pode ser “blindado” face ao sofrimento como se fosse um super- homem, o que nunca foi. Como nós, ele pede para ser poupado e, Deus se cala. Ele é um de nós, verdadeiramente.

Em Mateus Jesus diz: “Minha alma está triste até a morte. Permanecei aqui e vigiai

comigo” (Mt 26,38). Ninguém atende o seu pedido. Quando os amigos somem (dormem), o

sofrimento é mais selvagem, é dobrado, quase desesperador. A solidariedade com quem sofre é e sempre será o grande desafio cristão, porque é a única resposta que atenua a dor dos outros. Na tentativa de encontrar uma saída honrosa para Jesus no seu Getsêmani cometeu-se dois erros: o da apatia e o da exclusividade. É duro admitir que Jesus chorou, tremeu e se entristeceu, porque isso pode afetar sua dignidade. Mas é precisamente aqui que reside a dignidade humana de Jesus, porque um homem sem temor é um ser mutilado, que se despreza a si mesmo a ponto de não mais sentir angústia a seu respeito. O temor é sinal de enraizamento na vida. Um homem sem medo deve ser temido, pois é capaz de tudo O

interesse da apatia, em contrapartida, é que Jesus seja vitorioso. Mas aqui a pedra da apatia tornou-se pó. A “noite” de Jesus é como todas as noites, de todos os seres humanos. Apática é a natureza. O sofrimento de Jesus não é anestesiado. Rogou ao Pai que o poupasse e também a presença dos amigos. Vãs tentativas. Jesus está só e, isso é que o vincula a todos os seres humanos e à indiferença de seus semelhantes.48

Quanto ao erro da exclusividade, se diz que o sofrimento de Cristo é incomparável porque, rejeitado e humilhado, Deus para ele se tornou incompreensível. Mas Jesus não tem interesse de sofrer mais que todos. Ao contrário, sabemos que esse sofrimento se repete no mundo, na vida dos pobres, na vida dos doentes, quando a dor e a morte destroem as certezas que, até então, se tinha sobre Deus.

Nesse contexto cabe colocar o exemplo que Dorothee Sölle conta de um jovem dinamarquês, Kim Malthe Bruun, que enfrentou o sofrimento voltando-se para a pessoa de Jesus. Ele foi fuzilado pela Gestapo em 1945. Tinha 21 anos. Três meses antes escreveu:

A doutrina de Jesus não deve ser uma doutrina que se segue por assim ter sido ensinada... Neste momento apreendo algo de mais profundo, aprendido de Jesus: que única e exclusivamente se deve viver segundo a convicção da própria alma. Tenho pensado desde então sobre o singular acontecimento que se deu comigo. Logo depois senti um indescritível alívio, uma jubilosa embriaguês de vitória, uma insensata alegria, que me deixava como que paralisado. Era como se a alma se tivesse tornado completamente livre... Quando a alma retornou ao corpo era como se o júbilo de todo o mundo se tivesse reunido aqui. Mas aconteceu comigo o que aconteceu com tantos outros que se encontram sob os efeitos de entorpecentes. Depois que a embriaguês passara, veio a reação. Dei-me conta de que me tremiam as mãos... E, contudo estava eu tranqüilo e com a alma mais forte do que antes. Não obstante isso, sem que eu sinta medo, sem que eu queira recuar, aumentavam as batidas do coração, quando alguém fica parado diante de minha porta... Passei a perceber em seguida como agora tenho uma nova compreensão da pessoa de Jesus. No tempo de espera é que está a provação. Asseguro-lhes que sofrer um par de pregos transfixando as mãos, morrer na cruz, não é mais do que algo puramente mecânico, que desloca a alma numa embriaguês dos sentidos, que não pode ser comparada com nenhuma outra coisa. Mas o tempo de espera no Jardim, é este que faz gotejar sangue vermelho. Mais uma coisa digna de nota: não senti nenhum ódio...” Três semanas depois escrevia ele: “desde então pensei seguidamente em Jesus. Não consigo entender bem esse amor sem limites que ele sentiu por todos os homens, em especial por aqueles que estavam ali para transpassar-lhe as mãos com os pregos. Encontrava-se ele muito acima de toda a paixão desde o momento em que saiu do Getsêmani.49

Impossível traçar a distinção entre o sofrimento de Jesus e o de outras pessoas. Qualquer sofrimento extremo experimenta o abandono de Deus. Numa Unidade de Terapia Intensiva, quando se respira com ajuda de aparelhos, o enfermo olha para o teto branco e, por

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Cf. SÖLLE, D. Sofrimento. op. cit., p. 87-89.

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alguns instantes, assiste o “filme de sua vida”. Sente um medo terrível, uma tristeza imensa. Tudo se desmorona e, a morte dele se enamora. A sensação da ausência de Deus o toca no mais íntimo de sua pessoalidade, levando-o às lagrimas. Está só, diante de si mesmo. Está à mercê da caridade daqueles que têm a obrigação de “administrar” sua situação. O que será de mim? Pensa o doente. E vê que se realiza ali o seu Getsêmani. Esta “espera” estarrecedora de alguma maneira se une à “espera” de Jesus. O doente olha para o Crucificado, misteriosamente renova suas forças e não desiste de viver. No fundo, vítimas do sofrimento e Jesus se compreendem. De fato, todo sofrimento limite afeta a relação com Deus. Porém:

A experiência que Jesus fez no Getsêmani ultrapassa a destruição. É aquela do consentimento. O cálice do sofrimento transformou-se em cálice da fortaleza. Quando o tiver esgotado superou toda a angústia. Aquele que finalmente retorna da oração para junto dos adormecidos é alguém diferente daquele que dali partira. Está lúcido e acordado, deixou de tremer. ‘Basta. É chegada a hora. Levantem-se. Vamos!’ Em cada oração um anjo está à nossa espera, porquanto toda oração transforma a quem a faz, fortalece-o, uma vez que o faz recolher-se em seu íntimo e o torna atento no mais alto grau, sobre o que no sofrimento nos é tirado e que no amor nós mesmos somos capazes de dar.50

Apesar do medo, apesar da ameaça de prisão, tortura e morte cruel, Jesus se mantém firme em sua opção, não despreza sua vida, mas também não se agarra a ela a todo custo. Os evangelhos não apresentam Jesus como homem destemido, ousado, super-homem. Para além da fraqueza e vulnerabilidade históricas de Jesus eles interpretam-nas em direção à maneira de Deus estar presente em nosso meio, revestindo-se de nossas fraquezas, angústias e lamentações.