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Dinâmica kenótica da encarnação a serviço da humanidade

1 ENCARNAÇÃO E SOFRIMENTO

1.2 Dinâmica kenótica da encarnação a serviço da humanidade

O hino cristológico de Fl 2,6-11 diz que Jesus Cristo “não usou de seu direito de ser

tratado como um deus, mas se despojou tomando a forma de escravo. Tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em seu aspecto como um homem” (vv. 6-7). O termo

em questão, “kenosis” (despojamento), não significa propriamente uma renúncia do Verbo à sua divindade, como interpretaram os teólogos da “morte de Deus”, para os quais este texto significaria que Deus “se esvaziou” a tal ponto da sua transcendência que, a partir da encarnação, só podemos encontrá-lo no homem. Porém, não se aceita também interpretações que “angelizam” a humanidade de Jesus, de tal sorte que desaparece o homem real. O Verbo, ao encarnar-se, não assumiu uma “natureza pura” de “um homem ideal”, mas tudo que a nossa carne pecadora significa (com exceção do pecado (Hb 4,15). Ele tornou-se um de nós, com todas as seqüelas de pecado (sem ser culpado, solidário conosco) e limitações próprias do homem natural (por ex., injustiças, desenvolvimento da consciência humana, sofrimento etc.). Encarnação não significa um evento momentâneo (no seio de Maria), mas todo um processo histórico no decurso da vida de Jesus. Neste sentido, o hino cristológico forma um paralelo com Adão; homem criado à imagem de Deus (Gn 1,26), que decidiu ser igual a Deus (Gn 3,5). Jesus Cristo, pelo contrário, estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um Deus (Fl 2,6), mas aceitou viver conforme o homem pecador “tomando a

forma de escravo”, “na semelhança da carne de pecado” (Rm 8,2), à semelhança de todos os

homens. Isto já o constituía homem para a morte, pois todo homem, mesmo pessoalmente não pecador, deve passar por ela. Quando “abaixou-se, tornando-se obediente até a morte”, aceitou a condição de homem e, na plenitude desta aceitação converteu-se em Servo por excelência, protótipo do homem (de onde a expressão de Rahner, “a cristologia é uma

antropologia que transcende-se a si mesma”). E, por isso mesmo é radicalmente pobre,

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dependente. Ao “se despojar”, o Filho de Deus rompeu, a partir do interior da história humana, com o esquema que se desenvolve como signo do pecado.5

O despojamento (autodoação) de Jesus abrange toda sua existência humana: desde o nascimento-encarnação até a morte na cruz. A encarnação mostra que o Deus de Jesus Cristo é aquele que vai ao encontro do homem e quer habitar no meio do seu povo, sendo capaz de renunciar ao que lhe pertence de mais próprio, o ser-Deus, para comunicá-lo aos homens (2Cor 8,3); e é assim exatamente como revela a onipotência do seu Ser como Amor.

Esta “kenosis”, como vimos, não significa abandonar ou anular a própria natureza divina, mas sim assumir a condição humana, para comunicar, doar, através de si mesmo, sua própria vida divina. Ao despojar-se de si mesmo, porém, não se aliena, mas sim manifesta aquilo que ele é com maior propriedade, como Deus sob condição humana: amor, capacidade de doar-se, sendo assim plenamente ele mesmo o que se entende somente por referência ao mistério da Trindade. O ponto mais alto deste despojamento se manifesta no grito de abandono de Jesus na cruz (Mc 15,34; Mt 27,43) porque, aqui, não tem sequer a experiência de ser o que é, isto é, de receber do Pai aquela mesma divindade que o Pai lhe deu. De fato, a morte na cruz revela o ponto alto da opção de Deus pela humanidade apenas por seu amor indizível. É aqui que, de forma paradoxal, porém real, Jesus é plenamente humano e solidário com a humanidade (até o ponto de não sentir a presença do Pai, a quem já não invoca como Abba, mas simplesmente como Deus).6

Entendemos, após essas considerações, que a cristologia da divindade de Jesus Cristo e de sua unicidade como salvador escatológico é o ponto de chegada de um caminho que começa pela sua humanidade. Impossível uma sã teologia da divindade de Jesus sem que se tenham os pés fincados no chão de sua humanidade. O projeto humano e o projeto divino em Jesus se interpenetram em estreita união, sem confusão e sem absorção de um no outro. A encarnação não é uma realidade passiva. Deus vai assumindo a vida de Jesus, desde a sua concepção, na medida em que esta vida ia se desenvolvendo e assumindo suas opções decisivas. Deste modo, contextualmente, se desenvolve o projeto histórico de Jesus, ou seja, sua opção fundamental, a decisão de fundo que marca a orientação da vida, das idéias e das práticas, sua visão de Deus e do homem orientada para o futuro.7 Na humanidade de Jesus a

5

Cf. GONZÁLEZ, C. I. Ele é a nossa salvação. op. cit., p. 149-150.

6

Cf. CODA, P. Encarnação. in: Dicionário Teológico o Deus Cristão. São Paulo: Paulus, 1998, p. 248-249.

7

Cf. BOFF, L., Paixão de Cristo, Paixão do mundo. O fato, as interpretações e o significado ontem e hoje. 5. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003, p. 21-22: “Suas opções concretas em favor dos que sofriam não era sem perigos, tateamentos, preparações, crescimento e explicitação progressiva. Não é sem razão que S. Lucas diz: ‘Jesus crescia em tamanho e em graça, diante de Deus e diante dos homens’ (Lc 2,52.40). Não diz apenas

divindade se revela. Na pobreza, na impotência, na cruz, aparece a riqueza, a força, a sabedoria de Deus (1Cor 1,18-31). É com especial atenção às atitudes e ações de Jesus diante dos sofrimentos humanos que vamos descobrindo o ser mesmo de Deus, quem ele é. Noutras palavras, a encarnação do Filho em Jesus e sua humanidade mostram o agir de Deus e seus desígnios para com toda humanidade: pelas ações e palavras de Jesus Deus nos conferiu comunhão consigo8 (DV 2).

1.3 A humanidade de Cristo como ponto de partida para a solidariedade com os que