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CRUZAMENTO DOS INDIVÍDUOS

No documento A Origem das Espécies (páginas 111-116)

Devo permitir-me aqui uma curta digressão. Quando se trata de animais e plantas tendo os sexos separados, é evidente que a participação de dois indiví- duos é sempre necessária para cada fecundação (à exceção, contudo, dos casos tão curiosos e tão pouco conhecidos de partenogênese); mas a existência desta lei está longe de ser igualmente evidente nos hermafroditas. Há, entretanto, algu- ma razão para acreditar que, entre todos os hermafroditas, dois indivíduos coope- ram, já acidentalmente, já habitualmente, para a reprodução da espécie. Esta idéia foi sugerida, há já muito tempo, mas de uma forma bastante duvidosa, por Spren- gel, por Knight e por Kõlreuter. Veremos, em breve, a importância desta sugestão; mas serei obrigado a tratar aqui este assunto em muito poucas palavras, se bem que tenha à minha disposição os materiais necessários para uma profunda dis- cussão. Todos os vertebrados, todos os insetos e alguns outros grupos considerá- veis de animais copulam-se para cada fecundação. As investigações modernas têm diminuído muito o número dos supostos hermafroditas, e, entre os verdadei- ros hermafroditas, há muitos que se copulam, isto é, que dois indivíduos se unem regularmente para a reprodução da espécie; ora, é este o único ponto que nos interessa. Todavia, há muitos hermafroditas que, certamente, se não copulam ha- bitualmente, e a grande maioria das plantas encontra-se neste caso.

Que razão pode haver, pois, para supor que, mesmo neste caso, dois indi- víduos concorrem para o ato reprodutor? E como me é impossível entrar aqui nes- tas particularidades, devo contentar-me com algumas considerações gerais.

Em primeiro lugar, colhi um número considerável de fatos. Fiz mesmo um grande número de experiências provando, de acordo com a opinião quase universal dos tratadores, que, nos animais e nas plantas, um cruzamento entre variedades dife- rentes ou entre indivíduos da mesma variedade, mas de uma outra casta, torna a posteridade que nasce mais vigorosa e mais fecunda; e que, por outra parte, as reproduções entre próximos parentes diminuem este vigor e esta fecundidade. Estes fatos tão numerosos bastam para provar que é uma lei geral da natureza

tendendo a que nenhum ser organizado se fecunda a si mesmo durante um ilimi- tado número de gerações, e que um cruzamento com um outro indivíduo é indis- pensável de tempos a tempos, posto que talvez com longos intervalos.

Esta hipótese permite-nos, creio eu, explicar grandes séries de fatos, tais como o seguinte, inexplicável de outra maneira. Todos os horticultores que se o- cupam de cruzamentos, sabem quanto a exposição à umidade torna difícil a fe- cundação de uma flor; e, contudo, que multidão de flores têm as anteras e os es- tigmas completamente expostos às intempéries do ar! Admitindo que um cruza- mento acidental é indispensável, ainda que as anteras e o pistilo da planta estejam tão próximos que a fecundação de um para outro seja quase inevitável, esta livre exposição, por desvantajosa que seja, pode ter por fim permitir livremente a entra- da do pólen proveniente de outro indivíduo. Por outra parte, muitas flores, como as da grande família das Papilionáceas ou Leguminosas, têm os órgãos sexuais completamente fechados; mas estas flores oferecem quase invariavelmente belas e curiosas adaptações em relação com as visitas dos insetos. As visitas das abe- lhas são tão precisas a muitas flores da família das Papilionáceas, que a fecundi- dade destas últimas diminui muito se se impedem estas visitas. Ora, é apenas possível que os insetos voem de flor em flor sem levar o pólen de uma à outra, para grande vantagem da planta. Os insetos atuam, neste caso, como o pincel de que nos servimos e que basta, para assegurar a fecundação, passear sobre as anteras de uma flor e sobre os estigmas de uma outra. Mas não seria preciso su- por que as abelhas produzam assim uma multidão de híbridas entre as espécies distintas; porque, se se coloca no mesmo estigma pólen próprio à planta e o de uma outra espécie, o primeiro anula completamente, assim como demonstrou Gärtner, a influência do pólen estranho.

Quando os estames de uma flor se lançam de improviso para o pistilo, ou se movem lentamente um após outro, parece que é unicamente para melhor as- segurar a fecundação de uma flor por si mesma; sem dúvida, esta adaptação é útil com este fim. Mas a intervenção dos insetos é muitas vezes necessária para de- terminar os estames a moverem-se, como o demonstrou Kõlreuter para a bérberis. Neste gênero, onde tudo parece disposto para assegurar a fecundação da flor por

si própria, sabe-se que, se se plantam uma perto da outra formas ou variedades muito próximas, é quase impossível criar plantas de raça pura, pois se cruzam naturalmente. Em numerosos outros casos, como poderia demonstrá-lo pelas ave- riguações de Sprengel e de outros naturalistas assim como pelas minhas próprias observações, bem longe de que nada há que contribua para favorecer a fecunda- ção de uma planta por si mesma, observam-se adaptações especiais que impe- dem absolutamente o estigma de receber o pólen dos seus próprios estames. Na Lobelia fulgens, por exemplo, há um sistema, tão admirável como completo, por meio do qual as anteras de cada flor deixam escapar os numerosos grânulos de pólen antes que o estigma da mesma flor esteja apto a recebê-los. Ora, como no meu jardim pelo menos os insetos nunca visitam esta flor, resulta daí que jamais produz sementes, posto que tenha obtido uma grande quantidade colocando eu mesmo o pólen de uma flor no estigma de outra. Uma outra espécie de Lobelia, visitada pelas abelhas, produziu, no meu jardim, abundantes sementes. Em muitos outros casos, ainda que nenhum obstáculo mecânico especial impeça o estigma de receber o pólen da mesma flor, todavia, como Sprengel e mais recentemente Hildebrando e outros o demonstraram, e como eu mesmo posso confirmá-lo, as anteras rebentam antes que o estigma esteja apto a ser fecundado, ou então, ao contrário, é o estigma que chega à maturação antes do pólen, de tal maneira que estas pretendidas plantas dicogâmicas têm na realidade sexos separados e de- vem cruzar-se habitualmente. Há mesmo plantas reciprocamente dimorfas e tri- morfas a que já temos feito alusão. Como estes fatos são extraordinários! Como é estranho que o pólen e o estigma da mesma flor, ainda que colocados um ao pé do outro com o fim de assegurar a fecundação da flor por si mesma, sejam, em tantos casos, reciprocamente inúteis um ao outro! Como é fácil explicar estes fa- tos, que se tornam então tão simples, na hipótese de que um cruzamento aciden- tal com um indivíduo distinto é vantajoso ou indispensável.

Se se deixam produzir sementes a muitas variedades de couves, rabane- tes, cebolas e algumas outras plantas colocadas umas perto das outras, tenho observado que a grande maioria das novas plantas provenientes destas sementes são mestiças. Assim, tratei duzentas e trinta e três novas couves provenientes de

diferentes variedades que nasceram junto umas das outras, e, destas duzentas e trinta e três plantas, apenas setenta e oito eram de raça pura, e ainda algumas destas últimas eram ligeiramente alteradas. Contudo, o pistilo de cada flor, na couve, é não somente cercado de seis estames, mas ainda pelos de numerosas outras flores que se encontram na mesma planta; além disso, o pólen de cada flor chega facilmente ao estigma, sem que seja necessário a intervenção dos insetos; observei, com efeito, que as plantas protegidas com cuidado contra as visitas dos insetos produzem um número completo de silíquas. Como sucede, pois, que um tão grande número de plantas novas sejam mestiças? Isto deve provir de que o pólen de uma variedade distinta é dotado de um poder fecundante mais ativo do que o pólen da própria flor, e que isto faz parte da lei geral em virtude da qual o cruzamento de indivíduos distintos da mesma espécie é vantajoso à planta. Quan- do, ao contrário, espécies distintas se cruzam, o efeito é inverso, porque o próprio pólen de uma planta excede quase sempre em poder fecundante um pólen estra- nho; nós voltaremos, demais, a este assunto num capítulo subseqüente.

Poder-se-ia fazer esta objeção que, em uma grande árvore, coberta de i- numeráveis flores, é quase impossível que o pólen seja transportado de árvore em árvore, e que apenas poderia ser de flor em flor sobre a mesma árvore; ora, so- mente se podem considerar num sentido muito limitado as flores da mesma árvore como indivíduos distintos. Creio que esta objeção tem um certo valor, mas a natu- reza proveu a isto suficientemente dando às árvores uma grande tendência a pro- duzir flores de sexos separados. Ora, quando os sexos são separados, ainda que a mesma árvore possa produzir flores masculinas e flores femininas, é preciso que o pólen seja regularmente transportado de uma flor a outra, e além disso este transporte oferece uma probabilidade para que o pólen passe acidentalmente de uma árvore para outra. Tenho verificado que, nas nossas regiões, as árvores per- tencentes a todas as ordens têm os sexos muitas mais vezes separados do que todas as outras plantas. A meu pedido, o Dr. Hooker teve a amabilidade de formar a lista das árvores da Nova Zelândia, e o Dr. Asa Gray a das árvores dos Estados Unidos: os resultados foram tais como eu os tinha previsto. Por outra parte, o Dr. Hooker informou-me que esta regra se não aplica à Austrália; mas, se a maior par-

te das árvores australianas são dicogâmicas, o mesmo efeito se produz como se tivessem flores com sexos separados. Tenho feito algumas referências às árvores apenas para chamar a atenção sobre este ponto.

Examinemos resumidamente o que se passa entre os animais. Muitas es- pécies terrestres são hermafroditas, tais são, por exemplo, os moluscos terrestres e as minhocas; todos, entretanto, se copulam. Até ao presente, não encontrei ain- da um só animal terrestre que pudesse fecundar-se a si mesmo. Este fato singu- lar, que contrasta tão vivamente com o que se passa com as plantas terrestres, explica-se facilmente pela hipótese da necessidade de um cruzamento acidental; porque, em razão da natureza do elemento fecundante, não há, no animal terres- tre, meios análogos à ação dos insetos e do vento sobre as plantas, que possam produzir um cruzamento acidental sem a cooperação de dois indivíduos. Entre os animais aquáticos, há, pelo contrário, muitos hermafroditas que se fecundam a si mesmos, mas aqui as correntes oferecem um meio fácil de cruzamentos aciden- tais. Depois de numerosos estudos, feitos conjuntamente com uma das mais altas e mais competentes autoridades, o professor Huxley, foi-me impossível descobrir, nos animais aquáticos, e até mesmo nas plantas, um só hermafrodita no qual os órgãos reprodutores fossem tão perfeitamente internos, que todo o acesso fosse absolutamente fechado à influência acidental de um outro indivíduo, de modo a tornar todo o cruzamento impossível. Durante muito tempo me pareceu que os Cirrípedes fariam exceção a esta regra; mas, graças a um feliz acaso, pude provar que dois indivíduos, ambos hermafroditas e capazes de se fecundar a si mesmos, se cruzam contudo algumas vezes.

A maior parte dos naturalistas deve estar impressionada, como por uma es- tranha anomalia, pelo fato de, nos animais e nas plantas, entre as espécies de uma mesma família e também de um mesmo gênero, serem uns hermafroditas e outros unissexuados, posto que sejam muito semelhantes em todos os outros pon- tos da sua organização. Contudo, se se acha que todos os hermafroditas se cru- zam de tempos a tempos, a diferença que existe entre eles e as espécies unisse- xuadas é muito insignificante, pelo menos com relação às funções.

pude recolher, mas que a falta de espaço me impede de citar aqui, parecem pro- var que o cruzamento acidental entre indivíduos distintos, nos animais e nas plan- tas, constitui uma lei senão universal, pelo menos muito geral na natureza.

CIRCUNSTÂNCIAS FAVORÁVEIS A PRODUÇÃO DE NOVAS FORMAS PELA SELE-

No documento A Origem das Espécies (páginas 111-116)

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