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DO PROGRESSO POSSIVEL DA ORGANIZAÇÃO

No documento A Origem das Espécies (páginas 138-142)

A seleção natural atua exclusivamente no meio da conservação e acumula- ção das variações que são úteis a cada indivíduo nas condições orgânicas e inor- gânicas em que pode encontrar-se colocado em todos os períodos da vida. Cada ser, e é este o ponto final do progresso, tende a aperfeiçoar-se cada vez mais re- lativamente a estas condições. Este aperfeiçoamento conduz inevitavelmente ao progresso gradual da organização do maior número de seres vivos em todo o mundo. Mas referimo-nos aqui a um assunto muito complicado, porque os na- turalistas ainda não definiram, de uma forma satisfatória para todos, o que deve compreender-se por «um progresso de organização». Para os vertebrados, trata- se claramente de um progresso intelectual e de uma conformação que se aproxi- me da do homem. Poder-se-ia pensar que a soma das alterações que se produ- zem nas diferentes partes e nos diferentes órgãos, por meio de desenvolvimentos sucessivos desde o embrião até à maternidade, basta como termo de compara- ção; mas há casos, certos crustáceos parasitas por exemplo, nos quais muitas partes da conformação se tornam menos perfeitas, de tal forma que o animal adul- to não é certamente superior à larva. O critério de Von Baer parece o mais geral- mente aplicável e o melhor, isto é, a extensão da diferenciação das partes do mesmo ser e a especialização destas partes para diferentes funções, ao que jun- tarei: no estado adulto; ou, como o diria Milne Edwards, o aperfeiçoamento da di- visão do trabalho fisiológico. Mas compreendemos bem depressa que obscuridade existe neste assunto, se estudarmos, por exemplo, os peixes. Com efeito, certos naturalistas consideram como os mais elevados na escala os que, como o tuba- rão, se aproximam mais dos anfíbios, enquanto que outros naturalistas conside- ram como mais elevados os peixes ósseos ou teleósteos, porque são realmente mais pisciformes e diferem mais das outras classes dos vertebrados. A obscurida- de do assunto fere-nos mais ainda se estudarmos as plantas, para as quais, bem entendido, o critério da inteligência não existe; em verdade, alguns botânicos dis- põem entre as plantas mais elevadas aquelas que apresentam em cada flor, no estado completo de desenvolvimento, todos os órgãos, tais como: sépalas, péta-

las, estames e pistilos, enquanto que outros botânicos, provavelmente com mais razão, concedem o primeiro grau às plantas cujos diversos órgãos são muito mo- dificados e em número reduzido.

Se adotamos, como critério de uma alta organização, a soma das diferenci- ações e de especializações dos diversos órgãos em cada indivíduo adulto, o que compreende o aperfeiçoamento intelectual do cérebro, a seleção natural conduz claramente a esse fim. Todos os fisiólogos, com efeito, admitem que a especiali- zação dos órgãos é uma vantagem para o indivíduo, no sentido de que, neste es- tado, os órgãos executam melhor as suas funções; por conseqüência, a acumula- ção das variações tendentes à especialização, entra na alçada da seleção natural. Por outro lado, se se pensar que todos os seres organizados tendem a multiplicar- se rapidamente e a apoderar-se de todos os lugares desocupados, ou pouco ocu- pados na economia da natureza, é fácil compreender que é muito possível que a seleção natural prepare gradualmente um indivíduo para uma situação na qual muitos órgãos lhe serão supérfluos e inúteis; neste caso, haveria uma retrograda- ção real na escala da organização. Discutiremos com mais proficiência, no capítu- lo sobre a sucessão geológica, a questão de saber se, em regra geral, a organiza- ção tem feito progressos seguros desde os períodos geológicos mais remotos até nossos dias.

Mas, poder-se-á dizer, se todos os seres organizados tendem a elevar-se na escala, como sucede que uma multidão de formas inferiores exista ainda no mundo? Como sucede que haja, em cada grande classe, formas muito mais de- senvolvidas do que algumas outras? Porque é que as formas mais aperfeiçoadas não têm por toda a parte suplantado e exterminado as formas inferiores? Lamarck, que acreditava em uma tendência inata e fatal de todos os seres organizados para a perfeição, parece ter pressentido também esta dificuldade, que o levou a supor que as formas simples e novas são constantemente produzidas pela geração es- pontânea. A ciência não provou ainda o bom fundamento desta doutrina, posto que possa, além disso, revelar-no-lo no futuro. Pela nossa teoria, a existência per- sistente dos organismos inferiores não oferece dificuldade alguma; com efeito, a seleção natural, ou a persistência do mais apto, não obriga necessariamente a um

desenvolvimento progressivo, apodera-se unicamente das variações que se apre- sentam e que são úteis a cada indivíduo nas relações complexas da sua existên- cia. E, poderia dizer-se, que vantagem haveria, tanto quanto o podemos avaliar, para um animálculo infusório, para um verme intestinal, ou mesmo para uma mi- nhoca em adquirir uma organização superior? Se esta vantagem não existe, a se- leção natural melhora apenas muito pouco estas formas, e deixa-as, durante perí- odos infinitos, nas suas condições inferiores atuais. Ora, a geologia ensina-nos que algumas formas muito inferiores, como os infusórios e os rizópodes, conser- vam o seu estado atual desde um período imenso. Mas seria muito temerário su- por que a maior parte das numerosas formas inferiores existentes hoje não fize- ram progresso algum desde a aparição da vida sobre a Terra; com efeito, todos os naturalistas que dissecaram alguns destes seres, e estão de acordo em colocá-los na mais baixa escala, devem ter-se impressionado pela sua organização tão admi- rável e tão bela.

As mesmas observações se podem aplicar também, se examinarmos os mesmos graus de organização, em cada um dos grandes grupos; por exemplo, a coexistência dos mamíferos e dos peixes com os vertebrados, a do homem e do ornitorrinco com os mamíferos, a do tubarão e do branquióstomo (Amphioxus) com os peixes. Este último peixe, pela extrema simplicidade da sua conformação, aproxima-se muito dos invertebrados. Mas os mamíferos e os peixes não entram em luta uns com os outros; os progressos de toda a classe dos mamíferos ou de certos indivíduos desta classe, admitindo mesmo que estes progressos os condu- zem à perfeição, não os levariam a tomar o lugar dos peixes. Os fisiólogos crêem que, para adquirir toda a atividade de que é suscetível, o cérebro deve ser banha- do de sangue quente, o que exige uma respiração aérea. Os mamíferos de san- gue quente encontram-se pois colocados numa posição muito desvantajosa quan- do habitam na água; com efeito, são obrigados a subir continuamente à superfície para respirar. Nos peixes, os membros da família do tubarão não tendem a su- plantar o branquióstoino, porque este último, segundo Fritz Müller, tem por único companheiro e único concorrente, sobre as costas arenosas e estéreis do Brasil Meridional, um anelídeo anormal. As três ordens inferiores de mamíferos, isto é,

os marsupiais, os desdentados e os roedores, habitam, na América Meridional, a mesma região de numerosas espécies de macacos, e, provavelmente, importam- se muito pouco uns com os outros. Posto que a organização possa, em suma, ter progredido, e progrida ainda em todo o mundo, haverá contudo sempre muitos graus de perfeição; de fato, o aperfeiçoamento de muitas classes inteiras, ou de certos indivíduos de cada classe, não conduz necessariamente à extinção dos grupos com que se não encontra em concorrência ativa. Em alguns casos, como em breve veremos, os organismos inferiores parecem ter persistido até à época atual, porque habitam regiões restritas e fechadas, onde estão submetidos a uma concorrência menos ativa, e onde o seu pequeno número retarda a produção de variações favoráveis.

Enfim, creio que muitos organismos inferiores existem ainda no mundo em razão de causas diversas. Casos há em que variações, ou diferenças individuais de uma natureza vantajosa, jamais se apresentam, e, por conseqüência, a seleção natural não pode nem atuar nem acumulá-las. Em caso algum, provavelmente, decorreu tempo suficiente para permitir todo o desenvolvimento possível. Em al- guns casos, houve, decerto, o que nós devemos designar por retrogradação de organização. Mas a causa principal reside neste fato de, sendo dadas condições de existência muito simples, uma alta organização tornar-se inútil, talvez mesmo desvantajosa, porque sendo de uma natureza mais delicada, degeneraria mais facilmente, e seria mais facilmente destruída.

Pergunta-se como, quando da primeira aparição da vida, quando todos os seres organizados, podemos crer, apresentaram uma conformação mais simples, puderam produzir-se os primeiros graus do progresso ou da diferenciação das par- tes. M. Herbert Spencer responderia provavelmente que, desde que um organismo unicelular simples se torna, pelo crescimento ou pela divisão, um composto de muitas células, ou se está fixo a algumas superfícies de apoio, a lei que estabele- ceu entra nação e exprime assim esta lei: «As unidades homólogas de toda a for- ça diferenciam-se à medida que as suas relações com as forças incidentes são diversas». Mas, como não conhecemos fato algum que nos possa servir de ponto de comparação, toda a especulação sobre este assunto seria quase inútil. É, con-

tudo, um erro supor que não tenha havido luta pela existência, e, por conseguinte, seleção natural, até que muitas formas fossem produzidas; podem produzir-se variações vantajosas numa única espécie, habitando uma estação isolada, e toda a massa dos indivíduos pode também, por conseqüência, modificar-se, e produzi- rem-se duas formas distintas. Mas, como já lembrei no fim da introdução, ninguém deve esquecer-se de que ficam ainda tantos pontos inexplicados sobre a origem das espécies, se meditarmos na profunda ignorância em que estamos sobre as relações mútuas dos habitantes do mundo na nossa época, e muito mais ainda durante períodos afastados.

No documento A Origem das Espécies (páginas 138-142)

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