• Nenhum resultado encontrado

VARIAÇÕES CORRELATIVAS

No documento A Origem das Espécies (páginas 160-163)

Entendo por esta expressão que as diferentes partes da organização são, no de- correr do seu crescimento e do seu desenvolvimento, tão intimamente ligadas en- tre si, que outras partes se modificam quando ligeiras variações se produzem numa parte qualquer e se acumulam aí em virtude da ação da seleção natural. É este um assunto assaz importante, que se conhece muito imperfeitamente e na discussão do qual se podem confundir ordens de fatos muito diferentes. Veremos em breve, com efeito, que a hereditariedade simples toma algumas vezes uma falsa aparência de correlação. Poderiam citar-se, como um dos exemplos mais marcantes da verdadeira correlação, as variantes de estrutura que, produzindo-se num ovo ou na larva, tendem a afetar a estrutura do animal adulto. As diferentes partes homólogas do corpo, que, no começo do período embrionário, têm uma estrutura idêntica, e que são, por conseguinte, expostas a condições semelhantes, são eminentemente sujeitas a variar da mesma maneira. É assim, por exemplo, que o lado direito e o lado esquerdo do corpo variam do mesmo modo; que os membros anteriores, que mesmo a maxila e os membros variam simultaneamente; sabe-se que alguns anatômicos admitem a homologia da maxila inferior com os membros. Estas tendências, não ponho dúvida, podem ser mais ou menos com- pletamente dominadas pela seleção natural. Assim, existiu outrora uma raça de veados que tinham esgalhos apenas de um lado; ora, se esta particularidade ti- vesse sido vantajosa a esta raça, é provável que a seleção natural a houvesse

tornado permanente.

As partes homólogas, como o fazem notar certos autores, tendem a soldar- se, tal como se vê muitas vezes nas monstruosidades vegetais; nada mais co- mum, com efeito, nas plantas normalmente conformadas, que a união das partes homólogas, a soldadura, por exemplo, das pétalas da corola num só tubo. As par- tes duras parecem afetar a forma das partes moles adjacentes; alguns autores pensam que a diversidade das formas que afeta a bacia nas aves, determina a diversidade notável que se observa na forma dos rins. Outros julgam ainda que, na espécie humana, a forma da bacia da mãe exerce pela pressão certa influência sobre a forma da cabeça da criança. Nas serpentes, segundo Schlegel, a forma do corpo e o modo de deglutição determinam a posição e a forma de muitas das mais importantes vísceras.

A natureza destas relações fica quase sempre obscura. M. Isidoro Geoffroy de Saint-Hilaire insiste muito sobre este ponto: que certas deformações coexistem freqüentemente, enquanto que outras se observam apenas raramente sem que possamos indicar a razão. Que há de mais singular do que a relação que existe, nos gatos, entre a cor branca, os olhos azuis e a surdez; ou, nos mesmos ami- mais, entre o sexo feminino e coloração tricolor-;nos pombos, entre a plumagem das patas as películas que ligam os dedos extremos; entre a abundância da pe- nugem, nos filhotes, que saem do ovo, e a coloração da plumagem futura; ou, en- fim, a relação que existe no cão turco nu, entre os pêlos e os dentes, posto que, neste caso, a homologia desempenhe certo papel sem dúvida? Creio mesmo que este último caso de correlação não possa ser acidental; se considerarmos, em verdade, as duas ordens de mamíferos de que o invólucro dérmico apresenta a maior anomalia, os cetáceos (baleias) e os desdentados (tatus e papa-formigas, etc.), vemos que apresentam também a dentição normal; mas, como o fez notar M. Mivart, há tantas exceções a esta regra que pouco valor tem afinal.

Não conheço exemplo mais próprio para demonstrar a importância das leis da correlação e da variação, independentemente da utilidade e, por conseguinte, de toda a seleção natural, como a diferença que existe entre as flores internas e externas de algumas compostas e de algumas umbelíferas. Todos têm notado a

diferença que existe entre as floritas periféricas e as centrais da margarida, por exemplo; ora a atrofia parcial ou completa dos órgãos reprodutores acompanha muitas vezes esta diferença. Além disso, as sementes de algumas destas plantas diferem também com relação à forma e lavor. Têm-se algumas vezes atribuído estas diferenças à pressão dos invólucros sobre as florzinhas, ou às compressões recíprocas, e a forma das sementes contidas nas florzinhas periféricas de algumas compostas parece confirmar esta opinião; mas, nas umbelíferas, como mo ensina o Dr. Hooker, não são certamente as espécies que têm os capítulos mais densos do que as flores periféricas e centrais que oferecem diferenças mais freqüente- mente. Poderia pensar-se que o desenvolvimento das pétalas periféricas, levando a nutrição aos órgãos reprodutores, determina a sua atrofia; mas não pode ser causa única em todos os casos; porque, em certas compostas, as sementes das florzinhas internas e externas diferem sem que haja alguma diferença nas corolas. Julga-se que estas diferenças estejam em relação com o fluxo de nutrição diferen- te para as duas categorias de florzinhas; nós sabemos, pelo menos, que, nas flo- res irregulares, as que estão mais próximas do eixo se mostram mais sujeitas à peloria, isto é, a tornar-se simétricas de modo anormal. Juntarei, como exemplo deste fato e como caso de correlação notável que, em muitos dos pelargônios, as duas pétalas superiores da flor central do tufo perdem muitas vezes as suas man- chas de cor mais carregada; esta disposição é acompanhada da atrofia completa do nectário aderente, e a flor central torna-se assim pelórica ou regular. Quando só uma das duas pétalas superiores é colorida, o nectário não é atrofiado por completo, é somente diminuído.

Quanto ao desenvolvimento da corola, é muito provável, como diz Spren- gel, que as florzinhas periféricas sirvam para atrair os insetos, cujo concurso é muito útil ou mesmo necessário à fecundação da planta; se é assim, a seleção natural pode entrar em jogo. Mas parece impossível, no concernente às sementes, que as suas diferenças de forma, que não estão sempre em correlação com certas diferenças da corola, possam ser-lhes vantajosas; contudo, nas Umbelíferas, es- tas diferenças parecem tão importantes - as sementes sendo algumas vezes or- tospérmicas nas flores exteriores e colospérmicas nas flores centrais-que de Can-

dolle, o velho, baseou nestes caracteres as principais divisões da ordem. Assim, modificações de estrutura, tendo uma alta importância aos olhos dos classificado- res, podem ser devidas inteiramente às leis da variação e da correlação, sem ter, tanto quanto pelo menos o podemos julgar, qualquer utilidade para a espécie.

Podemos algumas vezes atribuir sem razão à variação correlativa deforma- ções comuns a grupos inteiros de espécies, que são, de fato, apenas o resultado da hereditariedade. Um ancestral afastado, com efeito, pôde adquirir, em virtude da seleção natural, algumas modificações de conformação, em seguida, após mi- lhares de gerações, algumas outras modificações independentes. Estas duas mo- dificações, transmitidas depois a um grupo inteiro de descendentes tendo hábitos diversos, poderiam então ser naturalmente consideradas como estando em corre- lação necessária. Algumas outras correlações parecem evidentemente devidas a um só modo de ação da seleção natural. Afonso de Candolle notou, em verdade, que não se observam sementes aladas nos frutos que não abrem. Explico este fato pela impossibilidade da seleção natural dar gradualmente asas às sementes, se as cápsulas não são as primeiras a abrir; de fato, é neste caso somente que as sementes, conformadas de maneira a serem mais facilmente transportadas pelo vento, prevaleceriam sobre as menos aptas a uma grande dispersão.

No documento A Origem das Espécies (páginas 160-163)

Outline

Documentos relacionados