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Neste subitem não é objetivo descrever uma biografia de Martim Lutero nem detalhar sua teologia. Há belíssimos trabalhos neste sentido.57 Objetivamos mostrar que Lutero estava envolto nesta forma de vida religiosa como todas as pessoas. Nela experimentou angústias e anseios pelo novo.

Martim Lutero nasce em Eisleben no ano de 1483. A família Luder vive esta transição entre o contexto rural feudal para o urbano com características de uma nova economia como já assinalamos. O avô de Martim Lutero era agricultor, dono de terras. Ser dono de terras acrescentava em liberdade e direitos na sociedade feudal – o que não acontecia com muitos outros agricultores e que estavam mais próximos do regime de servidão. Nem por isso a vida era tão melhor: a condição social só seria mantida se as terras não fossem divididas. Por direito de herança as terras ficavam com o filho mais novo. Por contrapartida cabia ao filho mais novo cuidar dos pais. Os mais velhos deveriam trabalhar para ele ou seguir seu caminho. Desta forma muitos vão parar nas cidades e ali são mão de obra para as minas de minério e cobre. Por conta desse direito de herança é que Hans Luder (pai de Martim Lutero) sai de Möhra para Eisleben-Mansfeld (ele era o filho mais velho de 4 irmãos) em 1483. É mais um trabalhador das minas submetido às leis comerciais vigentes impostas pelas sociedades comerciais. Estas emprestavam dinheiro para o minerador fazer seu trabalho. A forma de pagamento era por produto “in natura”. Se o trabalhador obtivesse êxito em seu trabalho conseguia honrar suas dívidas. O risco era só dele. Aqui estabelecem-se dois tipos principais de trabalhadores: os que obtêm êxito e os que sucumbem em dívidas. Hans Luder está entre os que obtiveram êxito por que seguiram uma receita de austeridade do mercado: trabalhar muito e gastar pouco. Hans Luder vem a ser dono de mina e integrante do conselho da cidade. (BRENDLER, 1983, p. 9-13). A família Luder experimenta a ansiedade e insegurança econômica do seu tempo e também a transição do mundo econômico feudal-rural para o

57 Sobre sua biografia veja, por exemplo: LOHSE, 1983, p. 31-52; BRENDLER, 1983, p. 9-47 (referente aos

anos de 1483 a 1512); LIENHARD, 1998, p. 31ss e 389s; ALTMANN, 1994, p. 352; DREHER, 1996, p. 23-40, BECK, Nestor. Introdução. In: Pelo Evangelho de Cristo, 1984, p. 9-20; Breve Retrospectiva histórica sobre a Reforma Luterana. In: Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero (Sociedade Bíblica do Brasil), 2012, xi. Sobre sua teologia a bibliografia desta pesquisa contempla várias obras; FEBVRE, 2012; GARCÍA e DOMÍNGUEZ, 2008, p. 195-198.

mundo econômico capitalista emergente. Martim Lutero cresce em meio a esta mudança e os desafios que ela representa.58

Martim Lutero é o filho mais velho de sete irmãos. Pelo direito de herança, precisa seguir seu caminho. O pai, então, o coloca para estudar desde os quatro anos de idade. O grande sonho do pai era a formatura em direito. A escola era o lugar do aprendizado e da disciplina (muitos pais tinham dificuldade em fazê-lo por motivos de trabalho ou muitos filhos). Aprendeu latim. Latim era a língua oficial da Igreja e do Império. Promessa de ascensão social por oportunizar trabalhos internacionais ao lado de príncipes, ou nas universidades, ou mesmo na Igreja. Lutero o dominou com maestria. (BRENDLER, 1983, p. 13-19).

Mas uma tempestade o surpreendeu em Stotternheim e muda este “destino”59. Ao clamar pelo cuidado de Santa Ana decide ser monge. Brendler (1983, p. 25) afirma que uma promessa (ou era um grito de socorro?) feita nestas circunstâncias não precisava ser cumprida conforme orientação do direito canônico da época. Mesmo assim Martim Lutero decide entrar no convento dos agostinianos em 1505, apesar da contrariedade de seu pai. Brendler vê neste gesto de Martim Lutero insatisfação com o caminho de vida para ele escolhido pelo pai e conclui que sua vontade era servir à sociedade pelo caminho religioso, não pelo do direito. Também Lienhard (1998, p. 34-35) adota esta percepção. O episódio do raio pode, no máximo, ter promovido o desfecho para algo que já se evidenciava: a busca pelo Deus misericordioso, como o próprio Lutero o afirma no ano de 1534:

Em nenhum momento consegui achar consolo em meu batismo; ao contrário, pensava continuamente: Ó, quando finalmente poderás tornar-te piedoso e fazer o suficiente, para teres um Deus misericordioso? Através de pensamentos como esse fui incitado em direção à ‘mongeria’ (Möncherei). (WAIMARISCHE AUSGABE, 37, 661, 20; publicado por Cruciger, apud LIENHARD, 1998, p. 35).

Se por um lado Martim Lutero cresce enfronhado nesta nova dinâmica social, por outro também cresce dentro da religiosidade da época. Lohse (1983, p. 33) afirma que a família de Lutero pode ser considerada normal para o padrão da época. Claro que, em comparação com a educação hodierna, mais rigorosa. Assim também na educação cristã. A família era piedosa e estava enfronhada na religiosidade e piedade supersticiosa do seu tempo. E conclui: nada de extraordinário dentro das circunstâncias da época que pudesse evidenciar algo de diferente no porvir.

58 Lienhard (1998, p. 20-21) afirma que o pai de Martim Lutero experimentou o endividamento junto às casas

comerciais antes do relativo bem estar econômico. O classifica como sendo um pequeno empreendedor em busca de ascensão social que, ao lado dos artesãos, formam a camada média das cidades.

59 Febvre (2012, p. 29) afirma que esta decisão se deu em consequência da “sombra de uma juventude

melancólica” e que projetava “um destino que permanecia medíocre.” O autor pressupõe em Lutero a busca por expressão social para a qual não tinha capacidade no mundo das artes.

Como tantas outras pessoas do seu tempo ingressa no mosteiro e ali se submete às leis estabelecidas com o objetivo de merecer a graça de Deus60. Conforme Lohse (1983, p. 35-37) o real motivo para seu ingresso no convento deve ser procurado nas suas Anfechtungen (tentações). Estas são em parte razões teológicas, em parte pessoais. A pergunta motivadora era acerca da dignidade do ser humano diante de Deus: como consigo um Deus gracioso? O pano de fundo da pergunta está na concepção da teologia da Idade Média tardia que afirmava ser o ser humano dotado de capacidades e forças para realizar obras da justiça que agradam a Deus. Em outras palavras: o ser humano é dotado de uma capacidade para cumprir o primeiro mandamento. Mas esta ‘verdade teológica’ é relativizada porque a confissão e a oração não conseguem tranquilizar a alma. Como saber se estou justificado diante de Deus? A única coisa que consegue perceber na sua angústia é a ira de Deus pronto a lançá-lo no inferno. Como vimos, Lutero está dentro do pensamento teológico que leva às indulgências como forma de conquistar paz às almas. Para Lohse este é o cerne em Lutero, pois experimenta em vida as penas do purgatório.61 Os demais temas elencados são, em verdade, temas paralelos. Interessante observar que estas dúvidas não cessam com a redescoberta reformatória, mas ganharam outros contornos. Lutero se questiona, em 1527: tenho razão contra um mundo de inimigos? Porque tive que começar a Reforma? Somente eu tenho esta clareza teológica e os outros viveram séculos de escuridão?

George (1993, p. 62-63) define bem o que são as Anfechtungen: pavor, desespero, sensação de perdição, agressão, ansiedade. Afirma que é isso que Lutero sentia quando na busca pelo Deus misericordioso. Igualmente afirma que as Anfechtungen não cessaram após a redescoberta reformatória, mas se tornaram um princípio recorrente que moldou seu pensar teológico, uma espécie de processo vitalício de lutas, conflitos e tentações que moldam o pensar teológico. Lutero afirma que

não aprendi minha teologia toda de uma vez, mas tive de buscá-la mais a fundo, onde minhas tentações [Anfechtungen] me levavam. [...] Não a compreensão, a leitura ou a especulação, mas o viver, ou melhor, o morrer e o ser condenado fazem um teólogo. (WAIMARISCHE AUSGABE, TR I, p. 146 e 5, p. 163, apud GEORGE, 1993, p. 62).

Lutero dá primazia no fazer teológico à experiência, à prática, pois é para lá que a teologia da cruz e as tentações levam a pessoa, ficando a razão em segundo plano. Em 1542 ele diz (WAIMARISCHE AUSGABE, 49, 257, 39s, 258,17-19 (1542), apud EBELING,

60 Lohse (1983, p. 34-35) também afirma que o ingresso no mosteiro é fruto de amadurecimento interior da fé e

busca. Ingressar no convento era espécie de ‘garantia de salvação’. A escolha pelo mosteiro dos agostinianos eremitas em Erfurt se deu no sentido de dar continuidade aos estudos da linha filosófico-teológica, possíveis naquela casa.

61 Tillich (1992, 212-221) fala que esta é a situação-limite em Lutero. Esta condição humana, à luz da

1986, p. 182): “Pela letra e pela história essas palavras são (...) de fácil compreensão (...) mas elas provocam tonturas quando for para experimentar, degustar e trazê-las para a vida ou experiência; aí a compreensão é muito elevada e se torna difícil”. Por detrás disso está a ideia de que a experiência faz o teólogo e que toda teologia é vivencial.

Lutero, é verdade, experimenta angústias e tentações (Anfechtungen). Mas também é conhecedor dos movimentos pré-reformatórios. Conhece pessoas e ideias que buscam por uma nova teologia e uma nova espiritualidade. A busca pelo Deus misericordioso não cessara. No próximo capítulo queremos analisar estes movimentos pré-reformadores, a redescoberta teológica de Martim Lutero e os escritos sobre as boas obras e a liberdade cristã. Vamos perguntar acerca da materialização da Justificação pela Fé redescoberta.

2 A BUSCA POR NOVAS REFERÊNCIAS PASTORAIS E