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A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO DE VIDA

3 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: UMA PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO

3.4 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO DE VIDA

Esta nova forma165 queremos aqui chamar de um modo de vida que é resistência a este movimento desumanizador, ou seja, um movimento que prioriza o mercado e o absolutiza, que concebe o ser humano como objeto, que conta vidas e que se mantém por um sistema legalmente constituído que mata. A Justificação pela Fé gesta um modo de vida que tem como pressuposto um movimento de defesa da vida, de cuidado com o outro e de amor ao próximo. Um modo de vida que está na materialidade da vida (Altmann), que está inserido na práxis da vida e no cotidiano (Brakemeier), que anuncia a “Boa-Nova” (Hinkelammert) e que dá voz ao desejo de mais igualdade social (Wilkinson). Compreender a Justificação pela Fé como um modo de vida é concebê-la para além do rito religioso, do dogma ou doutrina; é acolhê-la como uma vivência.166 Uma vivência orientada pela fé que se materializa no cuidado para com o próximo. É a vivência ativa que decorre do recebimento passivo da graça de Deus (BRAKEMEIER, 2002, p. 91).

164 Em verdade é uma empresa engolindo a outra. Quando restam só as grandes, fazem acordo entre si que

interessa aos acionistas e a elas próprias, não à sociedade, diz Boff.

165 Em verdade não é um novo jeito, é uma “nova velha” definição. Já em Paulo as comunidades que ouviam da

Justificação pela Fé “intentavam viver nova vida.” (TAMEZ, 1995, p. 198).

É um modo de vida marcado por uma nova natureza: a natureza da pessoa justificada pela fé.167 Uma natureza que me move. Um princípio que define a pessoa. Um princípio que impulsiona. Um princípio que torna palpável o que confesso e professo na fé. Um princípio que torna a palavra dita e professada em vivência. Um princípio fides Christi: o Cristo em mim que me move.168 Um princípio que não busca o mérito (pregado pela sociedade econômica), mas age em favor do próximo por ser esta sua natureza. Natureza que é expressão de gratidão, unicamente.169

Há metáforas que expressam bem o que queremos dizer: uma delas é a do sol170. Ele brilha. Não tem como não brilhar. Raio e brilho solar são inseparáveis. Sua natureza é emitir raios solares que brilham. Outra metáfora é a da laranjeira171: o pé de laranja produz laranjas. Não tem como não produzi-las. No seu tempo o fará. Pé de laranja e fruto laranja formam uma unidade. Outra metáfora é conhecida como sendo a do monge e do escorpião172: um mestre do Oriente viu quando um escorpião estava se afogando e decidiu tirá-lo da água. Mas quando o fez, o escorpião o picou. Por causa da reação de dor, o mestre o soltou e o escorpião caiu de novo na água. O mestre então o tira novamente da água e também a picada se repete. Quando da terceira tentativa de tirar o animal da água alguém que estava observando tudo se aproximou e disse-lhe: “desculpe-me, mas você é teimoso! Não entende que todas às vezes que tentar tirá-lo da água ele irá picá-lo?” Ao que o mestre respondeu: “a natureza do escorpião é picar, e isto não vai mudar a minha, que é ajudar”. Então, com a ajuda de uma

167 Afirma Lutero (1546) acerca da fé: “fé (...) é uma obra divina em nós que nos modifica e nos faz renascer de

Deus, João 1, (...), mata o velho Adão, transforma-nos em pessoas bem diferentes de coração, sentimento, mentalidade e todas as forças, e traz consigo o Espírito Santo. Ah, há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não ser possível que ela cesse de praticar o bem.” (ObSel, 8.133 [1546]).

168 Lutero, no Debate sobre a Teologia Escolástica, afirma, na tese 34, que “a natureza não tem nem ditame

correto nem vontade boa”. (ObSel 1.17 [1517-1519]). Também não é o que afirmamos aqui. Por isso compreender uma nova natureza em correlação com fides Christi (a fé de Cristo em mim) é essencial: Cristo em mim molda esta nova natureza.

169 Lohfink (1986, p. 187ss), ao comentar o “ide” de Mateus 28.18-20 sustenta que o texto grego é mal traduzido,

conduzindo a erro de compreensão em português. O que muitas versões trazem como sendo “ensinar” todos os povos em verdade é “fazei que todas as nações se tornem discípulos”. A intenção de Mateus não é ensinar dogmas, mas o discipulado, o “modo de viver que Jesus ofereceu ao verdadeiro Israel como práxis do Reino de Deus.” (p. 188). O objetivo de Mateus é, então, que comunidades cristãs, fiéis aos ensinamentos e práxis de Jesus, se espalhem pelo mundo numa vivência continuada da práxis do Reino de Deus. (p. 189). Não significa querer transformar o mundo num “grande convento” (DREHER, 1994, p. 53-55), mas enchê-lo da práxis do Reino. Não significa obrigar as pessoas a confessar o que eu confesso: vivo um espírito que me move, mas o rosto que ele assume é aberto. Ou seja: um espírito me move e ele cabe dentro das mais variadas confessionalidades religiosas.

170 É atribuída a Lutero.

171 Atribuída a Milton Schwantes.

172 Disponível em http://filosofiaimortal.blogspot.com.br/2013/05/o-monge-e-o-escorpiao.html, acesso em

folha, o tirou da água e o salvou. Logo, vivo o que sou; vivo o que está em mim; vivo o que sou por princípio.173 Este é o fundamento, o princípio que me move.

Tillich (1957, p. 5-7) contribui na definição deste princípio quando analisa o termo “fé” e suas implicações como “estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente.”174 Este “estar possuído incondicionalmente” refere-se à pessoa como um todo. “Ele se realiza no centro da vida pessoal e todos os elementos desta dele participam. (...) Todas as funções do homem estão conjugadas no ato de fé.” (TILLICH, 1957, p. 7-8). Participam deste movimento o consciente e o inconsciente da pessoa:

Fé como manifestação da pessoa integral não pode ser imaginada sem a atuação concomitante dos elementos inconscientes na estrutura da pessoa. Eles sempre estão presentes e determinam em alto grau o conteúdo da fé. (TILLICH, 1957, p. 8).175 Logo, a fé é o centro que orienta e coloca em movimento o todo da pessoa. A fé movimenta a integralidade do ser. Lutero (ObSel, vol 2, p. 110 [1520]) afirmava que a fé é o “mestre de obras e capitão em todas as obras”, ou seja, “o motivo, sim, mais ainda: o movens como razão para agir, como energia e poder para abrir-se, para passar adiante o recebido”. (BAYER, 2007, p. 206. Destaque do autor). A Justificação pela Fé é, portanto, o que me move: ela coloca em movimento um modo de ser e de viver.

Com Lutero isto pode ser assim exemplificado176: se uma pessoa entra na padaria e rouba um pão porque está com fome, mas não tem dinheiro para pagá-lo, não é roubo. É dar voz à exigência mais básica de manutenção da vida: alimentar-se. Podemos discutir todas as nuances e implicações sócio-mercantilistas do fato, mas a vida é aqui apresentada como prerrogativa absoluta e inegociável. Por outro lado, se uma pessoa entra na padaria e rouba um pão, mas não está com fome, independentemente se tem dinheiro para pagá-lo ou não, é

173 Lohfink (1986, p. 105-202) reflete a perspectiva das primeiras comunidades cristãs e da Igreja como

seguidoras fiéis da mensagem escatológica anunciada por Jesus. Esta mensagem é uma vivência que espelha a práxis do Reino de Deus. Entre as principais características destacamos: a abolição das barreiras sociais, a práxis da reciprocidade, a vivência do amor fraterno, o servir em vez de dominar etc. E conclui: a práxis dos valores do Reino de Deus contrastam com os valores hegemônicos da sociedade de mercado. Não é que se vislumbre uma Igreja ideal, perfeita, sem culpa, “mas uma Igreja na qual da culpa perdoada cresce esperança infinita.” (p. 202). O que Lohfink apresenta para a coletividade ganha, na Justificação pela Fé, também a dimensão da individualidade.

174 Este estar possuído incondicionalmente pode se referir a Deus (especialmente na concepção de Deus do

Antigo Testamento) ou ao mercado econômico, por exemplo. No Antigo Testamento Deus traz a exigência de submissão da pessoa a Ele (Dt 6.5). Cumprida, há promessa de realização pessoal e nacional para Israel. Descumprida, sua ruína é a ameaça. O mercado faz a mesma promessa e ameaça: em caso de fidelidade promete status social, ascensão econômica, sucesso etc; em caso de infidelidade a ruína.

175 Bultmann (Sermon Matheus 25.31-46, apud ALTMANN 1994, p. 303-304) afirma que no gesto inconsciente

se revela nosso ser. Ele pode revelar tanto o amor como a falta dele, revelando nosso real valor. Faz ver (ou não) o Cristo no próximo pequenino/necessitado.

176 “Se alguém que não está padecendo fome toma pão da estante do padeiro, ele é ladrão; se, porém, o faz

quando está padecendo fome, age corretamente, pois é dever dar-lhe pão e outros bens dessa natureza”. (ObSel 5.468 [1540]).

roubo. É dar voz à cobiça, ao querer ter algo pelo simples prazer de ter. A diferença entre um e outro está justamente na intenção que moveu ao ato.

Sabemos que as decisões tomadas a cada dia são marcadas pela complexidade. Porém, o princípio da intenção que me move quer delinear a ação cotidiana, seja em grandes ou pequenos projetos. Ele quer animar a pessoa a fazer tudo “como se não houvesse Deus.” (LUTERO, Martin. Vorrede auf den Prediger Salomon [1524]: WADB 10/II,106,6-15, apud BAYER, 1997, p. 36)177. As obras da pessoa justificada não estão isentas de ambiguidade, nem são arbitrárias.

Mesmo que não tenhamos condições de desvendar o complexo entrelaçamento das motivações do nosso agir nem de prever todas as conseqüências das nossas obras e muito menos predeterminá-las, o cuidado para com o próximo e todas as outras criaturas, bem como suas necessidades elementares, nos mostram de maneira suficientemente clara o que deve ser feito. “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças!” A pessoa que Deus justifica se dá por “satisfeita com o que está aí à mão” e não tem necessidade de “dominar e controlar” as coisas “em vista do futuro”. (LUTERO, Martim. Vorrede auf den Prediger Salomon [1524]: WADB 10/II,106,9, apud BAYER, 1997, p. 37).

O fato de não ser necessário controlar as coisas em vista do futuro aponta para o fato de que a pessoa justificada não está condenada ao sucesso (BAYER, 1997, p. 37), como o mercado o exige. Mas o fato de fazer “tudo quanto te vier à mão” revela que o mundo pode ser melhorado.178 Mesmo o sucesso não sendo exigência, a pessoa se empenha:

Não devemos, então, fazer nenhum tipo de provisão, deixar portas e janelas abertas e nem nos defender, mas deixar que nos golpeiem como se fôssemos corpos mortos (...)? De modo algum! Acabaste de ouvir: as autoridades devem vigiar, ser diligentes e fazer tudo que compete ao seu ofício: fechar os portões, guardar portas e muros, usar armadura, armazenar provisões, portar-se como se não houvesse nenhum Deus e eles tivessem que salvar-se a si próprios e governar eles mesmos, assim como um chefe de família deve trabalhar como se com seu trabalho ele próprio quisesse sustentar-se. Disso, porém, ele deve se guardar: que o seu coração alguma vez confie neste seu agir. (LUTERO, Martim. Vorrede auf den Prediger Salomon [1524]: WADB 15,372,22-373,17, apud BAYER, 1997, p. 36).

Bayer, então, conclui que a pessoa justificada pela fé renasce para dentro deste mundo: Ser levado de volta ao paraíso, nascer de novo, ser criado de novo não acontece fora do mundo, mas de forma mundana, como entrada em uma nova mundalidade (sic). “Nova criação” não é afastamento do mundo, mas uma volta a ele, conversão ao mundo. Nova criação é a conversão ao mundo como conversão ao Criador no ouvir a voz com que ele se faz ouvir através das criaturas, a voz com a qual, por meio das criaturas, ele se dirige a nós e nos interpela. (...) Deus quer ser Criador de tal forma que ele não nos interpela de nenhuma outra maneira a não ser através das suas

177 A formulação está no contexto da interpretação do Salmo 127. Ali Lutero reflete acerca da relação entre a

obra de Deus e a obra do ser humano. (BAYER, 1997, p. 36).

178 Lutero concebe que o mal provoca o caos. A pregação da Palavra é, pois, a organização do caos. Por isso

concebe que o ser humano tem sim um papel importante no sentido de fazer com que este mundo permaneça boa criação de Deus. A melhoria do estamento cristão é isso: ação humana que ajuda o mundo melhorar. Nisto a pessoa é colaboradora de Deus. Veja DREHER, 2006, p. 51-53; LIENHARD, 1998, p. 197-198. Uma canção da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil define bem esta ação que não tem caráter meritório: “libertação se alcança no trabalho, mas há dois modos de se trabalhar: há quem trabalha escravo do dinheiro e há quem procura o mundo melhorar.” (hino Nossa Alegria. In: Povo Canta, 2007, hino 81).

criaturas. (LUTERO, Martim. Pregação sobre Marcos 7.31-37 [1538], WA 46, 493- 495, apud BAYER, 1997, p. 29)

Lutero não deseja a retirada do mundo. Nem a passividade. Pelo contrário, as criaturas de Deus é que interpelam aqui a pessoa justificada. O cidadão da padaria, com fome e sem dinheiro, interpela. Provoca uma (re)ação, pede um cuidado, exige resposta de vida. A pessoa justificada pela fé não tem como não se importar. É movida por princípio.

Na continuidade deste trabalho queremos ainda fundamentar este princípio da Justificação pela Fé como um modo de vida com literatura e também com a prática da vida.

3.5 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES