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Gil-Pérez et al (2005) realizam uma discussão fundamental às discussões sobre educação científica em resposta à iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) em instituir a Década para a Educação Sustentável. Esta iniciativa visou estimular a adequação dos objetivos e metas da educação em escala mundial para o século XXI. O grupo de trabalho encabeçado pelos autores aponta que é necessário, neste início de século, ressignificar o currículo de ciências em todo o mundo. Este currículo deve permitir o ensino para a formação cidadã, partindo da discussão da importância da educação científica na sociedade atual.

Vários aspectos relevantes acerca da prática docente são abordados no trabalho, que se tornou referência importante para toda uma geração de pesquisadores em educação. Um dos conceitos fundamentais a partir do qual constroem suas argumentações é o de alfabetização científica. O sentido desta expressão reside na perspectiva de que existe um certo conteúdo mínimo, um conjunto básico de conhecimentos relacionados à área de ciências que deve ser lecionado a todas as pessoas, de maneira a construirmos uma educação que prepare as novas gerações a tomarem decisões em questões científicas e expressarem estas decisões na vida social.

A percepção da necessidade de promover a adoção de currículos em que todos os cidadãos sejam apresentados aos aspectos básicos relativos não somente aos conceitos da ciência, mas também às suas práticas e às repercussões de suas descobertas na sociedade tem início em meados do século passado. Contudo, no final do século XX e início deste é que a expressão tem sido utilizada quase como “slogan” de pesquisadores na área da educação em ciências, planejadores de currículos e professores de ciências em geral (BYBEE, 1997). É interessante notar, contudo, que o trabalho referenciado usa o termo literacy, traduzido originalmente para alfabetização. Alguns questionamentos, principalmente na área da pesquisa em linguagens, apontando para o fato de que a tradução correta seria letramento.

DeBoer (2000) aponta uma construção histórica do tema, remontando ao final do século XIX e início do século XX, quando um número cada vez maior de cientistas aponta para a necessidade de formação de pessoas que se tornariam cientistas. A defesa de uma preparação científica nada tinha de universalizante, mas da preocupação dos países com o avanço dos aspectos tecnológicos e científicos da sociedade e a fé de que este avanço se tornaria

34 responsável pela solução de vários problemas da humanidade. Além disso, a percepção de que o desenvolvimento tecnológico seria uma fonte para a riqueza das nações traz à baila a questão da implementação de disciplinas de cunho científico.

Compartilhamos do entendimento de Carvalho (2007) e Sasseron (2015), quando apontam que mais do que o uso de determinado termo – alfabetização, letramento ou enculturação científica – o que está em jogo é o questionamento sobre qual tipo de currículo e de atividades realizamos em sala de aula que apontem para uma

(...) intenção de formação capaz de prover condições para que temas e situações envolvendo as ciências sejam analisados à luz dos conhecimentos científicos, sejam estes conceitos ou aspectos do próprio fazer científico. Pode-se afirmar que a Alfabetização Científica, ao fim, revela-se como a capacidade construída para a análise e a avaliação de situações que permitam ou culminem com a tomada de decisões e o posicionamento. (grifo nosso) (SASSERON, 2015, p. 56)

Deseja-se que os estudantes sejam capazes de, para além de decorar uma longa lista de conceitos, leis e fórmulas, se apropriem também das habilidades relacionadas ao fazer científico, numa perspectiva de que sejam capazes de realizar discussões e tomar decisões amparados pelas ferramentas cognitivas e culturais das ciências. Que desenvolvam determinadas competências comportamentais e atitudinais, relacionadas ao fazer científico. Neste sentido, aproveitando-nos da polissemia entre os termos apresentados (BRICCIA et al, 2017), passamos a utilizar o conceito de enculturação científica. Essa decisão reforça, em nosso ponto de vista, a questão central de que a escola é espaço de apresentação e discussão de culturas e que devemos, como professores, nos posicionar em relação à cultura que devemos perpetuar, sem descuidar da percepção de que os estudantes também possuem culturas que devem ser reconhecidas.

Com o avanço de pesquisas nesta área, novos caminhos para se alcançar a enculturação dos estudantes em relação aos conteúdos científicos têm sido apontados. Deboer (2000) conclui que o processo de enculturação está relacionado ao entendimento das ciências por parte dos diversos atores sociais e que este processo não tem limites definidos e se altera com o passar do tempo. A enculturação dos estudantes como um objetivo do ensino de ciências seria supostamente alcançada quando o aprendizado sobre ciências se desse não somente em relação ao seu conteúdo, mas sobre o próprio empreendimento científico e as variadas formas pelas quais ele ocorre.

35 Obviamente, e talvez infelizmente, escolhas devem ser feitas. Nós talvez desejemos fazer tudo, mas devemos perceber que se o estudante gastarem muito tempo projetando e avaliando dispositivos tecnológicos, haverá menos tempo para investigar aspectos sociais dos impactos da ciência, como o aquecimento global ou os efeitos da chuva ácida sobre as plantas. Se os estudantes passarem muito tempo estudando a história das ciências, haverá menos oportunidades para explorar oportunidades de carreiras. Aqueles que tem a responsabilidade de tomar decisões sobre o que ensinar, devem determinar a importância de cada um destes objetivos e a extensão dos mesmos em seus programas de ciências. (DEBOER, 200, p. 597)

Promover a enculturação científica dos estudantes significaria permitir que se apropriem das ferramentas fundamentais desenvolvidas pela comunidade de cientistas nas atividades de investigação e divulgação de novos conhecimentos sobre o mundo natural. Os avanços nesta área, com nas demais áreas do conhecimento humano, envolvem fatores de ordem social, e histórica. Os métodos e as práticas dos cientistas evoluem, correspondendo à evolução da cultura humana na qual suas ações estão calcadas.

Como exemplo do argumento apresentado, temos que até meados do século XX questões relacionadas à ética no exercício de pesquisas cientificas com seres humanos estavam embasadas na percepção de que determinados indivíduos da espécie humana não possuíam os direitos dos demais. Assim, atenção quanto aos riscos que determinadas pesquisas apresentavam ao serem realizadas com estes indivíduos eram menosprezados. Atualmente, contudo, praticamente todos os países do mundo tem regras claras e objetivas para a realização de pesquisas com seres humanos, que se estendem inclusive às pesquisas com outros seres vivos. Podemos nos questionar se foi a percepção da ciência da igualdade entre os seres humanos que impactou nossas definições sociais ou se foram as alterações nesta percepção social de igualdade após a queda dos regimes fascistas na Europa que ampliaram a preocupação dos cientistas com esta questão.

Há certo consenso na discussão sobre a enculturação científica realizada na escola de que existem três aspectos fundamentais na discussão sobre as ciências que devem estar presentes numa estrutura curricular. Carvalho (2007) e Sasseron (2015) apontam os chamados Eixos Estruturantes da Alfabetização Científica, que surgem da análise de referências nas áreas de ensino de ciências e apresentam ideias e habilidades que, quando desenvolvidas, permitem que o processo de enculturação ocorra. Estes eixos tratam de determinados aspectos em torno do qual devemos organizar nossas propostas de trabalho em sala de aula, de forma que os estudantes compreendam:

36 a) Termos e conceitos científicos básicos dos conteúdos curriculares da

ciência.

b) A Natureza da Ciência e os fatores que influenciam sua prática, (...) passando pela apresentação e discussão de episódios da história da ciência (...)

c) As relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente, permitindo uma visão mais completa e atualizada da ciência, vislumbrando relações que impactam as ciências e são por ela impactadas. (SASSERON, 2015, p.57)

A importância de realizarmos a enculturação dos estudantes nos modos de construir o conhecimento científico é grande, assim como os desafios para fazê-lo. Não será em aulas com cunho narrativo que este processo acontecerá, mas pela utilização de atividades que possibilitem aos estudantes se aplicar na tentativa de responder a questões reais, problemas verdadeiros acerca da relação entre a sociedade humana e o mundo natural. Vários destes problemas se apresentam diariamente aos nossos estudantes e cabe a nós professores trazê-los para o ambiente escolar, desafiando nossos aprendizes a dar respostas a estes a partir do arcabouço científico. Algumas abordagens diferenciadas em sala de aula poderiam facilitar este processo de enculturação dos estudantes, por demandar deles posturas mais ativas enquanto ofertam oportunidades de diálogo em uma perspectiva argumentativa. Passaremos a apresentar algumas destas possíveis formas de conduzir os processos de ensino, aprofundando-nos na descrição dos benefícios de realizar atividades de cunho investigativo.