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3 Tecnocultura, corpo e cultura de consumo

3.3 A cultura de consumo da “saúde perfeita”

A saúde em nosso estudo não está ligada necessariamente ao tratamento de doenças físicas. Aqui, o corpo da malhadora está servindo como base para encarnar um “tipo” de saúde que prescinde do oposto para ser objeto de preocupação e investimentos. Desta forma, a intervenção que o nosso sujeito executa em busca de saúde [a malhação], para ela, não precisa da doença para ser “justificada”.

Assim, a malhação, e o seu corpo, se encontram de forma louvável, com a concepção de corpo oficial (da cultura de consumo) divulgada, que é a da autopreservação, que a encoraja, de forma subliminar, a adotar estratégias sacrificiais para combater sua deterioração e decadência.

Estratégias essas também aplaudidas pelas burocracias do Estado, que desde o século XIX, e que não é diferente agora, buscam reduzir os custos de saúde por meio da educação do público contra a negligência do corpo, e combinada a isso, a noção de que o corpo é um veículo de prazer e auto-expressão (Featherstone, 1991).

Em outras palavras, a mídia da cultura de massa dissemina imagens de corpos “próprios” e enfatiza constantemente os benefícios que a manutenção do corpo traz, em nome da “saúde”. Imagens que conseguem agregar as duas dimensões do corpo [interior: sua funcionalidade; e exterior: sua aparência] e que por isso são tão poderosas. Nessa concepção,

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Slater (2002), Barbosa (2004) e McCracken (2003) afirmam que existe indício da formação da cultura do consumo no século XVI com o surgimento da moda que propiciou novas formas de consumo e de empresas. Data desta época também a expansão das mercadorias precedendo a industrialização, como um fato que estimulou o consumo, uma versão que contradiz a narrativa de que foi a industrialização que fez surgir a cultura do consumo. O surgimento do comércio e da negociação, advindos da expansão das mercadorias, foram aspectos fundamentais para a consolidação desta. Saberes contidos na cultura de consumo podem ser expressos pelos seguintes temas: ideologia individualista; a valorização da noção de liberdade e escolha individual; insaciabilidade; o consumo como a principal forma de reprodução e comunicação social; a cidadania expressa na linguagem de consumidor; fim da distinção entre alta e baixa cultura; signo como mercadoria e a estetização e comoditização da realidade (BARBOSA, 2004; SLATER 2002).

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Tomamos emprestado o termo de Sfez (1996), que em seu livro: “Saúde Perfeita, a critica de uma nova utopia” realiza uma crítica “ácida” ao projeto da modernidade que pode ser representada pelo termo citado. Em seu trabalho ele discute a Saúde na perspectiva dos projetos biotecnológicos que tentam criar um projeto de homem perfeito antes mesmo do seu nascimento, e a posiciona como um Grande Projeto Mundial. Ele se inspira no super-homem de Nietzsche, este que é “apenas” um ideal.

disciplina e hedonismo não são mais vistos como incompatíveis e a subjugação do corpo através de técnicas corporais contemporâneas [a malhação] é apresentada dentro da cultura de consumo como sendo uma precondição para a conquista e a liberação da capacidade expressiva do corpo. Entretanto, que expressão é essa que apenas reproduz imagens de corpos?

Assim, cabe ressaltar, como descrito no capítulo 2 deste trabalho, que várias são as formas e as resistências que a malhadora utiliza para poder fazer jus ao discurso da “saúde perfeita” [i.e., dietas milagrosas, ingestão de suplementos alimentares industrializados, overdose de atividade física, entre outras]. Assim, há que observarmos o termo numa perspectiva mediadora, por que trata de uma instituição que interfere na construção [produção], configuração, recepção e conseqüente significação da comunicação que ela própria veicula nos diversos meios, traduzida na materialidade social e na expressividade cultural do grupo social que investigamos (MARTÍN-BARBERO, 2003).

Em outras palavras, um olhar teórico que reconhece a relativização entre a realidade social e suas representações históricas, onde as instituições, as práticas sociais e culturais se articulam com os meios de comunicação em um processo complexo que privilegia formas plurais de expressividade que tentaremos desvelá-lo.

Assim, ao tomar conhecimento das instituições (academia, empresas do ramo fitness e mídia) o organismo social (as malhadoras, os professores e vendedores de produtos) e grupos que sintetizaram o nosso termo em questão, e as articulações entre práticas de comunicação e sociedade, observamos que merece destaque em nosso estudo a relação íntima estabelecida entre os praticantes de atividades físicas [a malhadora] e o que os meios de comunicação (televisão, jornais e revistas populares, livros, revistas especializadas e artigos científicos) disseminam sobre a sua prática. Nessa perspectiva, a malhação é posta numa posição dogmática que fortalece o termo “saúde perfeita” 144.

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Rojas (2002) em sua dissertação de mestrado, que se caracterizou como um estudo de cunho quantitativo elaborado nas academias de ginástica na cidade de Curitiba-PR com vias a investigar os fatores associados a aderência em programas e exercícios físicos ofertados em academias, corrobora com o discurso científico em torno dos benefícios da atividade física por meio da seguinte assertiva: Estudos destacam que pessoas mais ativas tendem a se beneficiar do efeito protetor da atividade física, como o perfil lipoprotéico favorável, aumento de glicose no metabolismo, melhoria da função hemodinâmica, perda de gordura corporal, redução do estresse, aumento da atividade fibrinolítica, diminuição do risco de queda no idoso, melhoria do sono, do humor e da percepção de bem estar (BIDDLE, 1995 e SMITH ET AL, 2000), entretanto, a autora destaca que estar em movimento não garante melhoria da aptidão física ou de seus componentes.

A característica dogmática do termo “saúde perfeita”, e do seu elemento constituinte, a malhação, surge, corroborando com a mídia, quando observamos ainda, que o estilo de vida contemporâneo localizado nas cidades pós-modernas, gera hábitos deletérios para a “saúde”. Podemos citar como exemplos os seguintes aspectos: o sedentarismo, os maus hábitos alimentares, o excesso de trabalho, o stress, a aceleração do tempo vivido, que levam o Homem a experienciar situações cotidianas que exigem menor solicitação muscular, interferindo na funcionalidade do corpo (AZIZE, 2006; MONTEIRO, 1996).

Chegamos a ponto de dizer que a “saúde perfeita” é uma mensagem dissuasiva, porque não há o confronto direto e nem o questionamento quanto a sua validade e confiabilidade porque se enuncia de forma totalitária e sublimada (VIRILIO, 1996a) e se embasa em fontes de enunciação diferenciadas que culminam em uma mesma opinião, dando um caráter naturalizado, universalizado e desistoricizado (AZIZE, 2006; SFEZ, 1996).

A “saúde perfeita” é edificada por meio do discurso científico e utópico que decorre do projeto da modernidade que, segundo Sfez (1996) se constitui em um imaginário onde: (1) se instala em nós o silêncio e limites em relação a uma comunicação total e transparente; (2) a fundação da utopia da modernidade faz um ser à nossa imagem, como homem é à de Deus, onde a condição de possibilidade implica o dualismo, dualismo da alma e do corpo; (3) a crença na onipotência de uma ciência eletrônica é acompanhada da certeza de um fim das guerras por uma democracia “transparente”; (4) a sedução e a ilusão da liberdade que é comunicada, apesar da extraordinária habilidade, não há liberdade, só há vinte e oito movimentos na imagem e (5) existe uma máquina perfeita, que não pode morrer (salvo por acidente exterior).

Em outras palavras podemos dizer que a “saúde-perfeita” é fruto de um discurso científico que dissimula o sucesso dos seus engenhos, de seus pretensos progressos, é produto de uma ciência do extremo, uma tecnociência que se desvia daquilo que deveria ser uma paciente pesquisa da realidade para participar de uma virtualização generalizada (VIRILIO, 1999a). Um devir, algo inatingível. Para Sfez (1996), a “saúde-perfeita” é também um discurso utópico devido a sua perspectiva dominante e totalizadora que se impõe sem mediação porque o observador fica sem uma perspectiva panorâmica onde ele se identifica com a brevidade do instante. É um texto que subverte outros textos onde tudo é compassível a ela, é não-contradição, ela inclui e organiza tensões, resistências, mas não combates, ganhos e perdas.

Desta forma, trabalha subterraneamente os imaginários por meio de jogos de linguagem, no modo da analogia, do deslocamento, da condensação, das leis do sonho que permitem superar as tensões de maneira não-dialética. A utopia trabalha no imaginário ultrapassando os antagonismos por sobreposições analógicas e simultâneas de pólos em tensão. Ou seja, um discurso unificador que nos faz perder a capacidade de comunicar, que é condição indispensável de seu estar no mundo, capacidade inata que normalmente nos torna aptos a fazer a distinção entre o nosso ambiente imediato e as representações que construímos para nós mesmos, nossa imagética mental (VIRILIO, 1996a).

Neste discurso, há uma resistência antimodernista que se cumpre de maneira supermodernista por meio de novas indústrias alimentícias que nascem para satisfazer as necessidades do novo consumidor. Da mesma forma, uma nova medicina está emergindo. O antimodernismo torna-se ultramodernidade ou supermodernidade. Esta transformação necessita da criação de uma nova moral do homem cotidiano: moral do bem-comer (sem colesterol), beber um pouco (vinho tinto para as artérias), ter práticas sexuais de parceiro único (perigo da AIDS), respeitar permanentemente sua própria segurança e a do vizinho (nada de fumo) (SFEZ, 1996).

Assim, é importante compreendermos a “saúde perfeita” numa perspectiva política e que se problematizem as contradições presentes e ausentes nas interações sociais cotidianas, que acontecem em um cenário onde se exige que a política recupere a sua dimensão simbólica que possa reativar o senso de coletividade. Desta forma, entendemos que o termo “saúde perfeita” é um “disfarce”, um álibi, que fomenta uma geração de pessoas e instituições, que buscam na ostentação da forma física a demarcação das diferenças sociais, inscrevendo em seu corpo as visões e divisões de mundo que remetem às relações de poder e dominação que constituem a nossa sociedade das imagens.

Em outras palavras, um discurso, poderoso, que [sobre]vive com a afluência da sociedade de consumo, que em sua essência eminentemente contraditória, cria demanda para produtos direcionados a todos os tipos de consumidores que aparentemente são constituídos de naturezas diversas (i.e., a exemplo das situações particulares em que a malhadora se insere), mas que buscam essencialmente a restauração da moralidade plugando-a de novo no corpo. Assim, cabe ressaltar que o controle sobre o corpo e a saúde não são assuntos técnicos, mas político e moral, que se posiciona no centro da utopia mobilizadora contemporânea que incita o consumo, este que norteará a discussão do próximo capítulo.