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2.3 Introdução aos atos de malhar

2.3.1 Um ato com características religiosas

O ato de malhar, logo nos primeiros dias de campo, se apresentou como sendo um ato de obrigação “quase religiosa”, ou seja, um ato que nos remete a ações incontestáveis que nos remetem aos dogmas e aos mandamentos das religiões. Ato animado por crenças que se inscreve como sendo um ato de fé, de alguém que age acreditando em função da salvação que permite a sua inclusão no mundo dos eleitos [na terra prometida].

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Para um melhor detalhamento sobre o sistema de codificação que utilizamos nesta pesquisa, ver o Apêndice intitulado Questão de Método, na seção 2.4 . NC (Extrato 50) Título: Malhar é coisa de novela aqui a gente treina. Uma personal trainer do campo em interação com sua aluna, no momento em que esta estava fazendo esteira, lhe ensina a “verdade” sobre o que ela realmente está fazendo na academia: treinando, imersa em um regime de disciplina. A personal faz ainda uma alerta para a má influência que o artefato tecno-cultural e ícone da indústria cultural, a televisão, causa deturpa, deturpando a essência do seu labor. Data: 26/07/2006; Tempo: Entrada: 16:30h – Saída: 18:10. Horas de Campo: 89h05min. Local: Treino na musculação; Horário do registro das notas: 22:00h.

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Decidimos investigar a experiência de consumo de malhar na modalidade “musculação”, primeiro por esta estar em franca ascensão nas academias de ginástica; segundo porque é o local da academia onde a maioria dos freqüentadores passa, mesmo que só para fazer exercício aeróbio, neste sentido, se apresentando como um dos espaços mais democráticos do fitness center; terceiro, por que é a atividade física que detém menos restrição para os praticantes; quarto por apresentar a lógica da velocidade dos tempos modernos, pois é a que apresenta resultados mais rápidos.

Desta forma, aqueles que não procedem como manda o livro religioso, estarão pecando e uma grande culpa incide sobre esses. Como os atores sociais, aqueles, que estão em nosso templo buscando a salvação, agem de forma a defender o seu papel social e se envolvem nos mais diversos tipos de ações e racionalizações para serem consistentes com a face que estarão exibindo em nosso espaço público.

Propomos a analogia também porque ouvíamos freqüentemente das pessoas que transitavam no campo termos religiosos, como por exemplo: “estou aqui pagando meus pecados”, “me sinto culpado quando não venho à academia”, “é um sacrifício muito grande, mas vale a pena” como se houvesse mesmo uma força maior “religiosa”, incidindo sobre a sua decisão.

Assim, sobre elas paira, então, uma obrigatoriedade em freqüentar a academia, esta que é o local utilizado para purificação e comunhão com Deus. Essa comunhão não é fácil e exige sacrifício, assim como na religião católica se confessa antes de comungar para a expiação dos pecados, elas parecem precisar de um ritual parecido para estar na sociedade das imagens. Lúcia não cometeu um pecado, mas se preparou antes de entrar no templo, como manda os rituais religiosos, para a sua consagração:

“Que cara de sono hein?” [pergunta a instrutora]

[E aquela responde prontamente]: “Ahhh, minha filha hoje foi difícil. Dei umas dez voltas pelo meio da casa de olho fechado para acordar [ela exibia um ar de riso que

parecia nem ela mesma acreditar no que tinha feito para poder ir para a academia: “correr de olho fechado”? Tinha um tom de voz acelerado e, além de estar fazendo a atividade física que acelerava o seu ritmo, pois era aeróbica, gesticulava muito denotando certa ansiedade] (NC. Ex.11. §4- lin 26-35)22”.

O indivíduo, ao se sentir coagido a executar alguma ação, o que nos faz lembrar da idéia de coerção na sociologia de Durkheim (1974) que a denomina como sendo uma ação embebida pelo fato social que exerce influência sobre a vontade individual, é porque haverá

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NC. (Extrato 11). Título: Dez voltinhas na sala para acordar e o prazer depois. Aspectos presentes na interação. Interação 17: Papéis dos interagentes: Instrutor – Praticante. Contexto: A praticante estava fazendo o transport, este é um aparelho que trabalha a condição aeróbia do individuo onde ele fica em uma posição similar à de pedalar só que de pé, evitando impacto nos joelhos. Uma das particularidades dessa máquina é que ela ajuda a processar mais calorias do que a bicicleta. Perfil da Instrutora (Lívia): 20-25 anos, estatura mediana, magra, cabelo longo, castanho cor de mel, olhos também castanho claro, está sempre com um sorriso no rosto e conversando com as alunas. O perfil dela como instrutora é mais leve, queremos dizer que ela respeita o aluno quando ele fala que a carga está pesada, por exemplo, e não tenta ficar aumentando de forma aleatória. Os temas que emergiram na interação foram: (1) Superar o sono dá prazer (2) Estratégia para vencer uma possível ruptura na apresentação da sua face. (3) A atividade física dá disposição para o trabalho. Perfil da praticante: aproximadamente 25-30 anos, alta, mais cheinha, cabelo preto, ondulado, preso, pele morena clara, vestia uma calça preta justa e uma camiseta branca da marca reebok e um tênis nike. Data: 06/04/06 (Quinta-feira). Hora de Entrada: 5:45. Horas de campo: 36h30min. Hora de Saída: 7:00. Hora das Notas: 5:20. Treino na Musculação.

algum tipo de sanção se a mesma não for efetuada. Em nosso caso, para Lúcia, essa sanção se dá da seguinte forma: “se eu não vier para a academia a essa hora, fica mais difícil de vir durante o dia. E fora que, para trabalhar você fica mais disposta, mais animada e o prazer que você sente de ter vindo é maior do que o sono. Eu penso no depois(NC. Ex.11. §4- lin 26- 35)”. Está claro, então, para a praticante que o seu sacrifício valerá a pena.

Em um primeiro momento parece ter sido uma ação meramente individual, já que ela nos diz do prazer, da animação e da disposição ganhos com a atividade física, lembremos então do conceito de representação do nosso autor, citado anteriormente, para afirmar que não construiu sozinha essa sensação que ela nos fala, já que houve, no mínimo, outros três atores envolvidos: o marketing experiencial da academia23, os instrutores e a mídia (i.e., as revistas especializadas, programas de televisão, entre outros).