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O olhar interacional para a compreensão da experiência da malhação

Todo estudo etnográfico trata de uma aproximação a um dado modo de vida a uma realidade que em algum sentido e em dado momento mostrou-se estranha para o pesquisador e o intrigou, “convidando-o” a um esclarecimento. Em busca desse esclarecimento, esta seção do trabalho elucida de maneira mais geral que específica os temas que fizeram parte da experiência da malhação. Ela objetiva descrever densamente as experiências vividas em campo por meio da observação das relações estabelecidas entre as pessoas e o mundo material e os significados que elas atribuem às interações com aquele e com os Outros [em conformidade aos estudos situados na antropologia do consumo].

Trata-se, então, primeiramente, de uma apresentação acerca da nossa vivência, que em outro momento subseqüente serão tratadas de forma concreta onde destacaremos as variedades do ato de malhar, repercutindo no final desta seção em uma abstração alusiva à experiência embebida no ato de malhar per se (a malhação), de um sujeito epistemológico (a malhadora) e do seu objeto (o corpo). Entretanto, antes de chegarmos à parte introdutória dos atos de malhar apresentamos a nossa compreensão teórica acerca das interações sociais explicitando a teoria que forneceu a luz que iluminou o nosso campo: A Representação do Eu

na Vida Cotidiana de Erving Goffman (1984).

Para o autor, estar em sociedade é representar um papel de forma expressiva, encenar um drama, participar de um espetáculo, causar uma impressão em dada platéia, seguir um

script. Sua obra foi uma reação a 3 tradições intelectuais que imperava na época dos anos 50

e 60, a saber: teoria de Talcott Parsons, a abordagem psicanalítica de Freud e as tendências positivistas presentes na sociologia da época o que nos leva à compreensão do seu trabalho como sendo uma extensão e integração da perspectiva do interacionismo simbólico17, as assertivas metodológicas da Escola de Chicago e a sociologia de Durkheim e Georg Simmel.

Seu estudo se apresenta como sendo uma teoria dramatúrgica, que inspirada no arcabouço teatral, o autor utiliza para retratar e ao mesmo tempo criticar, o quanto estamos atrelados aos padrões que os scripts sociais nos impõem para assim podermos viver a nossa realidade cotidiana, como se estivéssemos em um palco. Ele é categórico ao afirmar que é só

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Para um maior aprofundamento acerca dessa tradição de pensamento sociológica o leitor poderá fazer a leitura do apêndice intitulado: “Questão de Método” deste trabalho.

por meio das máscaras, que conseguimos interagir, já que são elas que nos fornecem pistas acerca das expectativas sobre a encenação a ser desempenhada no espetáculo, assim como a sua idoneidade e plausibilidade.

O autor parte do princípio de que o objetivo de toda interação é alcançar o equilíbrio onde o “eu” individual está, na maioria das vezes, subjugado ao coletivo, já que a natureza inerente à construção do vínculo social exige essa flexibilidade e adaptação para se fazer existir. Em sua teoria o “eu” é visto como o produto dos vários meios e situações nas quais é produzido e mantido. Em seus estudos, entretanto, a socialização não deve ser compreendida como um processo de aprendizagem de papéis, mas como um processo de aprendizagem de ação e leitura sobre as situações nas quais nos encontramos ao precisarmos definir qual das múltiplas faces devemos acessar para agir em dada situação.

Desta forma, os indivíduos “atuam” no sentido de proporcionar aos outros materiais expressivos para que eles consigam inferir pistas de ação nas situações cotidianas. Parte-se do pressuposto de que o homem, quando envolvido em qualquer interação social o faz por meio de um personagem que impacta e é impactado por uma platéia e tem o seu papel definido pelo diretor do espetáculo, que tem a função da dominância diretiva posto que é ele quem estabelece os papéis, os divide junto aos participantes do show e também traz de volta para “linha da situação” o membro da equipe que se tornou “inconveniente”.

A representação, tema central da sua teoria, é a atividade sob a qual o indivíduo se empenha durante determinado período de tempo com o objetivo de exercer influência sobre determinada platéia, que pode ou não estar fisicamente presente, se tratando, inclusive de referências que o ator pode utilizar para a sua atuação (i.e.: valores morais).

A construção da fachada, esta que é o lócus onde ocorrerá o espetáculo, é um processo denominado de realização dramática, é lá onde encontramos o cenário que contém elementos de pano de fundo que constitui o suporte no qual a peça da ação humana se desenrolará. Dessa forma, é o ambiente onde pode se observar o papel social do ator sendo desempenhado, assim como o desvelamento das expectativas do público por meio do comportamento interativo e onde a definição da situação se concretiza. O equipamento expressivo, um conjunto de informações a respeito de fatos não-aparentes que é transmitido com o intuito de as pessoas que o recebem poderem orientar sua resposta ao ator (i.e. as impressões), é institucionalizado por meio da aparência e da maneira, aspectos fundamentais para que a encenação seja crível e inconsistências entre os dois podem confundir ou decepcionar a platéia, interferindo no processo de significação da encenação.

As representações18 são tidas como fenômenos essencialmente coletivos (i.e.: o eu coletivo) simbolizadas na fachada ou região de frente por meio de ações rotineiras, expectativas padronizadas, rituais e pistas de comportamentos reificados, estes que são os processos de atribuir “concretude” a generalizações abstratas (i.e. ações cotidianas que não conseguimos explicar os porquês e para quês e que simplesmente executamos). O ator pode representar uma situação de forma proposital (controlada) ou espontânea (inconsciente) e a sua posição em relação ao papel que está encenando pode ser de convicção (quando acredita piamente na sua performance) ou de cinismo (quando não acredita no papel, mas encena mesmo assim com o objetivo de influenciar a platéia). Um fenômeno que vale ressaltar é que quanto mais o indivíduo se familiariza com o papel a ser desempenhado mais se torna inconsciente dos seus atos.

Chegamos ao ponto de afirmar que um pressuposto em sua teoria é que, por meio da interação social, a ação humana se embebe de sentido e devemos ter em mente que o comportamento humano é um processo dialético em que o indivíduo e a sociedade estão estreitamente inter-relacionados. Ou seja, as pessoas compreendem suas experiências a partir dos significados que encontram nos símbolos dos grupos aos quais pertencem e que desta forma, a linguagem se firma como uma parte essencial da vida social.

Na interação existem três papéis típicos, a saber: o ator, o responsável pela representação e que está sempre presente por meio da expressão de sua personagem causando uma impressão no público, este que participa por meio das expectativas que tem frente à encenação da peça, e os estranhos, as pessoas que ficaram do lado de fora do espetáculo, mas que em certa sentido influenciaram ou influenciam a atuação. Nas interações, desempenhamos papéis de acordo com a nossa posição social e a nossa intenção na interação. O acesso às regiões é que posiciona o papel que o ator desempenha (i.e., o ator tem acesso à região da fachada e os bastidores, já o público só freqüenta a fachada e os estranhos têm acesso à região de fora da representação). Para o autor a região é o campo que delimita a nossa percepção que interferirá na definição da situação.

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A representação é tratada como fenômeno coletivo já que: (1) ao observar uma interação podemos falar mais sobre o papel performatizado do que o ator, posto que o acesso que se tem é só ao palco; (2) o ator está em cena a serviço de um show maior que envolve outros significantes e que geralmente não é explícito; (3) a definição da situação posta ao ator geralmente está atrelada aos outros papéis que estão sendo encenados; (4) o fato de que os papéis podem ser performatizados por diferentes atores para preservar o show e (5) a representação entre atores depende da audiência que pode ou não está presente como mencionado em outro momento do texto (GOFFMAN,

Os atores com o intuito de terem suas atuações convincentes e preservarem a sua face, ensaiam o papel social que irão encenar, pensam sobre as contingências que podem interferir no espetáculo e também refletem sobre a resposta que querem obter do público processo que o autor chama de circunspecção dramatúrgica, uma prática característica defensiva para ele conseguir manipular as impressões desejadas em sua platéia; outras práticas dessa natureza consistem na disciplina dramatúrgica, que é o estar emocionalmente dissociado do papel que está representando, e, a lealdade que se refere aos segredos e aos padrões morais característicos à equipe que está atuando com ele.

Outrossim, fatores que influenciam a sua performance podem estar atrelados ao seu autoconceito (a “presença” da audiência ausente na encenação que se dá por meio dos seus valores morais ou de grupos referenciais em sua conduta) e também aos acontecimentos dos bastidores, região que só ele tem acesso e que de certa forma o liberta por alguns momentos da máscara que precisa usar para estar no palco já que é nela que alguns valores discrepantes podem vir à tona. Destarte, é importante que sejam pensados alguns mecanismos de controle sobre o que acontece nos bastidores (i.e. a proibição do acesso do público; a presença de alguns confidentes que tem acesso aos seus segredos; o controle da comunicação imprópria que possa surgir, esta podendo ser caracterizada como o tratamento que se dá aos ausentes, por exemplo, a platéia, conversa sobre a encenação e a conivência da equipe) para que o ator entre em cena bem preparado.

Por mais que o ator se prepare para a encenação, faz-se mister apontar que algumas rupturas podem acontecer que interferirão na percepção da platéia e conseqüentemente no processo de significação da encenação (i.e.: gestos involuntários dos atores ou da platéia, intromissões inoportunas de estranhos e gafes que comprometerão à cortesia da cena). O contexto também é mudado frente a algumas formas depreciativas que podem surgir (i.e.: quando o ator é forçado a tomar uma linha de conduta contrária aos seus sentimentos íntimos, quando o membro da equipe representa seu papel para divertimento secreto de seus companheiros ou quando se fazem necessárias ações de realinhamento). Um último ponto a ser ressaltado é o cuidado que se deve ter com a região de fora da representação, região onde se encontram os especialistas do espetáculo (i.e., as pessoas que vão trabalhar para a construção, manutenção e conserto do mesmo) podendo, estes, também freqüentar os bastidores devido a essa caracterização da sua função.

Em sua obra Interaction Ritual (1982), nosso autor caracteriza o ritual como sendo condição sine qua non para a existência da ordem social quando afirma que a estrutura social

é sustentada por rituais e que são estes que a estratificam. Outros aspectos relevantes que corroboram com essa aproximação é quando percebemos que a encenação pública dos rituais (i.e., de um ato social) protege o “eu” que é construído nos bastidores. É fato também, que até as situações mais íntimas exige uma estrutura ritualística para a sua experiência o que permite incluir a que estamos investigando: a experiência da malhação, que está sendo observada por nós como um ritual.

Cabe ressaltar, entretanto, que percebemos em sua obra, uma grande tensão entre um projeto sociológico claramente definido e a volta à transparência nas relações humanas que serão discutidas no capítulo que aborda a aquiescência social neste trabalho19. Em síntese, trata-se de uma abordagem microssociológica que, por meio de uma maneira rica e detalhada, fala sobre a construção social da identidade e das relações grupais, assim como a dinâmica e os significados das informações interpessoais, sobre o desempenho do papel social e a relação entre o ambiente e os processos que se apresentou como sendo uma lente adequada para observar de forma mais acurada a dinâmica do espetáculo que encenamos em nosso templo.