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Capítulo 1 – Estado e profissões em transformação social

1.4. Profissionalismo, cultura profissional e identidade

1.4.2. Cultura e Identidade Profissionais

A cultura profissional é uma dimensão central da presente análise. De facto, procuramos compreender com a presente investigação a relação entre as mudanças político-institucionais e organizacionais e a profissionalidade dos Terapeutas da fala a partir das reflexões que sobre elas fazem os profissionais. Essa profissionalidade - autonomia, poder e identificações dos Terapeutas da fala será considerada na sua relação com novas configurações institucionais. Importa por isso debater aqui, ainda que de forma sucinta, alguns dos principais contributos teórico-metodológicos cujo enfoque são as dimensões culturais das profissões.

No que se refere ao uso do conceito de cultura profissional na investigação sociológica, Telmo Caria (2008, p.751) parte dos pressupostos teóricos dos autores clássicos e propõe a integração de três princípios principais que devem ser tratados simultaneamente nas investigações sobre cultura profissional:

 Cultura é uma construção social e histórica capaz de produzir uma identidade coletiva inscrita numa relação social com “o outro”, resultante de miscigenações variadas;

 Cultura é uma prática social indissociável da análise das dimensões simbólicas do social, e nunca uma prática social divorciada das construções simbólicas dos atores sociais, ou vice-versa;

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 Cultura é reflexividade que começa por se expressar no uso de saberes práticos na interação social e por isso não parte apenas da produção e expressão discursivas.

De acordo com o autor, as configurações destes três princípios variam nas várias epistemologias da cultura (Caria, 2008).O autor identifica três principais epistemologias da cultura na tradição sociológica: da cultura-informação, da cultura praticista e da cultura - constrangimento.

A primeira, refere Telmo Caria (2008), é concebida como exterior à prática profissional. Neste caso, aquela não é concebida de uma perspetiva antropológica, e por isso inerente a toda a prática social, mas enquanto património cultural e um recurso especializado.

A segunda, que denomina de epistemologia da cultura praticista, é referida pelo autor como exterior à interação social. Esta epistemologia, que tem em Pierre Bourdieu uma importante referência, concebe a prática social determinada por posições ou condições sociais. Neste sentido, a ênfase é dada à cultura enquanto prática, e, de certa forma, manifestação inconsciente da estrutura social. Estas divisões sociais são móbil de lutas e competição num dado campo social, isto é, a cultura incorporada em condições e posições sociais é manipulada com finalidades e manifestações político-simbólicas. Neste sentido, a identidade só poderia ser traduzida em estratégias e luta simbólicas por meio de mediadores culturais. Com efeito, “a reflexividade de agentes sociais tem de se expressar em conhecimentos, obras e discursos formais e/ou abstratos, descontextualizados da interação social, ainda que referenciados a práticas sociais e a disposições associadas” (Caria, 2008, p.754).

A terceira epistemologia é designada pelo autor como cultura-constrangimento e considerada como exterior à reflexividade. Nesta, práticas e significações sociais são associadas e interdependentes, construídas na interação e independentes de condições sociais. Deste modo, “a cultura seria um objeto de análise absolutamente autónomo da estrutura social, com efeitos próprios na organização social” (Caria, 2008, p.755). O autor refere ainda, neste âmbito, duas abordagens distintas. Uma em que o enfoque é a ordem cultural de natureza normativa e em que os papeis e estatutos sociais se expressam numa ordem cultural integrada; outra, em que o enfoque é a ordem estrutural, uma representação, uma estrutura de sentido do mundo social. Sendo vista

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como prática interpretativa contingente aos contextos redunda em relativismo, reduzida à dimensão da interpretação conjuntural da realidade e, por conseguinte, um discurso arbitrário (Caria, 2008).

Na proposta de Caria, a cultura não se reduz a um esquema prático ou discursivo, ela “expressa uma identidade social, como consciência (coletiva e individual) de uma interdependência (sem automatismos sociais) entre prática social e condições sociais e históricas dadas (os constrangimentos e as estruturas sociais e simbólicas) (Caria, 2008, p.757). Para além desta expressão identitária, para o autor, a cultura também deriva e atualiza-se nas relações intersubjetivas com “o outro” através de uma reflexividade que se constrói na interação social. Esta construção inscreve-se num uso desigual de regras e recursos pelos atores em presença pelo que também pode, neste sentido, reproduzir estruturas e sistemas sociais e simbólicos. Assim, e embora o autor se interesse, particularmente, pela segunda dimensão, isto é, pela criação microsssocial desses elementos culturais a partir da reflexividade – reflexividade interativa; concebe igualmente, na senda de Giddens, uma reflexividade institucional que medeia a relação entre estrutura e ação social. Para o autor, aquela reflexividade interativa é particularmente relevante no caso de grupos profissionais com responsabilidade na reflexividade institucional da modernidade e que, ao mesmo tempo, “têm que recontextualizar o conhecimento abstrato em saberes experienciais e em práticas em situação, para serem capazes de intervir socialmente com legitimidade, eficácia estratégica e especificidade contextual” (Caria, 2008, p.758).

Telmo Caria (2009) recorre, na linha de fundamentação da sua proposta epistemológica de cultura, a Claude Dubar afirmando a relação entre as diferentes transições histórias e as formas identitárias. A partir do modelo proposto por Claude Dubar, aponta que as sociedades de modernidade tardia “cujas instituições revelam continuadas crises de legitimidade, supõe competências reflexivas acrescidas ao nível individual e, em consequência, formas identitárias narrativas que visam maximizar a adaptabilidade e flexibilidade dos indivíduos face à progressiva incerteza no reconhecimento do sentido mútuo da ação (Filipe, 2008, pp.201-409) e relativizar a ordem simbólica de um mundo cada vez mais multicultural por via de identidades pessoais hibridas (Magalhães, 2001)” (Caria, 2008, p.759). Para além das formas identitárias narrativas, as reflexivas são igualmente sublinhadas por Caria como

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relevantes e adotadas pelo mesmo quando aborda as culturas profissionais. Para Caria, as identidades narrativas constituem uma nova forma identitária nas sociedades modernas em transição reflexiva e neste sentido advoga que “ a cultura profissional refere-se à transição de identidades estatutárias (formas modernas simples de institucionalização de pertenças e/ou destinos sociais de classe social, género, etnia, nação, etc.) para identidades narrativas, no contexto de solidariedades orgânicas e das racionalidades instrumentais e mercantis do mundo social global” (Caria, 2008, p.759). O autor advoga uma tendência social global de emergência de uma cultura profissional que não se reduz a uma reconfiguração de identidades estatutárias mas a um “compromisso entre as formas estatutárias e as formas narrativas identitárias” (Caria, 2008). Para o autor, importa compreender as mudanças das formas identitárias contemplando quer a afirmação pelos profissionais de um poder autónomo, quer a abertura do universo simbólico no sentido de uma partilha de saberes (Caria, 2008).