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Capítulo 1 – Estado e profissões em transformação social

1.2. Estado e profissões

1.2.3. O modelo burocrático-profissional do Estado-Providência

Importa, por isso, distinguir um duplo papel do Estado, em particular nas designadas profissões do Estado-Providência. Negreiros (1993, p.9) advoga que “ Os Estados estão implicados, de forma direta ou indireta, em vários aspetos do percurso das profissões: no ensino, no licenciamento e reconhecimento, na organização, no mercado de trabalho, assim como nas relações entre as profissões. O poder, a riqueza e o prestígio de algumas profissões depende largamente das políticas de Estado no respetivo setor”. Rodrigues (1997, p.123) postula nesse mesmo sentido que “se o conhecimento é o elemento essencial na construção do poder profissional, em muitas abordagens a articulação com projetos políticos que utilizam esse mesmo conhecimento para a definição de problemas e para a sua solução é um elemento imprescindível para a ampliação ou manutenção”.

O Estado-Providência emerge no pós-guerra, no quadro da reconstrução do Estado-Nação, envolvendo-se na economia e na indústria com vista à diminuição das desigualdades e conflitos sociais decorrentes do modo de produção capitalista. Há, à altura, um consenso generalizado sobre o papel do Estado na estruturação de sistemas de segurança social, saúde e educação que eram interpretados como investimentos coletivos. Ora, a administração burocrática do Estado e as profissões estão intimamente relacionados no processo de desenvolvimento do Estado-Providência. Estes são os dois modos de organização basilares na organização do Estado-Providência. Da primeira, espera-se justiça e uniformidade no tratamento e constitui o garante da igualdade de

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tratamento, sendo social, política e pessoalmente neutra; da segunda, um serviço desinteressado e fundamentado em conhecimento especializado (Carvalho, 2009).

Assim, para Carvalho (2009), os princípios subjacentes à organização do Estado- Providência são a hierarquia, a continuidade e a impessoalidade. Estes três elementos constroem o tipo-ideal de burocracia sustentados no conceito de autoridade legal- racional. A autora descreve estes princípios a partir do contributo weberiano da seguinte forma: “a hierarquia, que traduz a existência de uma divisão hierárquica do trabalho, onde cada funcionário tem uma competência definida e é responsável pelo seu cumprimento perante um superior; a continuidade, traduzida por uma ocupação remunerada, a tempo inteiro, apoiada numa estrutura de carreira com garantias de promoção; a impessoalidade, baseada em procedimentos e regras escritas e prescritas na competência, no mérito e na formação, os funcionários devem ser sancionados segundo as suas competências e qualificações” (Carvalho, 2009, p.31). Por outro lado, a partir das propostas teóricas da gestão científica de Taylor, o Estado-Providência é baseado na ideia de divisão social do trabalho a partir da especialização de tarefas, com correspondente valorização da padronização (Carvalho, 2009).

Em síntese “ a combinação de taylorismo /fordismo, e dos regimes burocrático- profissionais de regulação e controlo, com os princípios keynesianos de organização da economia, incluindo a assunção da importância do papel do Estado na correção das falhas do mercado, constituem a base de sustentação do Estado-Providência” (Carvalho, 2009,p.32). Com efeito, este constituiu a estrutura de legitimidade, autoridade e significação de referência na estruturação político-institucional do Estado-providência.

Assim, após a segunda guerra mundial, o desenvolvimento dos serviços públicos promoveu as profissões na medida em que foi através delas que as políticas puderam ser colocadas em prática. Duas relações ocorrem em simultâneo. Por um lado as profissões contribuíram para a formação do Estado moderno e o Estado favoreceu monopólios e privilégios (Carvalho, 2009). Marques (2014, p.49) refere a este propósito que “ no modelo continental predominam as associações profissionais (corporações públicas) que detêm poder de autorregulação delegado pelo Estado (no quadro de medidas legislativas e administrativas), bem como a mobilização de conhecimento dos profissionais no seio da burocracia estatal, contribuindo para o desenvolvimento dos Estados modernos, em particular na concretização das políticas públicas”.

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Para Carvalho (2009), um contexto de rutura do consenso estabelecido no pós- guerra emerge por motivos económicos, sociais, de perda de legitimidade das organizações profissionais, e teórico-científicos. Esse conjunto de mudanças conduziram “diferentes governos a introduzir reformas e medidas de reestruturação na administração pública, com o objetivo declarado de alterar as formas de organização e gestão dominantes, até então aceites como legítimas” (Carvalho, 2009, p.33). No que ao contexto económico e social diz respeito, a passagem de um sistema fordista de produção e consumo para um pós-fordista caracterizado pela flexibilidade do mercado e da força do trabalho, pelo predomínio dos serviços e de mercados mais diferenciados de consumo, deu origem a um Estado-providência do tipo pós-fordista. A reconfiguração do Estado acompanhou as tendências económicas e sociais, desenvolvendo-se processos de descentralização e flexibilização e “procede-se à passagem de serviços universalistas e coletivos para novas formas caracterizadas por serviços mais variados, orientados para mercados mais específicos e residuais, distribuídos através de uma variedade crescente de organizações” (Carvalho, 2009, p.36). Embora se assumam as pressões decorrentes das crises económicas e fiscais como subjacentes a esta restruturação, afirmam-se igualmente opções ideológicas, em particular por parte de políticos neoliberiais que transformam a crise do Estado-Providência na crise do modo de organização burocrático-profissional e é neste sentido que se estabelece uma perda de legitimidade das profissões. A quebra de consensos emerge igualmente no contexto teórico- científico, em que o intervencionismo do Estado na sociedade constitui um obstáculo a uma maior eficiência na garantia do bem-estar social. A ideia de menos Estado e mais mercado e a inevitabilidade da reestruturação do Estado-Providência constituem os marcos mais significativos daquele contexto (Carvalho 2009).