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Capítulo 1 – Estado e profissões em transformação social

1.3. Processos de profissionalização/desprofissionalização

O debate que aqui se desenvolve prende-se com o sentido da evolução das profissões no contexto das transformações sociais, culturais e económicas em curso nas sociedades contemporâneas: de uma manutenção ou incremento dos privilégios e poderes dos grupos profissionais; ou de um declínio do poder profissional, económico, social e político daqueles (Rodrigues, 1997) e as especificidades e multidireccionalidade destes processos em cada espaço-tempo. Neste sentido, torna-se relevante iniciar o debate enunciando alguns dos principais contributos teóricos sobre o que é identificado como poder profissional nas sociedades.

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Para Jonhson, o principal recurso do poder profissional é a posição de um grupo profissional na divisão social do trabalho e tem que ver com a sua ligação às classes dominantes e com a sua contribuição para a produção de lucro e reprodução das relações sociais. Com efeito, o autor advoga que as profissões resultam da divisão do trabalho e, neste sentido, a especialização produz relações de dependência social e económicas, mas também de distância social em relação aos consumidores (Rodrigues, 1997).

Para Freidson, como vimos, o poder profissional advém das competências que conferem autonomia e poder sobre o próprio trabalho, ou seja, a possibilidade de definir a forma como o trabalho deve ser realizado, e as fontes do poder profissional são o conhecimento, as credenciais e correspondente autonomia técnica – autoridade que é estabelecida por processos políticos e sociais (Rodrigues, 1997). Isto é, “o conhecimento em si não confere especiais poderes: só a exclusividade, traduzida no controlo sobre o recrutamento, a formação e a realização do trabalho de criar, divulgar e aplicar o conhecimento, conferem poder aos que o possuem” (Rodrigues, 1997, p.52). O poder do Estado na organização legal desta exclusividade é outra dimensão de análise evocada pelo autor, exigindo mobilização política por parte dos profissionais para obtenção de autonomia e controlo sobre o próprio trabalho (Rodrigues, 1997). Por seu lado, Larson elege o monopólio e o fechamento do mercado, transformando “recursos escassos (conhecimento e competência) em outras (recompensas económicas e sociais)” (Rodrigues, 1997, p.55).

A questão que se coloca relativamente ao poder profissional é a de saber qual o sentido da evolução do profissionalismo enquanto princípio de organização nas sociedades contemporâneas e da centralidade do conhecimento nessa regulação. Autores como Bell advogam que o conhecimento, embora sempre tenha sido importante no funcionamento das sociedades, adquire nas sociedades pós-industriais uma nova relevância. Assim, sublinha “a primazia da teoria sobre o empiricismo e a codificação do conhecimento num sistema abstrato de símbolos; a emergência de novas indústrias muito dependentes do desenvolvimento de conhecimento teórico; os homens da ciência como figuras dominantes e os profissionais como a nova classe emergente na nova sociedade legitimada pelo conhecimento e não pela propriedade, prevalecentemente orientada pelas normas do profissionalismo e não do autointeresse” (Rodrigues, 1997,

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p.65). Freidson opõe-se a esta proposta teórica, afirmando que os profissionais apenas terão essa centralidade dependendo da maior ou menor difusão do princípio profissional na sociedade, pois só dessa forma poderão aplicar os seus conhecimentos e competências (Rodrigues, 1997). O autor propõe duas dimensões para analisar as condições que afetam o controlo ocupacional do trabalho: o grau de especialização e a complexidade na divisão do trabalho.

O conjunto de teses que advoga a centralidade dos profissionais nas sociedades contemporâneas afirma a possibilidade daqueles influenciarem a estrutura social. Maria de Lurdes Rodrigues refere a este propósito que:

“Assim, uma sociedade profissional é mais do que uma sociedade dominada por profissionais – é uma sociedade imbuída do profissionalismo na sua estrutura e no seu ideal, identificando o papel das profissões e do ideal profissional – valorização da expertise e da seleção do mérito -, e o ideal de cidadania – igualdade de oportunidades – como a origem do Estado-providência, cuja participação na economia e na vida social levou também a expansão das profissões” (Rodrigues, 1997, p.67).

Outros autores, como Tourraine e Bourdieu, embora perspetivem esta centralidade dos profissionais na sociedade destacam que a dominação exercida por aqueles pode constituir uma ameaça tecnocrática (Rodrigues, 1997).

Como atrás referido, às teses da profissionalização e do crescente poder dos profissionais nas sociedades contemporâneas opõem-se as teses que postulam tendências de sentido oposto. Duas teses principais são avançadas: a da desprofissionalização e da proletarização. A tese da desprofissionalização é postulada por Haug para quem três aspetos principais contribuiriam para a perda de autonomia, poder e autoridade profissionais: a menor passividade dos consumidores e uma maior expetativa de participação; uma crescente escolarização e informação da população; a especialização e a rotinização e codificação da informação (Rodrigues, 1997; Freidson, 2001). Para a autora “efeitos combinados da ação dos clientes/consumidores e da evolução tecnológica (…) envolve (i) a erosão do monopólio do conhecimento, (ii) a (des) confiança no ethos humanitário dos profissionais, (iii) a perda de autonomia e autoridade, bem como do respetivo estatuto (Rodrigues, 1997,p.70). A autora distingue ainda o termo profissional do de expert no que se refere ao poder e autonomia e refere a este propósito que “pode solicitar-se a opinião, as recomendações e o parecer de experts e depois decidir, tomando ou não em consideração o parecer dado, o que é diferente no caso dos profissionais, em que se sente compulsão social para aceitar o seu ponto de vista como as últimas palavras (Haug cit. por Rodrigues, 1997).As principais críticas

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endereçadas às propostas de Haugh prendem-se com o facto de as alterações ao nível técnico e do conhecimento implicar processos multiformes em diversos contextos profissionais e uma renegociação da relação de forças (Greer, 1982; Couture, 1988), o aumento da tecnicidade do trabalho profissional resultante da competição no sentido de conservação do monopólio e fuga à desvalorização social (Bourdieu, 1989), assim como a enfâse que por aquela autora é dada aos fenómenos culturais e políticos e menos aos económicos e organizacionais (Freidson) (cit. por Rodrigues, 1997).

As teses da proletarização, que têm em Oppenheimer o seu protagonista, postulam uma dupla perda dos profissionais: a proletarização técnica, isto é, a perda de controlo sobre o processo e produto do próprio trabalho; e a proletarização ideológica – que significa uma perda dos valores profissionais pela retirada do controlo sobre o seu trabalho e da relação com a comunidade (Rodrigues, 1997; Freidson, 2001). Por proletarização profissional o autor entende “o declínio de competências e qualificações e da autonomia do trabalho dos profissionais, resultante dos esforços administrativos e burocráticos para melhorar o controlo sobre o processo produtivo” (Rodrigues, 1997, p.74). Neste sentido, as características e condições do posto de trabalho são determinadas por autoridades externas, públicas ou privadas, que o fragmentam, desqualificam e rotinizam. Os projetos, tarefas, ritmos e procedimentos são operados pelas organizações. Assim, de acordo com Braverman (1997) “o desenvolvimento das sociedades modernas capitalistas tem desqualificado os trabalhadores qualificados e degradado os seus valores, a dignidade das duas tarefas e a identidade e autonomia que o caracterizavam. O resultado é a alienação no trabalho” (cit. por Rodrigues, 1997, p.75). Este processo é promovido pelas exigências de aumento de produtividade, a necessidade de simplificar e rotinizar o trabalho por forma a baixar os seus custos, aumentando, por outro lado, o controlo sobre os trabalhadores (Rodrigues, 1997).

Citando Jarausch (1990), Freidson refere, quanto à vulnerabilidade das profissões a processos de desprofissionalização decorrentes da ação do Estado, que o profissionalismo não é apenas parte das instituições económicas e políticas que o protegem e dão poder à prática de uma especialidade técnica, mas é, também, uma ideologia, isto é, um conjunto de valores (Freidson, 2001, p.131). Desta forma, a questão é a da independência técnica, assim como ética. Freidson advoga que o poder profissional se mantém nas sociedades atuais e que os profissionais mantêm autonomia

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no mercado de trabalho e na divisão de trabalho e que não há um enfraquecimento das instituições do profissionalismo. O autor advoga, outrossim, uma perda de controlo dos fins do trabalho profissional.

Para Abbott (1988), a análise do poder profissional tem que assentar no trabalho e no conflito interprofissional. Desta forma, o cerne da análise deverão ser os grupos com um trabalho comum, um sistema de profissões, e a jurisdição enquanto ligação entre trabalho e profissão. Assim, o móbil da profissionalização é a fixação da jurisdição e o conhecimento abstrato, ou o controlo cognitivo, o seu recurso mais relevante que favorece a dominação face ao Estado, outros grupos profissionais e clientes ou empregadores. Assim, no quadro de mudanças internas e externas no sistema profissional resultam em processos multidirecionais de ganho e perda de legitimidade social e poder (cit. por Marques,2014).

A evolução teórica do estudo sobre o fenómeno profissional vem incidindo sobre a multidireccionalidade dos processos e a recusa das teses de tendência – positiva ou negativa do poder profissional. Com efeito, os contextos reais de trabalho constituem quadros diferenciados e complexos. Vários estudos empíricos colocam-nas em causa. Por exemplo, Rodrigues evoca os estudos empíricos de Derber e Schwartz (1988;1992) que ao aferirem os parâmetros de profissionalização: autonomia, autoridade, satisfação no trabalho, conflito e identificação com os objetivos da organização, concluem por uma não inevitabilidade da proletarização dos profissionais (Rodrigues, 1997).