• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3 – Abordagem Empírica

3.2. Mudanças institucionais e Terapeutas da Fala

3.2.1. Mudanças nos contextos de trabalho regulados pelas políticas públicas

No presente subcapítulo da abordagem empírica debruçamo-nos sobre as perceções dos Terapeutas da Fala quanto à sua autonomia profissional no quadro das configurações institucionais e organizacionais da prática profissional. Assim, pretendeu- se aceder às suas perceções relativamente às mudanças nos princípios de regulação profissional. Orientamo-nos pela questão da autonomia profissional – do princípio profissional - na relação com formas externas de regulação profissional, designadamente, com o modelo burocrático-profissional do Estado-Providência e com a NGP.

Na análise da relação entre aqueles profissionais e a regulação pelo Estado, no quadro dos padrões de prática e regulação implementados a partir das políticas públicas dirigidas a crianças e jovens com deficiência, destacaram-se os seguintes aspetos nos discursos dos Terapeutas da Fala entrevistados: dificuldades na construção da cultura profissional nas novas formas político-institucionais e organizacionais; uma regulação externa que não contempla a família como elemento central da intervenção terapêutica (em contradição com cultura profissional) por força da inserção em contexto escolar; restrição de recursos alocativos com implicações na autonomia no quadro cultural da jurisdição; a flexibilização dos vínculos laborais; a presença dos Terapeutas da Fala na escola e na comunidade como elemento facilitador da prática profissional; uma alteração dos princípios de regulação típicos do Estado-Providência – hierarquia, continuidade e impessoalidade.

As Terapeutas da Fala sublinham, nos seus discursos, a necessidade de tempo e rotinização para a criação de um trabalho colaborativo com impacto na comunidade e no longo prazo. Assim, em particular nas novas formas institucionais e organizacionais descentralizadas e flexíveis, e orientadas para uma intervenção comunitária – Centros de Recursos para a Inclusão (CRI) e Equipas Locais de Intervenção Precoce na Infância (ELI) – há a perceção de um défice na regularização das práticas profissionais, na construção de uma cultura profissional e consequentemente de integração social.

“Sinceramente, do que observo, o impacto é reduzido. (…) ainda não conseguiu criar mudança no sentido desta envolvência e nestas práticas comuns que deve haver entre agentes de educação e terapeutas….Nas unidades não tenho muito opinião formada...acho que, quer dizer, é igual ao CRI, acho que não houve tempo, se calhar, para haver um trabalho conjunto ou cooperativo entre

72

os profissionais da educação e dos terapeutas e acho sinceramente que neste momento é um bocado...” (e1).

Com efeito, um aspeto central que emerge na análise dos discursos tem que ver com a cooperação entre profissionais nas novas formas político-institucionais descentralizadas. De facto, verifica-se nos profissionais entrevistados uma perceção de défice de integração social, isso é “de reciprocidade de práticas entre atores em circunstância de copresença, entendida como continuidades e disjunções de encontros” (Giddens, 1989, p.442). De facto, nestas novas formas de organização os profissionais parecem denotar falhas nos meios de construção de identidade característica de organizações completas (Evetts, 2012).

No que se refere à cooperação profissional, no caso dos profissionais que trabalham nas unidades e escolas de referência contratados pela DGAE em que há coincidência entre a organização que contrata e onde se desenvolve a prática, a presença sistemática na escola é identificada como fator promotor de confiança e cooperação interprofissionais.

“Aquilo que eu sinto, a nível de mais-valia, é que primeiro acho que há uma relação maior de abertura com os profissionais que estão nas salas. Primeiro, porque eles sentem que nós fazemos parte da equipa e aquilo que eu tenho às vezes conversado sobre colegas que vieram de fora, é que quando eles vêm de outra instituição, eles sentem que de alguma maneira estão a ser avaliados. E acaba às vezes pela relação ser mais difícil. E nós no fundo fazemos parte da equipa. Tudo é feito em conjunto. E acho que é bastante facilitador para a relação e para o trabalho em equipa” (e2)

Um aspeto considerado central na prática dos profissionais tem que ver com uma prática profissional centrada nas necessidades das famílias das crianças e jovens com deficiência. Contudo, na análise dos discursos das Terapeutas da Fala essa relação com as famílias é referida como não sendo contemplada na regulação da sua prática profissional no âmbito das políticas públicas, designadamente quando a intervenção ocorre em contexto escolar.

“Deu-se mais valor ao trabalho em equipa dos profissionais. Por isso, o terapeuta da fala, outros técnicos e professores que é onde as crianças também passam bastante tempo, mas acabou por se diminuir o contacto que se tem com as famílias. Nem sequer é obrigatório. E, por isso, ou depende da boa vontade e disponibilidade, quer dos terapeutas, quer das regras dos agrupamentos em que os terapeutas estão a trabalhar ou então pode decorrer quase um ano letivo e não haver quase contacto nenhum entre a família e os profissionais que estão a atuar” (e4).

Ao não estar regulado um aspeto da prática profissional considerado fundamental pelos Terapeutas da fala - o contacto com as famílias, o mesmo não é previsto do ponto de vista da organização do seu tempo de trabalho. O controlo do trabalho, em particular do tempo, emerge como central na análise da regulação do trabalho profissional. Por um lado, porque a regulação externa do trabalho dos

73

profissionais não contempla dimensões centrais da sua cultura profissional e, por conseguinte, não são contempladas na organização do seu tempo de trabalho. Por outro lado, o défice de recursos humanos e as restrições de recursos financeiros para implementação das políticas públicas decorrem em restrições no tempo disponível para o Terapeuta da Fala estar com cada criança/família. A limitação de recursos alocativos no âmbito dos cortes no financiamento no setor público no âmbito da NGP (Evetts, 2012) é percecionado como fator limitador da autonomia profissional, delimitando o tempo disponível para estar com cada criança/família, menor do que aquele que os profissionais consideram necessário.

As ELIs…já não tenho essa perceção ….devido à quantidade de crianças que acompanham e acaba por ser um trabalho menos frequente do que aquilo que às vezes as colegas achavam que devia ser. E do CRI acho que é mais ou menos a mesma avaliação. Acho que a frequência de terapia dada às crianças e o tempo que devia haver para estar com os professores e estar com os pais não é suficiente”(e8)

Por outro lado, a adoção de princípios de flexibilização na contratação dos Terapeutas da Fala, característicos da NGP (Evetts, 2011), é descrita como limitadora do desenvolvimento de um trabalho contínuo que favoreça o impacto da intervenção do Terapeuta da Fala, assim como a estabilidade profissional e pessoal.

“Todos os anos temos que concorrer, não sabemos ao certo que vagas abrem, o que é que não abre, se vamos ter algum tipo de prioridade ou não vamos... Limita o trabalho a longo prazo, um trabalho mais coordenado e..a própria estabilidade... pessoal...que mexe connosco e acaba de alguma maneira por afetar o nosso trabalho. Para além do tempo de intervenção porque os contratos começam tarde e somos colocadas tarde”(e2)

No entanto, são identificadas diferenças entre os profissionais contratados pelas DGAE e pelos CRI. Quando os agrupamentos de escolas recorrem aos CRI para suprir as necessidades ao nível dos apoios terapêuticos em Terapia da Fala nas Unidades de Multideficiência e Autismo, fazem um levantamento prévio do número de crianças e tempo de intervenção semanal necessários para cada ano letivo que disponibilizam à Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE). Assim, as crianças a serem apoiadas e o tempo de intervenção a disponibilizar a cada um são dimensões da autonomia profissional dos Terapeutas da Fala contratados pela DGAE mas não das Terapeutas da Fala contratadas pelo CRI que desenvolvem a sua prática profissional naquelas Unidades de Multideficiência e Autismo. A separação entre o financiador e o prestador, elemento igualmente característico das novas formas político organizacionais da NGP (Evetts, 2012) é mediada por uma quantificação de necessidades. Essa

74

quantificação introduz princípios burocráticos num ato que é inerente ao quadro cultural da jurisdição profissional.

“A nível de liberdade, a nível da liberdade de escolha dos alunos que queremos apoiar, o número de apoios que damos, o tempo que estamos em cada sítio….Neste momento está tudo muito dependente de nós. Nos Centros de Recursos eles vêm já com as horas limitadas para cada um…” (e2)

A intervenção dos Terapeutas da Fala nas escolas e na comunidade, nos contextos de vida das crianças, é identificado como elemento facilitador da prática profissional, em particular, quando a presença é sistemática, facilitando a integração social por meio do reconhecimento e legitimidade cultural.

“Acho que é extremamente positivo poder estar diariamente no contexto escolar, acho que faz diferença a estar pontualmente. As equipas acabam por ser diferentes e a visão que todos têm sobre nós. (…) Se calhar torna muito mais explícita a sua atuação e mesmo que no início não haja um conhecimento claro do que nós fazemos, pela frequência dos contactos, pela nossa presença na escola, acaba por ser mais rápido, pelo menos é a experiência que eu tenho, levar à mudança quer da própria criança quer dos próprios profissionais.(…)” (e6)

Assim, os princípios da descentralização, flexibilização, a separação entre financiador e prestador e as restrições financeiras do Estado-Providência (Evetts, 2012) são elementos descritos pelas Terapeutas da Fala como passíveis de conflituar com princípios do profissionalismo tal como a construção de uma cultura profissional, o controlo sobre o trabalho - a gestão do tempo, a seleção dos casos e dos tempos alocados a cada um, numa interferência com o quadro cultural da jurisdição profissional. Para Abbott (1988) a natureza do trabalho profissional orienta-se para a resolução de problemas e incorpora três elementos centrais da prática: diagnóstico, tratamento e a inferência. Estes elementos, associados ao conhecimento académico constituem o quadro cultural da jurisdição.

Contudo, a presença destes profissionais nas escolas e na comunidade, numa intervenção nos contextos de vida das crianças e jovens é identificado como princípio facilitador das práticas profissionais.

Com efeito, é possível identificar a presença de princípios de regulação típicos da NGP e uma omissão dos princípios característicos da organização burocrático- profissional do Estado-Providência. A flexibilidade altera os princípios da continuidade – traduzida por uma ocupação remunerada, a tempo inteiro, apoiada numa estrutura de carreira com garantias de promoção; e da impessoalidade – baseada em procedimentos e regras escritas e prescritas na competência, no mérito e na formação, em que os funcionários são sancionados segundo as suas competências e qualificações (Carvalho,

75

2009, p.31).Por outro lado, a descentralização, e organização local em rede, alterou o princípio da hierarquia típico do Estado-Providência caracterizado pela “existência de uma divisão hierárquica do trabalho, onde cada funcionário tem uma competência definida e é responsável pelo seu cumprimento perante um superior” (Carvalho, 2009, p. 31). A separação entre prestador e financiador levou a que a organização que contrata seja diferente daquela em que se desenvolve a prática profissional, designadamente no caso dos CRI e das ELI. O desenvolvimento da prática profissional e, neste sentido, a perceção de competência, depende de outros profissionais nos contextos de vida das crianças, designadamente educadores, professores mas também das famílias.

Sublinha-se, neste ponto, o aspeto da dependência e autonomia na prática profissional que desenvolveremos mais à frente. Parece denotar-se uma maior dependência dos outros para obter os resultados que os profissionais consideram relevantes mas que depende do reconhecimento profissional. Emerge, por conseguinte, a centralidade da análise do poder no sentido que lhe é atribuído por Giddens (1979), enquanto capacidade transformadora “ao modo de interação em que a capacidade transformadora surge envolvida nas tentativas dos atores para conseguirem que os outros ajam de acordo com as suas vontades. O poder, neste sentido relacional, diz respeito à capacidade dos atores para salvaguardarem resultados sempre que atingir esses resultados dependa da ação de outros” (Giddens, 1979, p.91).

“Em relação à intervenção precoce, a perceção que eu tenho é a de que o apoio não é um apoio tão…o apoio é mais baseado numa visão holística da criança e da intervenção nos contextos de vida dela e com as pessoas com quem ela interage e muito na capacitação dessas pessoas como suporte e não passando tanto pelo papel ativo, ou direto do terapeuta da fala (…) Os outros contextos como as ELI e os Centros de Recursos, acho que o contacto é menos frequente com a criança em si, e acaba também por ser uma mudança mais lenta. Acho que a variável, ou a tónica fica mais nos outros agentes do que em nós. O que, dependendo das pessoas com quem estamos a trabalhar pode ser mais positivo ou negativo. Acaba por ser menos controlado o processo” (e6)

Na relação entre as mudanças político-institucionais e a profissionalidade interessou-nos explorar mais detalhadamente três dimensões relevantes na análise dessas mudanças: compreender a perceção dos terapeutas da fala relativamente a uma maior abertura do seu mercado profissional, de incremento de princípios de concorrência e de mercado na prestação de apoios terapêuticos especializados em Terapia da Fala ou de um incremento dos princípios organizacionais nessas novas formas político-institucionais. A análise dessas dimensões será aprofundada nos seguintes subcapítulos.

76