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2.3 O estudo da alimentação no Brasil

2.3.2 Cultura e Identidade

Posteriormente, nos estudos de comunidade, a comida ganha força como objeto de pesquisa para entender a relação do homem com os meios disponibilizados pelo seu habitat, sem perder de vista a dimensão cultural que alicerçava as práticas alimentares, entre as quais, os tabus e prescrições.

Em sua revisão sobre os estudos de antropologia da alimentação no Brasil, Ana Maria Canesqui traça um painel que ressalta o papel dos estudos de comunidade, da década de 40 à década de 60, na investigação das questões relativas à alimentação, que enfocavam a dimensão cultural desta prática, manifestada, principalmente, por meio das crenças, tabus (proibições) e prescrições; se voltavam para as fontes de produção e abastecimento alimentares das economias de subsistência e extrativistas; para entrada dos produtos vindos dos centros urbanos; também a composição das dietas com base nas crenças, o preparo dos alimentos, hábitos e classificações alimentares, como as de “quente/frio”, “fortes/fracos” (CANESQUI, 1988:209)

Dntre os trabalhos listados por Canesqui (1988) nesse período, encontram-se os estudos de (FERRARI, 1960; PIERSON, 1944, 1951; WAGLEY, 1957; SCOTT, 1966 apud CANESQUI, 1988) Destaque para os estudos de Candido (1971), que, segundo Canesqui (1988), ampliou e renovou os estudos de comunidade anteriores e explicou as mudanças, a partir da produção dos meios de sobrevivência, das relações entre o homem e seu habitat na

provisão daqueles meios."Aquela vontade" que terá que adequar-se às condições objetivas. "Fome psíquica" é o termo usado por Candido (1971), em seu estudo entre os caipiras paulistas, para designar o constante desejo frustrado dos alimentos mais prezados: a carne, o pão, o leite, escassos naquele meio. Essa perspectiva também é sugerida pelo trabalho de Mello & Souza (1971), como ressalta Canesqui (1988), que, a partir de uma abordagem histórica, buscaram compreender e comparar diferentes agrupamentos rurais de vários estados brasileiros na perspectiva de encontrar “aspectos da mudança cultural (tecnologia, crenças e valores) que se impõem às sociedades tradicionais graças ao desenvolvimento capitalista urbano-industrial” (CANESQUI, 1988:208).

O tema da alimentação ganha novo impulso a partir da década de 1970. Os estudos antropológicos voltaram-se, então, para a cidade, especialmente, para desvendar o modo de vida dos grupos socialmente desfavorecidos, compostos de um conjunto de práticas e representações (formas de pensamento e ação), entre elas a alimentação.

O foco de análise volta-se para as categorias da dietética popular. Os estudos etnográficos, realizados junto às classes trabalhadoras em diferentes partes do país, trataram de temáticas diversas, tais como: representações e práticas de saúde; alimentação, corpo e doença; estratégias de sobrevivência e consumo; hábitos e ideologias alimentares; e o simbolismo da comida, entre outras.

Apesar da heterogeneidade das abordagens teórico-analíticas, e da variedade dos temas em torno da alimentação, baseadas, em alguns casos, no estruturalismo Lévi-straussiano (PEIRANO, 1975), ou em análises que privilegiavam o estruturalismo de Douglas (MAUÉS & MAUÉS, 1978), até perspectivas que lançavam olhar crítico a essas classificações, como as de Velho (1977), que teceu sua crítica:

a busca dos vários princípios classificatórios que presidem os hábitos alimentares evidenciados, em cada caso, uma vez que a relação entre os alimentos e a natureza e a sociedade, antes de configurar formas de pensamento, remete às formas concretas e historicizadas. (CANESQUI, 188: 209).

Classificações dicotômicas, como as de “quente-/frio”, “forte/fraco”, “reimoso/descarregado”, orientaram as análises sobre os tabus e prescrições alimentares em diferentes populações (WOORTMAN,1978; PEIRANO, 1975).

No âmbito das abordagens de contextos urbanizados, Zaluar (1982) estuda os trabalhadores de um conjunto habitacional no Rio de Janeiro, ressaltando que, para aquele grupo, comida é aquilo que “sustenta”, que “enche a barriga”. Dessa maneira, hábitos e

classificações alimentares também formam identidades sociais. No Brasil, este é o caso de constituição de uma identidade operária, de uma identidade de pobre, ou de nortista (VELHO,1977; ZALUAR,1982), principalmente, no sentido mais restrito da categoria comida. A comida, para Zaluar, é "um dos principais veículos, através do qual os pobres urbanos pensam sua condição" (1982: 105).

A comida do dia a dia e a comida do lazer, dos finais de semana, transcorrem em espaços distintos e marcam diferenças simbólicas importantes. Como afirma Zaluar (1982),"a comida 'variada' passa a marcar, assim, o tempo de lazer, o tempo do 'não trabalho' que é para eles o domingo. E esse também é o dia da reunião de família, quando todos comem juntos e o pai deveria estar presente" (1982:110). A comida da rua nunca poderá substituir a comida de casa e os envolvimentos que nela transcorrem.

Na linha dos estudos de caráter nacional, Roberto DaMatta (1986) aborda o papel unificador da feijoada na formação da identidade brasileira e realiza uma análise simbólica voltada para os valores da cultura brasileira expressos na alimentação. Propõe também uma diferenciação entre alimento e comida, que põe em relevo o debate entre o biológico e o cultural na alimentação humana. Para ele: “Comida não é apenas uma substância alimentar; mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só a quilo que é ingerido como também aquele que o ingere” (DAMATTA, 1986:4).

A partir de uma visão crítica dos estudos do caráter nacional de Freyre, Da Matta aponta para uma essencialização da diversidade, incluindo a questão alimentar, quando vista sob o prisma da harmonia e integração horizontal, que excluem tensões e conflitos inerentes a uma ordem social, fundamentalmente, desigual e hierarquizada.

A retomada de questões tradicionais nos estudos sobre alimentação, como os estudos sobre sínteses da cultura nacional, pode ser vista na releitura de Fry sobre a feijoada, que, para ele, ainda se mantém como exemplar da conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais. Ao mesmo tempo em que volta a tese lançada por ele em 1976, argumentando que este fato não apenas ocultou a dominação racial, como afirmava anteriormente (FRY, 1976), mas tornou muito mais difícil a tarefa de denunciá-la. E afirmou: “quando se convertem símbolos de fronteiras étnicas em símbolos que afirmam os limites da nacionalidade, converte-se o que era originalmente perigoso em algo ‘limpo’, ‘seguro’ e ‘domesticado’” (FRY, 2002:52).

Roberto DaMatta (2003), também referindo-se às unanimidades nacionais, ressalta o arroz com feijão e depois a farinha, promovendo a mistura dos sabores. Acrescentou também o

cafezinho como exemplar do gesto de dádiva de abertura e de hospitalidade de rico e de pobre, marcando a passagem da rua para a casa.

Para Maria Eunice Maciel (2005):

a alimentação responde não apenas à ordem biológica (à nutrição), mas se impregna pela cultura e a sociedade, sendo que a sua compreensão convoca um jogo complexo de fatores: desde os ecológicos, os históricos, culturais, econômicos e sociais. (Maciel, 1996:8).

O forte valor simbólico de certos pratos típicos relacionados a identidades regionais, como o churrasco gaúcho, cercado do ritual da comensalidade, também foi explorado pela autora. Maciel (1996) detalhou as maneiras como esse prato é preparado, servido e compartilhado socialmente, pela mobilização de rede de relações sociais de troca, partilha, união e do estabelecimento de laços e relações sociais.

Daniel & Cravo (2005), por sua vez, elucidam a diversidade das sociedades humanas (tribais, camponesas e capitalistas) e as regras, e as relações sociais imbricadas com o aspecto simbólico que permeiam a produção, a distribuição e a comensalidade. Também percorrem um conjunto de estudos etnográficos nacionais, que muito bem expressam a marca das contribuições antropológicas, pelo menos em um dado momento do desenvolvimento das pesquisas.

Rial (2005) percorre os relatos dos viajantes e suas interpretações sobre os costumes alimentares; as espécies vegetais e animais comestíveis; o seu preparo; os sabores, odores e os paladares observados; os modos de comer e beber; assim como o canibalismo, juntamente com mudanças e introduções de novos alimentos, mediante o contato com os colonizadores. A autora busca ler, nesses relatos, a interpretação sobre a nossa identidade, que a comida dos “outros”, em sentido geral, foi capaz de expressar, despertando reações naqueles que a observaram e comentaram com seus olhares europeus.

Também como marcador de identidade étnica e religiosa, o tema da alimentação tem sido estudado nas distintas religiões (candomblé, umbanda, batuque). A culinária ritual nesses estudos reveste-se da simbologia das influências regionais, combinando as identidades religiosas e culturais.

De forma diversa, a relação entre alimentação e religião se manifesta nas diferentes expressões da religiosidade e tem sido explorada tradicionalmente na antropologia brasileira (BASTIDE, 1950, 1952, 1960; CASCUDO, 1964; SOUZA, 1969; LODY, 1977, 1984, 1988, 1992, 1994; VARELLA, 1972; EPEGA, 1994; FERRETTI, 1996;LIMA, 1999; SOUSA

JÚNIOR, 1999 apud CANESQUI, 2005). A centralidade da comida, nessas religiões, é observada em diferentes regiões do país e, nesse caso, acaba por exercer o papel de mediação entre homens e o mundo espiritual. Por isso, as várias etapas que envolvem sua preparação e consumo ritual são reguladas por uma série de tabus e prescrições. Para Canesqui (2005), o conhecimento restrito do preparo e do ritual alimentar faz com que a relação com o alimento, nessas religiões, assuma uma conotação “étnica”. A referência a esse complexo “etnicidade- religiosidade-identidade” ocorre também a partir de diferentes sistemas religiosos, como, por exemplo, o judaico, estudado por Topel (2003), que procurou compreender as características principais desse sistema relativo às leis alimentares.

A abordagem simbólica da alimentação no Brasil inclui outras categorias mediadoras, como as noções de corpo, relações de classe e de gênero. Diferentes estudos focalizam essas relações, principalmente, a partir das classificações que definem os alimentos como próprios ou impróprios para consumo, seja mediante estados físicos específicos, ou ainda, segundo, o gênero ou a classe social.

Murrieta (1998) refere-se a vários sistemas que definem a “reima”, segundo o gênero, idade, estado liminar ou experiência pessoal, sendo o equilíbrio do corpo e do espírito alvo preferido das proibições da “reima”, impostas a certos estados corporais (de doença, parto, pós- parto e menstruação) nas populações caboclas paraenses pesquisadas pelo autor. Costa-Neto (2000) também confirma que, entre os pescadores do litoral norte baiano, os peixes de couro são “reimosos” e “carregados” e evitados por pessoas enfermas, que apresentam ferimentos corporais ou pelas mulheres, durante os eventos ligados à reprodução.

Os estudos etnográficos sobre as representações do corpo também revelam a associação do fluxo menstrual com a fertilidade, que são pensados como estados do corpo (“quentes” e “úmidos”) (VICTORA, 2000); exemplo disso, são as “chapoeiradas” (infusões contraceptivas populares, que combinam ervas diversas, canela, vinho fervido, caldo de feijão, cachaça, associando categorias de bebidas, temperos e comidas “quentes” e “fortes”) (CANEQUI, s/d).

Woortmann (2004) entende que a comida nos oferece a medida das relações familiares, reproduzindo ideologicamente as relações de gênero. Segundo o autor, no Brasil, a comida é sempre pensada em relação ao corpo e, a partir disso, constróem-se representações e relações sociais, por exemplo, expressas na relação entre a comida e a mulher. Para ele: “se o homem (espécie) não deve ser comido, a mulher é “comida” pelo homem, e é mesmo percebida como sendo “comida” de homem” (2004:178). Essas relações desiguais entre os gêneros também ganham relevo na posição da mulher como intermediária do processo culinário e nos espaços

domésticos caracterizados como masculinos (sala) e femininos (cozinha), etc.

Woortmann & Woortmann (2004), ao tratar sobre a articulação entre comida e identidade camponesa, entre colonos teuto-brasileiros do Rio Grande do Sul e seus descendentes, identificaram semelhanças nas representações destes e de outras regiões e tradições culturais do Brasil, em relação, por exemplo, às concepções sobre comidas “fortes” e “fracas”. Estudos realizados em diferentes regiões do Brasil mostraram a força e permanência das classificações de alimentos, “quentes” e “frios”, “que se aplicam também ao corpo e suas partes, às doenças, aos remédios e às ervas, associando-as, em certas regiões, aos poderes simbólicos e “sobrenaturais”.

Romanelli (2006) examina o modo como a população de baixa renda articula elementos simbólicos provenientes de várias fontes para organizar regras dietéticas, que passam a constituir indicadores culturais, através dos quais os alimentos são categorizados em apropriados ou nocivos para o consumo. A comida é também uma categoria que estabelece fronteiras entre a identidade da população pobre, que enfrenta dificuldades para prover a alimentação, os decozinha rica e variada, e a dos muito pobres, que passam fome.

As categorias simbólicas específicas atribuídas aos alimentos, como as citadas a partir desses estudos, emergem como expressão das noções de corpo, bem como das relações entre gênero e classe em grupos e sociedades específicas.

A produção de estudos antropológicos sobre a alimentação, no Brasil, tem demonstrado a capacidade de renovação de suas linhas de pesquisa, sendo, além da diversidade e constante inovação temática, capaz de oferecer novas leituras de problemas clássicos às análises da comida e do comer, são exemplos os trabalhos recentes que incorporam classificações como as de alimento “reimoso”, “quente”, “frio”, etc; ou ainda, as questões relativas à constituição de identidades coletivas ancoradas em hábitos alimentares; as relações intrínsecas entre religião e alimentação (em suas diversas manifestações); as relações de gênero expressas a partir das classificações e práticas alimentares, organização social, parentesco, identidade, entre outras que foram tratadas aqui; que apontam para a qualidade da abordagem simbólica da alimentação na apreensão de diferentes fenômenos sociais e culturais. A capacidade de renovação, expressa nas pesquisas sobre a alimentação, se traduz também na inclusão de outros elementos articulados com as mudanças vividas nos contextos sócio-culturais que lhe servem de cenário. Nesse sentido, observa-se a ênfase no conteúdo moral relacionado à alimentação, sobretudo, a partir de noções de adequação de suas propriedades à aquisição de critérios de boa saúde, longevidade, boa forma física, etc., sustentados por uma essa base moral.