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Em um primeiro nível de classificação simbólica, humanos e não humanos estão situados em blocos distintos, subsumindo na categoria animal uma enorme diversidade de espécies, basicamente por sua oposição em relação aos seres humanos. Em um nível secundário, temos uma classificação que, mesmo não singularizando as espécies, elege tipificações, como as de animais domésticos, de companhia, selvagens, em extinção, etc., o que envolve diferentes graus de consideração moral.

Para além do objeto da classificação, a consideração diferenciada em relação às diferentes espécies, incluindo, a humana, é a condição capital contra a qual o movimento de defesa animal luta para desestruturar através de diferentes estratégias, no sentido de conduzir à reflexão a partir do ponto de vista de outras espécies, operando deslocamentos retóricos entre os sujeitos e os objetos da reflexão.

Na retórica do ativismo vegetariano/vegano, um mecanismo importante usado para conduzir o público à reflexão sobre o tratamento ofertado aos animais é a inversão de papéis entre humanos e não humanos, utilizada, frequentemente, em alusão a ao nivelamento ideológico proposto por esses grupos. Abaixo algumas imagens de campanhas e ações que acionam esse mecanismo de inversão:

As performances e imagens de inversão pretendem mobilizar o público com o intuito de produzir uma reflexão acerca da relação de exploração e brutalidade estabelecida com os não humanos, partindo da contestação da diferença e do privilégio de uma espécie sobre a outra. A ideia é que o choque provocado pela imagem de um humano submetido ao mesmo tratamento dado aos animais leve a uma mudança de perspectiva em relação à arbitrariedade desse tratamento tradicionamente tomado como legítimo.

É, de fato, um convite a sentir na pele o que os animais experimentam à serviço dos interesses humanos. Para quem põe em prática, esse tipo de ação também funciona para sentir parte do que sentem os animais e busca-se defender o sentir a causa. Trata-se de um deslocamento para o lugar possibilitador do compartilhamento da dor e do sofrimento, entendendo que, para sentir a dor do outro, é necessário, antes, um processo de identificação, um sentir na pele. Significa, então, se colocar no lugar dos animais, seja por um esforço imagético de inversão dos papéis, tradicionalmente, atribuídos às espécies, seja por um deslocamento real vivido por aqueles que já operam essa troca em um nível moral.

Haraway (2011) faz uma reflexão acerca da possibilidade de uma moralidade multiespécies ao tomar como exemplo a relação do personagem de um romance com os porquinhos-da-índia, que faziam parte de um experimento científico no Zimbábue. Esses animais, expostos a uma rotina de trabalho, “eram mantidos em cestos apertados enquanto gaiolas de tela cheias de moscas picadoras eram colocadas sobre eles, que tinham tido a pele raspada e untada com veneno que podiam afetar os insetos ofensores com seus parasitas protozoários”(HARAWAY, 2011). O personagem que cuidava dos porquinhos na estação de pesquisa, um “velho vapastori”, em certa ocasião coloca o próprio braço dentro da gaiola de moscas tsé-tsés, deixando que piquem sua pele e suguem seu sangue “para saber o que os porquinhos-da-índia estão sofrendo” (FARMER, 1996: 239 apud HARAWAY, 2011).

Perspectiva semelhante propôs uma ação realizada em Israel, em outubro de 2010, quando três ativistas vegans marcaram seu corpo com o número 269 com ferro aquecido em uma praça pública no centro de Tel-Aviv, após terem visitado uma fazenda/fábrica, em Israel, e visto um bezerro marcado dessa forma (a ferro e fogo) com o número. O site, criado pela organização 269life, exibe o vídeo que registrou a ação, no qual intercala essas imagens a de animais em condições de sofrimento na indústria alimentícia. Declara-se no video: “Fear is Fear, Blood is Bood, Suffering is Suferring”. O texto incial informa:

The manifesto of their organization 269life, states, “The branding of the calf’s number, chosen by the industry to be ‘269,’ is for us an act of solidarity and immortalization. We hope to be able to raise awareness and empathy towards those whose cries of terror and pain are only heard by steel bars and the blood stained walls of the slaughterhouses.

Inspiradas pelo grupo, pessoas de diferentes lugares do mundo aderiram ao movimento fazendo a marca com uma técnica chamada branding, que utiliza ferro em brasa para marcar o corpo. A ação Todos somos 269 está prevista para ocorrer em diversos países, no dia 21 de março, por ser esse o Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, bem como pelo fato de:

Neste mesmo dia, mas em 1933, o primeiro campo de concentração Nazi (O campo de Dachau, na Alemanha) estava terminado e abriria no dia seguinte. Neste mesmo dia, mas em 1960, em Sharpeiville, na África do Sul, começaram as primeiras marchas antiapartheid. Cerca de 20 mil manifestantes negros tomaram as ruas em sinal de protesto contra aquele sistema. A polícia abriu fogo contra eles, o que resultou em 180 feridos e 69 mortos.

O dia 21 de Março é, assim, um importante e simbólico dia na luta contra a discriminação racial e a opressão.

É tempo de ficar claro que atos horrendos de discriminação e inflicção de sofrimento não acontecem apenas contra humanos, mas sim, contra todos os outros animais.

Animais que sentem dor tal como os humanos, e que, mesmo assim, são tratados como se assim não fosse e como se fossem desprovidos de sentimentos.

Devemos, finalmente, assumir total responsabilidade pelo nosso comportamento e acabar com este horrível ciclo de violência e abuso de humanos e não-humanos. 269 é o número que simboliza o maior Holocausto da História da Terra. Junte-se a nós e venha demonstrar que é uma pessoa compassiva. Venha lutar pelo fim da passividade.

Junte-se a nós!!

O texto acima é a convocação para a ação, que será realizada também no Brasil, e está sendo organizada por diversos grupos ativistas vegetarianos/vegans e de defesa dos direitos dos animais.

De forma semelhante, em Londres, uma jovem de 24 anos se voluntariou para participar dos procedimentos a que são submetidos diariamente os animais de laboratório. O objetivo da performance era chamar atenção para a dor e sofrimento causados por esses testes em animais. Abaixo a descrição da experiência a que foi submeitda Jacqueline Traide:

Ela foi arrastada por uma corda pelo pescoço e colocada sentada em um banco. Era hora de Jacqueline Traide comer e, pelas suas feições, seu medo era real. Primeiro, sua boca foi aberta com dois grampos de metal, anexados a um elástico em torno de sua cabeça. Um homem, em um avental branco, a segurou pelo seu rabo de cavalo e a puxou até que sua cabeça fosse para trás. A jovem de 24 anos vivenciou um procedimento onde cosméticos são pingados em olhos de animais. Consumidores horrorizados param, olham e tiram fotos de Jaqueline, enquanto ela se senta em um banco, cheia de eletrodos. Quando o homem terminou de dar comida à Jaqueline, ela estava engasgando e tentando se soltar. Pelas próximas 10 horas, esta atraente artista de 24 anos levou injeções, teve sua pele esfoliada e melada com loções e cremes – e então teve um parte de seu cabelo raspado em frente à consumidores atônitos em uma das ruas mais movimentadas de Londres. Seus olhos lacrimejaram quando um produto irritante foi borrifado em intervalos de tempo, e seu braço começou a sangrar quando ela tentou resistir a uma injeção. Jacqueline, que parecia nervosa antes da apresentação, permaneceu calada durante toda a demonstração, mas pelas suas feições, seu sofrimento foi muito real. E, em algum lugar do mundo, talvez em um laboratório que esteja conduzindo testes para um novo rímel, um animal indefeso está sendo sujeito ao mesmo tratamento.A diferença é que Jacqueline – publicamente humilhada, tremendo de frio e com a pele vermelha nas bochechas – foi para casa depois que o experimento terminou. Um animal teria tido uma morte terrível. (Daily Mail, abril de 2012).

A estratégia nessa, e em outras ações, é provocar a reflexão quanto ao sofrimento a que são submetidos os animais, a partir de uma perspectiva humana. Defende-se, nesse caso, ser necessário, para o público, imaginar-se a si mesmo ou um semelhante naquelas condições para chegar a um nível de questionamento e conscientização a respeito da crueldade infligida aos animais não humanos. Nos termos de Haraway, é uma forma de “compartilhamento da dor”, vivida diretamente pelo ativista, objeto da performance, e indiretamente pelo espectador, afetado pela visão de um outro, ontologicamente igual, experimentando tal sofrimento. E esse é o objetivo de ações desse tipo: proporcionar a transposição de barreiras ontológicas, que, de outra forma, inviabilizam o “compartilhamento da dor” e, consequentemente, a conscientização de nossa responsabilidade quanto ao sofrimento do outro. Seja por uma performance real, ou pelo efeito de uma manipulação de imagem, o sentido é o mesmo: provocar a inversão de papéis pela via imagética e, assim, proporcionar uma experiência real ou mediada, em cada caso, do sentir na pele. Aqui são os afetos, as emoções, os mecanismos atuantes para a reflexão.

As teorias de libertação animal de Singer, Regan e Fracione, fortemente inspiradas na filosofia kantiana, estão fundamentadas em uma perspectiva racional cartesiana; mesmo reconhecendo nesse pensamento as bases que constituíram um modelo de relação de dominação do humano em relação aos animais e à natureza. Contudo, esses deslocamentos não atuam somente com base em uma tomada de consciência a partir da reflexão racional e desprovida de emoções. Apesar dos teóricos da ética animalista defenderem o apelo restrito ao debate intelectual a respeito da legitimidade de sua proposta política de equidade entre humanos e não humanos, com base em uma “filosofia animalista racionalista” (NACONECY, 2012), não é isso que se percebe na prática das ações em favor de uma ética animal.

Singer é categórico a esse respeito ao afirmar que somente seguindo uma linha argumentativa lógico-racional chegar-se-á ao pleno reconhecimento da razoabilidade de uma ética da libertação animal. Essa ética para Singer “deveria ir além do ‘eu’ e do ‘tu’ para, a partir de uma perspectiva do espectador imparcial ou observador ideal, gerar uma lei universal, propiciando decisões universalizáveis” (KHEEL, 1996:23).

Em ocasião de uma entrevista, Tom Regan defendeu que “se deve mostrar todo o horror sofrido pelos animais...”. Se, de um lado, “a mensagem verbal deve ser positiva a, mensagem

visual não deve poupar o público de nada”. Acredita-se que a falta de informação e entendimento sobre o que realmente acontece com os animais durante o processo de produção, no caso da indústria, ou no cotidiano de um laboratório, no caso dos experimentos e testes científicos, ou ainda nos bastidores dos espetáculos de lazer, rodeios, circos etc., seja a causa da indiferença da grande maioria das pessoas em relação à violência e crueldade resultantes de seus hábitos de consumo. Nesse sentido, esse autor parece apontar na direção da necessidade de mecanismos afetivos para produzir a mudança paradigmática pretendida pelo movimento. Já que, se o fundamento dessas estratégias é oferecer a informação e produzir a reflexão a respeito da condição de vida dos animais e o tratamento ofertado pelos humanos, a partir de estratégias, como as de deslocamentos retóricos/imagéticos entre humanos e não humanos, também se está acionando mecanismos de identificação fortemente ancorados em emoções e sentimentos de compaixão e empatia.

O que ocorre também por outras vias e a partir de processos diferenciados, como o que se desenrola no interior do próprio movimento de defesa dos direitos dos animais, constituindo uma tendência à humanização ou antropomorfização dos animais como argumento para garantia de seus direitos. Muitas vezes, o discurso em prol de igual consideração moral entre animais não humanos e humanos passa por justificativas relativas às semelhanças que os primeiros apresentam em relação aos segundos. Já foi discutido a questão dos critérios para a inclusão desses animais na comunidade moral, alguns dos quais apelam para características humanizadas, como a inteligência, a comunicação, as emoções, o afeto, etc. Esse tipo de argumento se manifesta no ativismo através de imagens e quadros comparativos que buscam aproximar as espécies humanas e não humanas:

Busca-se, com isso, contestar a arbitrariedade das diferenças constituídas culturalmente entre humanos e não humanos. Muitas vezes, isso ocorre a partir de uma noção de “parentesco” tal como pensada por Lévi-Strauss, para quem essa noção existe apenas “na consciência dos homens; é um sistema arbitrário de representações, e não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de fato” (LÉVI-STRAUSS, 1958: 61).

Isso também ocorre em relação a uma hierarquia explícita entre as espécies não humanas, por exemplo, em relação aos animais de estimação, gato, cachorro, principalmente, e os animais usados na alimentação, como bois, porcos, galinhas. Muitas organizações de defesa dos animais se dedicam, exclusivamente, a luta pelos direitos de animais considerados culturalmente mais próximos dos humanos. Essas organizações são conhecidas como “protetoras dos animais”, mas não defensoras de seus direitos, já que excluiriam as espécies “menos humanizadas”, incluindo os animais usados na alimentação. E assim, apesar de parcerias estabelecidas em momentos importantes como eventos anti-crueldade contra animais, esses grupos são constatemente criticados pelo ativismo vegetariano/vegano que se posicionam pela igualdade de direitos de todas as espécies, acusando os grupos protetores de restrigirem a defesa dos animais aos animais de estimação. Uma das campanhas mais difundidas em relação a isso é a que questiona essa hierarquia: “Se você ama uns, porque come outros?”.

As campanhas dirigidas ao público, em geral, também têm como foco a crítica às entidades protetoras dos animais, que, de acordo como movimento de defesa animal, costumam ignorar o sofrimento dos animais usados na alimentação. Em 2011, um caso de maus-tratos a animais chocou o país e teve grande repercussão na mídia, trata-se de um vídeo-denúncia registrando uma seção de agressões físicas que levou a morte de um cão da raça yorkshire por sua “proprietária”. A mulher teve sua foto e nome divulgados nas redes sociais e foi chamada de assassina. O clamor público exigiu que ela fosse indiciada e penalizada pela brutalidade dos

golpes desferidos contra o cão. As entidades “protetoras dos animais” organizaram protestos e ações para pedir maior rigor na condução de casos como esse e outros, geralmente, cães, gatos e cavalos agredidos e maltratados. Por ocasião desse caso, o movimento vegetariano/vegan, ou seja, o movimento de defesa dos direitos dos animais se manifestou publicamente também pela punição deste tipo de maus-tratos, inclusive se engajou em manifestações junto aos grupos protetores, mas criticou o que consideram como uma grande discrepância entre a comoção gerada pela brutalidade para com este cão e a indiferença dessas organizações de protetores dos animais, e do público em geral, em relação à brutalidade e assassinato dos animais usados na alimentação, na experimentação científica, no lazer e na indústria.

A oposição quanto à hierarquia existente entre as categorias de animais em relação à consideração moral que lhes é dispensada faz parte da retórica dos defensores dos direitos animais, da mesma forma que a crítica à hierarquia existente entre animais não humanos e humanos. Para esses grupos, são fenômenos interligados e baseados no mesmo padrão especista, que atribuem uma noção de superioridade à espécie humana em relação aos outros animais, e, também, estabelece uma hierarquia entre os animais, sendo alguns considerados superiores, especialmente cães e gatos, a outros, como bois, porcos, galinhas, etc. Isso ocorre por duas vias: a primeira relacionada ao processo de atribuição de características humanas e de laços afetivos próprios aos humanos aos animais de estimação, especialmente, gatos e cachorros; e, ao mesmo tempo, através de um processo de desvinculação emocional em relação aos animais usados na alimentação humana.

Como já mencionado anteriormente, em sua analogia entre os tabus alimentares e sexuais, Leach (1983) procura mostrar como as classificações sociais agem no sentido de separar e posicionar o eu em relação ao mundo, dividindo-o em zonas de distanciamento social em relação a esse eu. Essa separação atinge tanto o nível da linguagem quanto da ação, já que, para ele, esses dois níveis estão imbricados e são interdependentes. Na maioria das vezes, “o tabu é, simultaneamente, linguístico e social” (LEACH, 1983:174). Para entender melhor essa analogia, Leach elabora um quadro que mostra uma escala de graduação, perto/longe, mais como eu/menos como eu, e relaciona a esse modelo as classificações usadas para distinguir animais de estimação, domésticos e selvagens, responsáveis por fundamentar os tabus alimentares, e os compara às classificações relativas ao tabu do incesto:

(a) Ego (eu)... Irmã... Prima... Vizinha... Estrangeira (sob o ponto de vista masculino). (b) Ego (eu)... Casa... Fazenda... Campo... Longe... (Remoto)

(c) Ego (eu)... Animal de estimação... Animal doméstico... “Caça”... Animal Selvagem

O tabu que estabelece a comestibilidade dos animais segue a mesma lógica das permissões/proibições das relações sexuais, que, por sua vez, são proporcionais às relações de comestibilidade. Assim, a intensidade do tabu é classificada a partir da distância social das categorias em relação ao eu. A proximidade intensa do ego, tanto quanto uma maior distância

social, também constitui tabu, ficando os intermediários entre esses dois pólos sujeitos a uma gradação que permite o consumo alimentar ou o relacionamento sexual, em cada caso, a critério de fatores circunstanciais.

Aqui ficamos presos a um ciclo de relacionamentos diferenciados estabelecidos entre animais de estimação e humanos, de um lado; e animais usados na alimentação e humanos, de outro. Os primeiros, ao longo da história ocidental e com o crescimento das cidades, tornaram- se companheiros de vida de muitos humanos. Apesar de praticada há milhares de anos, como apontam os achados arqueológicos de diversas regiões do planeta, a prática de ter animais de estimação, ou animais de companhia, prosperou juntamente com o processo de urbanização da sociedade moderna (THOMAS, 1996).

Em especial entre as classes médias urbanas, ter um cão ou gato de estimação e tratá-lo enquanto membro da família é cada vez mais usual. E não apenas nas classes médias, como entre os grupos populares e classes mais abastadas, o crescimento dessa prática é vertiginoso. Estima-se que, no Brasil, a população de cães e gatos de estimação tenha atingido os 48 milhões, sendo 32 milhões de cães e 16 milhões de gatos. O segundo país no mundo em número de cães e gatos de estimação, perdendo apenas para os Estados Unidos. Esses números revelam a importância desses animais no cotidiano de milhares de pessoas, que estabelecem trocas intersubjetivas com eles - interagem de forma pessoal e íntima (WAIZBORT, 2006). É nessa perspectiva que a antropologia se volta para a compreensão de uma “socialidade multiespécies”, como já falado, (HARAWAY, 2008) que se realiza no contexto urbano (ANTUNES, 2011). Como sugere Haraway:

Pessoas e cães emergem enquanto parceiros mutuamente conectados no âmbito das naturezas e culturas dos grandes centros. É o momento de pensar seriamente sobre a importância desse encontro. (HARAWAY 2008:62 apud ANTUNES, p. 8).

Acentuadamente na cultura Ocidental contemporânea, o cão goza de privilégios não compartilhados por outras espécies domesticadas, entre elas, os animais usados pela indústria alimentícia. Este é detentor de privilégio e status diferenciado, como mostra Antunes (2011), que o classifica como criatura intermediária, que oscila “desconfortavelmente entre os postos de animal de status elevado e pessoa de status degradado” (SERPELL, 1995: 254 apud ANTUNES: 2011). Não por acaso, é entre esses animais que o fenômeno da antropoformização se revela mais acentuado e se manifesta tanto através da supressão de características próprias aos animais quanto pela atribuição de características humanas a eles, como personalidade, estados emocionais e processos cognitivos, além da imposição de um padrão racial, estético e comportamental correspondente aos desejos e necessidades de seus donos. Mas é preciso levar

em consideração, como aponta Antunes (2011), a reflexão de autores que consideram a antropoformização canina como processo inerente à própria domesticação desse animal. Apesar disso, é recorrente a crítica de grupos ativistas pelos direitos dos animais a esse processo bastante intensificado com o crescimento da indústria pet, que movimenta nove bilhões por ano só no Brasil. Contudo, Antunes aponta para o que chama de “construção ontológica recíproca”:

Estudos recentes têm mostrado que a antropomorfização, ainda que seja idealizada, não consiste necessariamente numa relação unilateral, pontuada por uma suposta “ética da dominação” (THEODOSSOPOULOS 2005: 30). Trata-se de entender a constituição dessa relação como um mutualismo, onde ambas as partes se constituem num processo que, mais do que se realizar por um devir assimétrico, parece mais