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2.3 O estudo da alimentação no Brasil

2.3.1 Os primeiros momentos

No Brasil, essa tradição de estudos não chega a formar um conjunto ou corpo teórico articulado. Porém, o interesse pelos hábitos alimentares dos habitantes da terra, deixou sua marca, desde os primeiros relatos de portugueses e outros estrangeiros que aqui estiveram, através de suas observações sobre a exuberância dos produtos da terra e do consumo alimentar dos nativos. Esses relatos, impregnados pelo tom de exotismo, costumavam alternar o posicionamento frente às práticas alimentares dos “nativos”, ora de espanto e repugnância, ora

de admiração e deleite. As numerosas descrições sobre o que se comia, nessa terra, alicerçavam interpretações a respeito do modo de vida das populações nativas – já neste momento, a comida aparecia como questão central na estruturação da identidade. Destacam-se, nesse contexto, os relatos sobre a prática do canibalismo entre grupos indígenas, como os Tupinambá (HANS STADEN; 1550; JEAN DE LÉRY, 1578; ANDRÉ THEVET; 1557 apud AGNOLIN, 1998), que ajudaram a construir todo o imaginário europeu acerca dos povos ameríndios naquele momento. Assim, viajantes, naturalistas, etc. foram responsáveis pelas primeiras descrições sobre a alimentação no Brasil.

Séculos depois, já no âmbito de uma ciência social institucionalizada, o tema é retomado por Florestan Fernandes (1951) em sua análise dos relatos dos cronistas sobre a função social do sacrifício entre os Tupinambá. A prática antropofágica constituía o momento culminante do processo cultural Tupi, que encontrava, na guerra e na execução ritual dos prisioneiros, a meta e o motivo fundamental da própria identidade cultural.

Para o autor, os Tupinambá não se beneficiavam tanto das energias do prisioneiro, e sim da substância do parente que aquele havia (eventualmente) comido e do qual eles buscavam a reapropriação. Tratar-se-ia, pois, em termos sociológicos, da recuperação da integridade da coletividade, projetada num plano religioso através da representação da exigência das vítimas e de seu sacrifício (AGNOLIN, 1998). Em se tratando disso, duas regras presidiam a refeição canibal: nada devia ser perdido e todos, parentes, amigos, aliados, homens, mulheres, crianças, com exceção apenas do matador, deviam participar do festim.

Mas foi nas primeiras décadas do século XX, que, de fato, as questões relativas à alimentação ganharam fôlego na incipiente ciência antropológica. Já na década de 20, em artigo de jornal, significativamente intitulado “O pirão, glória do Brasil”, Gilberto Freyre dá os primeiros passos em direção ao que seria uma linha de pesquisa a ser consolidada em sua significativa produção acadêmico-literária. Em 1933, quando publicou Casa-Grande & Senzala, Freyre recenseou e registrou não apenas hábitos alimentares, mas, inclusive, reuniu receitas de vários pratos em seus livros. Nessa mesma obra, Freyre relata, entre outras coisas, a monotonia da mesa colonial nos primeiros séculos e a importância da farinha de mandioca, considerada um substituto do pão, sendo caracterizada como produto fundamental na dieta de índios, brancos e negros, em todas as classes sociais e nas diferentes regiões do Brasil. Os dados de suas pesquisas eram provenientes, sobretudo, dos depoimentos (cartas) de membros do clero e estudos de higienistas da época.

A comida, em Freyre, se revelou um caminho profícuo para se pensar a estrutura social do período colonial: as questões referentes às relações de poder, de classe social, raciais e de gênero. Ao mesmo tempo, ressaltou as diferenças em relação ao acesso à alimentação que aludem às relações de poder entre: senhor/escravo/homem livre; entre brancos/índios/negros; e entre homem/mulher/criança, além de procurar enfatizar o papel harmonizador da cozinha.

Em Sobrados e Mucambos, publicado originalmente em 1936, Freyre aprofundou a relação entre comida, corpo e gênero ao descrever as práticas alimentares presentes na sociedade patriarcal e revelou a relação entre estas e o controle exercido sobre o corpo feminino. As práticas alimentares, desse contexto, serviam à construção não apenas de corpos, mas primordialmente à construção e expressão de relações desiguais entre homens e mulheres. Sendo assim, ocorreria uma diferenciação de tipos físicos no intuito de expor a condição de subordinação da mulher: de um lado, a virgem franzina, pálida e romântica, cuja alimentação deveria ser controlada para manter um semblante de fragilidade; no outro extremo, a imagem da esposa gorda, caseira e procriadora, moldada por alimentação farta e rica em guloseimas. Para as jovens solteiras – caldinhos de pintainho, água-de-arroz, confeitos e banhos mornos; para a esposa, um regime de engorda, com mel de engenho, doces de goiaba, bolo, chocolate. O medo, no caso das jovens solteiras da época investigada por Freyre, não era o da gordura, mas da robustez de macho. O que se pretendia era uma exaltação do contraste entre masculino e feminino, capaz de tornar evidente, na superfície dos corpos, a supremacia masculina (LIRA, 2006).

A doçaria brasileira também foi objeto específico de investigação de Freyre. No livro Açúcar, ele analisa o doce brasileiro como parte de um “complexo cultural”. Refere-se ao “complexo do açúcar”, não restringindo essa idéia ao produto em si, mas considerando suas implicações na vida social. A idéia recorrente, em seus trabalhos, sobre certa flexibilização e amolecimento nas relações sociais, marcadamente hierárquicas, era vivenciada através dos “usos da comida”.

Além das críticas que dizem respeito às interpretações freyrianas, principalmente, as que se referem à ênfase na noção de convivência harmoniosa das três raças, em seus estudos sobre a alimentação, principalmente com a publicação de Açúcar: Algumas receitas de doces e bolos dos engenhos do Nordeste (1939), Freyre recebeu diversas críticas por ocupar-se de um tema supostamente indigno da atenção de um cientista social – por fazer uma sociologia menor, uma microssociologia (MICELI, 1999).

têm se fortalecido e se legitimado enquanto locus de análise das ciências sociais. A Antropologia, por seu turno, como ciência do cotidiano, dedicada às particularidades e expressividade das ações corriqueiras, incorporou tradicionalmente a investigação sobre a alimentação em estudos sobre temas os mais diversos. A partir da compreensão de que as preferências alimentares figuram entre os traços distintivos e singulares de uma cultura, entre sociedades, grupos sociais e também no interior dos grupos, de acordo com categorias etárias, de gênero e até ontológicas (como as que definem as fronteiras entre seres humanos e animais e entre seres humanos e seres sobrenaturais).

Tanto nas análises de Freyre quanto nos trabalhos do folclorista Câmara Cascudo (1963), a alimentação ganha destaque como fator constitutivo da identidade nacional. O interesse pelo “contato cultural” entre ameríndios, africanos e europeus estava presente em ambos - noções como a de “empréstimo cultural”, em voga na abordagem culturalista, serviram de base à construção da ideia de uma identidade fruto da combinação de traços de culturas diferentes, que resultaram em uma configuração única.