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4. A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE CULTURA

4.1. Cultura, natureza e civilização

Conforme vem sendo ressaltado por estudiosos contemporâneos (EAGLETON, 2005; WILLIAMS, 2007), cultura é uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa, cabendo ao termo “natureza” – que é por vezes considerado seu oposto – a honra de ser o mais complexo de todos. Isso ocorreu em parte devido ao seu intrincado desenvolvimento histórico em diversas línguas européias, mas principalmente por ter sido usada como importante referencial em diferentes disciplinas e sistemas de pensamento distintos e incompatíveis (WILLIAMS, 2007).

Na raiz latina da palavra “cultura” temos colere, relativo a uma extensa gama de significados: habitar, cultiva, proteger, honrar com veneração. O significado de “habitar” evoluiu do latim colonus para o contemporâneo “colonialismo”, mas também desemboca via o latim cultus no termo religioso “culto”, determinando na Idade Moderna um sentido devanescente de divindade e transcendência (EAGLETON, 2005). Entretanto, o termo também guardava desagradáveis afinidades com ocupação e invasão, transitando entre dois pólos, positivo e negativo, que ainda hoje marca o conceito de cultura.

O sentido primordial de cultura referia-se ao cuidado com o crescimento natural, como algo que um sujeito fazia a uma parte da natureza, tornando-a mais confortável para a sua existência, seja uma plantação ou uma criação de animais. Fica marcada já nesse momento a relação entre algo natural, que tende a se desenvolver por si só, mas que através dos cuidados humanos passa a se desenvolver de forma mais efetiva. De qualquer forma, vale ressaltar que em todos os seus primeiros usos, cultura era um substantivo que remetia a um processo, seja com as colheitas seja com animais. De acordo com Williams, a partir do

princípio do século XVI o cuidado com o crescimento natural se ampliou para incluir também o processo de desenvolvimento humano. Nesse momento, cultura era uma ação que conduzia à plena realização das potencialidades de alguma coisa ou alguém, desenvolvendo, fazendo brotar, frutificando, florescendo e cobrindo de benefícios (CHAUI, 2006).

De acordo com Chauí, a distinção entre natureza e Cultura é recente, pois, tal como a conhecemos, data do século XVIII, apesar de haver uma distinção tematizada de várias maneiras pela filosofia entre natureza a ação humana, entendida como ética, política, história, técnica (CHAUI, 2006). Mas o conceito de natureza também se desdobra em vários sentidos: tomada individualmente, é a substância dos seres, matéria e forma constitutiva desses seres. Trata-se de uma força espontânea, capaz de gerar e cuidar de todos os seres por ela criados e animados. Como núcleo definidor de um ente, é a essência ou aquilo que constitui necessária e universalmente alguma coisa. Por fim, tomada como realidade físico-química e biológica, ou como a natureza, é a organização universal e necessária dos seres segundo uma ordem regida por leis inalteráveis pela ação humana. Em outros termos, a natureza é a ordem e a conexão universal e necessária entre as coisas, expressas em leis naturais. O comum a esses significados é que o natural é tudo aquilo que existe no universo sem a intervenção da vontade e da ação humanas (CHAUI, 2006).

Até o século XVIII o sentido principal da palavra “cultura” referia-se a civilidade, sendo o padrão ou critério que determinava o grau de civilização de uma sociedade. Chauí afirma que

A cultura era o aprimoramento da natureza humana por meio da educação entendida em sentido amplo, como formação das crianças pela sua iniciação à vida da coletividade por meio do aprendizado de música, dança, ginástica, arte da guerra gramática, poesia, oratória, lógica, história, filosofia, etc. (CHAUI, 2006; p.42).

Nesse caso, cultas eram as pessoas de virtudes morais, politicamente participantes e intelectualmente desenvolvidas pelo conhecimento das ciências, das artes e da filosofia. De acordo com esse significado, existe a passagem de um sentido abstrato para um processo geral de tornar-se civilizado ou cultivado. A cultura seria então aquilo que nos faz evoluir, não importa de que forma, a uma vida mais completa, seja no sentido material, seja no sentido espiritual. A divisão social das classes era então sobreterminada pela distinção entre cultos (os senhores) e incultos (escravos, servos e homens livres pobres), e a distinção entre os povos se fazia pela designação do outro como bárbaro (CHAUI, 2006). Já nesse momento iniciam-se as primeiras reações adversas a esse significado de cultura, que apresentava uma visão eurocêntrica de evolução, e justificava qualquer tipo de colonização em nome dos mais elevados valores da cultura européia do século XVIII.

Neste primeiro sentido, cultura e natureza não são apresentadas como opostas. Os humanos são considerados naturais, mas sua natureza não pode ser deixada por conta própria, pois tenderá a ser agressiva e destrutiva, precisando ser cultivada de acordo com os ideais de sua sociedade (CHAUI, 2006). Assim, na questão da civilidade, cultura também refere-se ao seguimento de regras, o que envolve um constante interação entre o regulado e o não- regulado. Mesmo nesse caso, o seguimento de regras relaciona-se diretamente com liberdade. Alguém que estivesse inteiramente à margem de convenções culturais não seria mais livre do que alguém que fosse escravo delas (EAGLETON, 2005). Nesse caso, a regra seria não seguir regra alguma, mas ainda assim se trata de uma regra. Para Eagleton,

a idéia de cultura, então, significa uma dupla recusa, tanto do determinismo orgânico, quanto da autonomia do espírito. É uma rejeição tanto do naturalismo como do idealismo, insistindo, contra o primeiro, que existe algo na natureza que a excede e anula, e, contra o idealismo, que mesmo o mais nobre agir humano tem suas raízes humildes em nossa biologia e no ambiente natural (EAGLETON, 2005; p. 14).

Existe na cultura uma tensão permanente entre fazer e ser feito, entre o racional e o espontâneo, entre aquilo que é adquirido e o que é de nossa natureza, combinando de

maneira estranha liberdade e necessidade, um projeto consciente associado também a um excedente não planejável (EAGLETON, 2005). Dessa dicotomia podemos sondar o fato do conceito aparecer como central tanto no pensamento liberal como nas teorias mais progressistas. Mesmo dentro dos indivíduos essa divisão ainda persiste, entre aquela parte que se cultiva e se refina, e aquilo dentro de nós, seja lá o que for, que constitui a matéria- prima para esse refinamento (EAGLETON, 2005). Passamos por um processo de auto- moldagem que, dessa vez dentro dos indivíduos, une mais uma vez ação e passividade, aquilo que mais ardorosamente desejamos e o que nos é puramente dado. Assim, da mesma forma como nos fizemos na origem parte da natureza, dela nos afastamos pelo simples fato de que introduzimos no mundo um grau de auto-reflexividade a que o resto da natureza não pode aspirar (EAGLETON, 2005).

De acordo com Williams, a partir do século XVIII o termo cultura passa a opor-se a civilidade, passando a caminhar em duas direções. Por um lado, principalmente devido ao movimento romântico, surgem alternativas ao uso ortodoxo de civilização, mostrando que, além das distintas formas de cultura entre as nações, haveria culturas específicas e variáveis dos grupos econômicos e sociais mesmo no interior de uma nação (WILLIAMS, 2007). Nesse caso, devido ao artificialismo advindo do processo de industrialização, apontando o caráter mecânico da civilização que aflorava, o termo cultura passa a ser usado para distinguir desenvolvimento “humano” do “material”, numa visão alternativa à visão dominante de que o primeiro seria uma conseqüência direta do último.

Dessa forma, cultura passa a designar a interioridade humana (a consciência, o espírito, a subjetividade) contra a exterioridade das convenções e instituições civis-civilizadas (CHAUI, 2006). Afastando-se de um significado completamente material, foi metaforicamente transferido para questões do espírito, refletindo em seu desdobramento semântico a mudança histórica da existência rural para a urbana, da criação de porcos a Picasso, reunindo tanto a estrutura como a superestrutura (EAGLETON, 2005). Nesse mesmo contexto, o autor ressalta ainda o quão paradoxal se mostrava a mudança semântica, na medida em que os habitantes urbanos seriam os “cultos”, e aqueles que realmente viviam lavrando o solo não o seriam.

Fica claro nesse momento a oposição do eurocentrismo de uma cultura como civilização universal aos clamores dos povos primitivos, aqueles de todos os cantos do mundo que não viveram e pereceram em prol da honra duvidosa de ter sua posterioridade tornada feliz por uma cultura européia ilusoriamente superior (EAGLETON, 2005). Nesse ponto, podemos localizar a idéia de cultura como um modo de vida característico como estreitamente ligada a um pendor romântico anti-colonialista por sociedades “exóticas” subjugadas (EAGLETON, 2005), e que reaparecerá mais tarde nos aspectos primitivistas do modernismo. Apesar dos termos civilização e cultura ainda serem utilizados de forma intercambiável, cultura era quase o oposto de civilidade, mais tribal do que cosmopolita, uma realidade vivida em um nível instintivo muito mais profundo do que a mente e, assim, fechada para qualquer forma de crítica racional. Em mais uma curiosa inversão, agora os selvagens seriam os cultos, mas os civilizados não (EAGLETON, 2005)