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5. POLÍTICAS PÚBLICAS E POLÍTICAS CULTURAIS

5.2. Políticas Culturais

5.2.8. Os meios de comunicação de massa

A concentração da propriedade dos meios de comunicação de massa no país é estarrecedora e situação ímpar no mercado internacional. Nesse caso, por propriedade entende-se um modelo que tem poucos similares nos países que se alicerçam nas formas tradicionais do estado democrático de direito. Assim, toda a estrutura comercial da empresa responsável pela difusão pelo seu sistema de afiliadas tem também a mesma propriedade daquele que cria todo o conteúdo a ser difundido. Como nenhum ato comunicativo deixa de ter um

sentido teleológico, um fim a ser alcançado, obviamente esses conteúdos expressam alguma visão de mundo. Se como Chauí relacionarmos hegemonia como sinônimo de cultura em sentido amplo e sobretudo de cultura em sociedade de classes, a hegemonia

não é forma de controle sóciopolítico nem de manipulação ou doutrinação, mas uma direção geral (política e cultural) da sociedade, um conjunto articulado de práticas idéias, significações e valores que se confirmam uns aos outros e constituem o sentido global da realidade para todos os membros de uma sociedade, sentido experimentado como absoluto, único e refutável, porque interiorizado e invisível como o ar que se respira (CHAUI, 2006; p. 25)

Com seus conteúdos carregados de ideologias da classe dominante, criam-se cada vez mais programas que prendam menos a atenção momentânea, mas cada vez mais promovam uma interação com o publico consumidor, dessa vez a atenção e a votação para os eliminados dos reality shows. Apesar de mostrar um mundo de novas realidades e formas de fruição, esse mundo ainda é aquele dos sonhos para a maioria dessas pessoas. Na medida em que a TV atinge hoje quase a totalidade dos domicílios nacionais, com o agravante de em muitos casos ainda ser uma das únicas formas de fruição cultural, aumenta-se exponencialmente o poder de penetração de crenças, ideologias e toda uma forma de encarar a vida, uma visão de mundo, que se cria e recria pelas lentes de produtores e atores do jet-set, muitas vezes sem vínculos orgânicos com o grande público.

A maioria das análises sobre os meios de comunicação de massa assume uma abordagem a partir da forma de relacionamento do Estado com os concessionários das TVs e rádios. Em se tratando de bens públicos, essa relação deveria ser pautada pela maior transparência, seja na identificação de conteúdos universais seja na propriedade dos meios de comunicação. Não pretendemos empreender esforços acerca dos conteúdos privilegiados pelos canais atualmente, de sorte que tentamos mostrar até aqui que a produção de um conteúdo de qualidade necessita, em primeiro lugar, de um investimento substancial em material humano qualificado, o que significam custos mais elevados e consequentemente menores taxas de lucratividade, o que contraria a racionalidade econômica que pauta os interesses

dessas organizações; e em segundo lugar, da formação de contingentes maiores que demandem uma programação de qualidade, o que acaba sendo mais difícil com a propagação dos programas de menor custo de produção, como aqueles que podem ser genericamente chamados de programas de auditório. No próximo item, trataremos com mais afinco da questão da propriedade dos meios de comunicação a partir de seu histórico em nosso país, mas antes apontemos a visão bastante interessante de Bucci, que para além das variáveis tradicionais de propriedade e conteúdo pretende analisar também a hegemonia da comunicação audiovisual instantânea, a TV, sobre as demais formas de mídia.

Para Bucci, nos dias atuais a disputa pela definição do espaço público se daria por dois níveis de enfrentamento relacionados ao processo de significação. No primeiro nível, estariam as instituições sociais tradicionais, como a família, a igreja ou as escolas, em disputa pela hierarquia entre as idéias, tem-se uma disputa pelo significado. Estaria em jogo nesse caso a hierarquia de valores e de conceitos que ganhará vigência comum no espaço público, dando à instituição que o formula um papel de referência face às instituições restantes (BUCCI, 2005). Para o autor, no chamado “mundo ocidental” (expressão que admite usar na falta de uma melhor) essa primeira disputa estaria resolvida, de sorte que entre a religião e a ciência, entre a escola e a família, entre o Estado e a Igreja, prevaleceu o bloco das instituições mediáticas, competindo sistematicamente com as outras instituições no intuito de hierarquizar valores e conceitos dentro do espaço público, forçando a reacomodação das outras instituições, que passaram a ter que, de um modo ou de outro, prestar contas ao espetáculo (BUCCI, 2005).

Já no segundo nível estaria uma batalha permanente entre os modos de narrar e os modos de representar dos diferentes meios de comunicação, no qual repertórios distintos para representação do mundo buscam adquirir domínio sobre seus rivais, gerando uma disputa entre sistemas de significantes (BUCCI, 2005). Para o autor, esse embate não pode ser confundido com a concorrência comercial entre veículos, pois seria uma disputa entre paradigmas de representação, expressão e narração, assumindo diversas formas: oralidade versus escrita, alfabeto fonético versus alfabeto ideográfico, imagem versus palavras, televisão versus texto impresso, e muitas outras (BUCCI, 2005).

A preponderância das instituições mediáticas sobre todas as outras no “Ocidente” nos leva diretamente ao segundo nível de embate, entre as formas de representação da realidade, exatamente no tipo de mídia que apresenta os símbolos e, portanto, acaba diretamente promovendo hegemonicamente a circulação dos significantes na sociedade. Para o autor, se cabe assim aos meios, às instituições mediáticas, a vitória sobre o significado, sobre a consolidação de valores, resta agora saber qual deles emprestará “sua” voz para a consolidação desses significados. Para o autor, seria esse o ponto em que a imagem – e não qualquer imagem, não apenas a imagem da fotografia ou do cinema, mas a imagem eletrônica, instantânea – assume a hegemonia (BUCCI, 2005).

Bucci também utiliza-se do referencial gramsciano para esclarecer a possibilidade de hegemonia dos meios de comunicação e em especial, do meio televisivo. Para ele, ainda que o autor italiano não tenha buscado um modelo teórico para aplicar ao cinema e aos folhetins (e sim para instrumentalizar a luta do partido político), acabou por elaborar um método de compreensão da luta política que em muito se aproxima do modo pelo qual as instituições e as “linguagens” dos meios disputam hegemonia no espaço público (BUCCI, 2005).

Assim, da mesma forma que Gramsci não limitava a hegemonia à direção política, mas a concebia também como uma forma de direção moral, cultural e ideológica, menos conflituosas e aparentemente mais consensuais, a hegemonia gerada no espaço público pelos meios de comunicação de massa é produto da capacidade de um determinado sistema de significantes de englobar os outros, fornecendo-lhe as chaves para as interconexões entre si e deles com a rede que caracteriza o espaço público. Para o autor, o sistema de significantes hegemônico não seria mais o da mídia em geral, mas especificamente o da televisão (BUCCI, 2005).

Bucci acredita que para além das clássicas questões de classe representadas pela propriedade e gestão de meios de comunicação e de suas análises exauridas quando o assunto são os meios de comunicação, o autor pretende ampliar o foco teórico para analisar

a hegemonia do padrão televisivo sobre todos os outros. Para ele, as análises tradicionais são úteis, embasadas e mesmo inteligentes, mas não inovam do ponto de vista teórico, enquadradas nos marcos iluministas da revolução burguesa, cobrando da imprensa e das instituições mediáticas que promovam o justo esclarecimento da opinião pública. Em complemento a essa crítica, o autor pretende situar uma nova disputa pela hegemonia em amplo espectro, em que impera

o padrão da imagem na tela, o padrão do espetáculo visual, o padrão da cobertura ao vivo, com cenas ao vivo. É o padrão do mundo todo convertido no grande espaço público em tempo real. (...) é esse padrão quem fornece os parâmetros em que as classes sociais se enfrentam com seus projetos políticos. É algo que deslizou, por fora do controle da humanidade. Como se fosse um lapso, um ato falho, um sintoma. Ou a própria loucura (BUCCI, 2005; p. 95)

Bucci, pretende ir além da vontade dos proprietários – e do feixe de forças que incide sobre uma empresa de mídia, e mesmo para além da falta de domínio racional desses proprietários sobre a condução de seus negócios, argumentando que o feixe de forças que determina o desgoverno da televisão é tensionado, no fim, não pela inconsciência dos que fazem a TV, mas por aquilo que é da ordem do desejo inconsciente (no público, no sujeito no mercado (BUCCI, 2005). Se pensarmos em termos de criação de realidades fictícias, qual mídia consegue transmitir mais perfeitamente uma situação, com todos os seus aspectos subjetivos, em que se possa ligar por exemplo o consumo de cerveja às possibilidades de conquistas sexuais para todo o gênero masculino? O autor considera a televisão por uma outra dimensão, tratando-a como uma força muito mais vasta, aproximando-se da própria loucura – a criação de realidades cada vez mais abstratas às capacidades de entendimento e discernimento dos indivíduos (BUCCI, 2005).

O autor finaliza relembrando um brocardo jurídico perenizado pelos antigos romanos, e que segue como princípio até hoje para nortear a decisão dos juízes: Quod non est in acti non est in mundo. Nesse caso, preza-se que o juíz, ao proferir uma sentença, deva ater-se fundamentalmente aos atos relatados no processo. Para os antigos romanos, assim como

para o juiz, o que não consta dos autos, não aconteceu no mundo dos vivos. Os autos devem substituir a própria realidade. Eles são a realidade (BUCCI, 2005). Relacionando com a televisão, o autor acredita que em nosso tempo, a verdade é que a verdade já não está nos autos, e que aquilo que é elevado à condição de imagem eletrônica na visualidade televisiva adquire instantaneamente a chamada relevância pública (BUCCI, 2005). Assim, a realidade de muitas pessoas passou a ser composta singularmente pelo que passa na televisão. A visão do autor é bastante instigante, principalmente se levarmos em conta que a televisão é o único bem de consumo cultural para a maioria da população, com padrões de penetração superiores ao saneamento básico, somente para ficar num exemplo crasso. Façamos agora um breve retrospecto sobre a história dos meios de comunicação de massa no Brasil, em especial da televisão, finalizando com algumas informações interessantes sobre a relação entre políticos e propriedade de meios de comunicação.