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5. POLÍTICAS PÚBLICAS E POLÍTICAS CULTURAIS

5.2. Políticas Culturais

5.2.2. Política cultural contra-hegemônica?

As políticas culturais passaram a exercer um papel fundamental na conformação do processo de hegemonia das forças transnacionais, quer seja pelo volume de recursos recebidos quer seja pela concentração desses recursos num conjunto bastante amplo das grandes empresas transnacionais que atuam no Brasil. Na verdade, pretendemos mostrar que as políticas culturais como têm sido elaboradas, nos marcos do liberalismo, a partir da renúncia fiscal e da livre seleção pelo setor privado, tem atuado como a forma exata de relacionamento entre Estado e sociedade civil que promove a hegemonia nos termos gramscianos.

Nesse caso, o Estado, como formulador da política cultural, “se vê livre” das amarras da universalidade em nome dos interesses privados das grandes corporações e de suas tentativas cada vez mais bem sucedidas parecer aos consumidores mais do que marcas, assumindo significados baseados em experiências muitas vezes completamente exteriores aos seus produtos mas “interiorizadas” no coração e nas mentes dos consumidores. Na medida em que a política cultural se utiliza de recursos públicos para transformar cidadãos em consumidores, tanto mais nos afastamos da conformação de um projeto contra- hegemônico, cujas bases não mais se fazem pelos sindicatos ou partidos políticos, mas sim pelas guerras culturais ancoradas nas lógicas mercadológicas das políticas culturais hegemônicas.

Acreditamos então que toda forma de intervenção estatal na área da cultura deve buscar a mais plena forma de democracia cultural. Dessa forma, qualquer política pública de cultura, ponto máximo mas nem sempre suficiente para mudanças estruturais na sociedade, deve levar em conta as relações de poder que acabam consensualmente legitimando as ações de

uma determinada classe dominante na sociedade. Na realidade, essa mesma classe dominante tem perpetuado seu poder justamente por estarem ancorados na lógica de uma sociedade civil – nesse caso uma ínfima parte da sociedade que tem garantidos seus direitos políticos econômicos e sociais – que se relaciona de forma orgânica com a sociedade política, levando a cabo um projeto de hegemonia nos termos gramscianos.

Entretanto, Gramsci não acredita apenas na cultura como arma ideológica das classes dominantes. Na visão da Professora Ivete Simionatto, com relação ao entendimento da historicidade do social, o pensador italiano

também compreende que a luta pela emancipação política do proletariado não se esgota no terreno econômico, pois, dadas as condições de subalternidade intelectual às quais sempre estiveram submetidas as classes trabalhadoras, torna-se necessário o encaminhamento de um novo projeto cultural que propicie o desenvolvimento de uma vivência democrática independente do domínio ideológico da classe burguesa (SIMIONATTO, 2003; p.12).

Para a autora, somente elevando-se ao plano ético-político as classes sociais conseguirão imprimir à própria ação caracteres socialmente universais e qualitativamente integrais. Isso significa, também, a elevação da vida cultural-política daqueles estratos sociais que, antes de obtê-la, viviam passivamente e, portanto, não haviam superado o limiar da consciência histórica (SIMIONATTO, 2003). Vislumbra-se dessa maneira o conceito mais amplo de política proposto por Gramsci, o momento da “catarse”, em que se dá a passagem do momento meramente econômico (ou egoístico-passional) para o momento ético-político, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na cabeça dos homens. Nesse momento, cessa-se a passividade das massas, que não mais podem aceitar a subordinação dos seus interesses imposta pela ordem capitalista. A consciência crítica passa a mover as ações de todos os indivíduos, o questionamento da ordem e a busca da intransigência acima de tudo. Intransigente porque sempre na busca da austeridade do caráter, sem condescendência. Não se pode transigir, chegar a um acordo a partir de concessões recíprocas, porque se desnuda a luta de classes na sociedade, luta que não acontecerá sem pressões e tensões entre aqueles

que já detêm o poder, mas não vão abrir mão facilmente da ordem estabelecida na sociedade.

Destarte, o processo de construção de hegemonia não acontece somente no plano econômico-objetivo, mas principalmente no ideológico-subjetivo. A esfera da cultura, enquanto espaço de desenvolvimento da consciência crítica do ser social, que o torna capaz de intervir na realidade, é recuperada por Gramsci como reação aos dogmas da sociedade burguesa e ao avanço do poder do Estado, que, sob o manto da democracia, coloca de forma abstrata a questão dos direitos políticos, civis e sociais do cidadão (SIMIONATTO, 2003). Para o pensador italiano, seria nesse patamar que ocorre a sedimentação da ideologia dos grupos dominantes, conseguindo abranger, num projeto totalizador e aparentemente consensual, suas vontades como a mesma dos grupos subalternizados. Daí a importância de como são apresentados e interpretados os símbolos, valores e crenças na sociedade moderna. Para Gramsci, cultura e política seriam questões indissociáveis, sendo a cultura um dos instrumentos da práxis política. Fica evidente aqui o caráter pedagógico atribuído à cultura, que muitas vezes foi confundido com instrumentalização. E dependendo da forma como se apresenta a questão cultural, emergem duas possibilidades antagônicas: a manutenção da ordem vigente ou a fundação de uma nova forma de Estado, livre do aprisionamento pelas forças produtivas da sociedade.

A complexa relação entre cultura, hegemonia e contra-hegemonia é uma das bases do pensamento gramsciano. Apesar de ser um conceito bastante abrangente, Chauí ressalta que essa articulação implica tomar a proposta de uma cultura nacional-popular não como resposta única possível à hegemonia burguesa, mas sim como a resposta determinada pela forma histórica particular que essa hegemonia assume em um momento determinado – no caso, como resposta revolucionária à contra-revolução fascista (CHAUI, 2006). Decorreria então dessa forma específica de entender o mundo a possibilidade de uma cultura contra- hegemônica. A cultura nacional-popular não seria uma receita pronta para qualquer época da história, mas aquela nascida das próprias contradições e antagonismos típicos das sociedades de classes.

Mas qual o real significado da cultura nacional-popular em Gramsci? De acordo com a filósofa, nos textos gramscianos, o nacional, visto como e enquanto popular, significa a possibilidade de resgatar o passado histórico-cultural italiano como patrimônio das classes populares (CHAUI, 2006). No caso do nacional, no campo político a análise do popular privilegia as determinações econômicas e sociais da divisão social das classes, enfatizando a opacidade dessas classes no capitalismo italiano, notadamente com relação à diferença entre Norte industrializado e Sul agrário. Do ponto de vista da cultura, o popular teria alguns sentidos novos e surpreendentes (CHAUI, 2006), ajudando no entendimento da contra-hegemonia da cultura nacional-popular.

A autora pontua que para Gramsci existiria uma religião e moral do povo, que instituiria crenças e imperativos de conduta muito mais fortes, tenazes e eficientes do que os da religião e moral oficiais (CHAUI, 2006). Nesse contexto, Gramsci distinguiria três estratos: os fossilizados, que refletem diretamente condições de vida do passado e apresentam assim um comportamento extremamente reacionário e conservador; os inovadores e progressistas, que seriam determinados espontaneamente pelas condições atuais de vida, no caso aqueles estratos do proletariado mais afetado pela ascensão da classe burguesa; por fim, Gramsci identifica aqueles que estão em constante contradição com a religião e a moral vigentes. Seriam esses indivíduos aqueles que estariam a serviço de uma cultura contra-hegemônica, ressaltada não como fato artístico ou origem histórica, mas pela concepção de mundo em contraste com a sociedade oficial.