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5. POLÍTICAS PÚBLICAS E POLÍTICAS CULTURAIS

5.2. Políticas Culturais

5.2.3. Democracia cultural

Como campo específico da criação, da imaginação, sensibilidade e inteligência que se exprime em obras de arte e de pensamento que buscam ultrapassar as barreiras do senso- comum e do estabelecido, a cultura não pode ser definida apenas pelo prisma do mercado, que além de trabalhar com o consumo, a moda e a auto-referência da consagração do consagrado, reduz a cultura nessa forma à condição de entretenimento e passatempo, mostrando-se indiferente e muitas vezes avesso ao significado criador e crítico das obras culturais (CHAUI, 2007). A autora ressalta que não podemos nos furtar sobre os aspectos

lúdicos e de lazer da cultura, mas sem a sua pretensão de reduzi-la a um luxo num país onde os direitos mais básicos não são atendidos. Dentro dessa perspectiva, uma política cultural deve ser definida pela cidadania cultural,

em que a cultura não se reduz ao supérfluo, ao entretenimento, aos padrões de mercado, à oficialidade doutrinária (que é ideologia) mas se realiza como direito de todos os cidadãos, direito a partir do qual a divisão social das classes ou a luta de classes possa manifestar-se e ser trabalhada porque, no exercício do direito à cultura, os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, entram em conflito, comunicam e trocam experiências, recusam formas de cultura, criam outras e movem todo o processo cultural (CHAUI, 2006; p. 138).

Dada à tendência do capitalismo transnacional mercantilizar todas as esferas de nossa vida, e o conseqüente colapso do cultural no econômico, Santos nos lembra que é precisamente onde o trabalho, diferenciado e não “abstrato” está sendo transformado em mercadoria que o cultural pode se tornar novamente político (SANTOS, 2003). A visão da cultura como trabalho, como processo social teleologicamente orientado pela linguagem articulada, realizado em conjunto com pares e que produz algo novo, o trabalho livre ultrapassa e modifica o existente, operando mudanças em nossas experiências imediatas, abrindo o tempo com o novo, fazendo emergir o que ainda não foi feito, pensado e dito (CHAUÍ, 2006).

O produto da obra se expõe para os outros sujeitos, outros atores coletivos que se identificam aquela obra, identificando-se com um ou outro aspecto da reapresentação do mundo feita pelo artista. A obra existe pelos olhos do artista, mas principalmente pelas possibilidades de retrabalho pelos diversos sujeitos para que é exposta, e assim se abrir às possibilidades da inteligência, da sensibilidade e da reflexão do outro. Como trabalho de abstração, Marilena Chauí considera a questão da pintura:

Que é a pintura? A expressão do enigma da visão e do visível: enigma de um corpo vidente e visível, que realiza uma reflexão corporal porque se vê vendo; enigma das

coisas visíveis, que estão simultaneamente lá fora, no mundo, e aqui dentro, em nossos olhos; enigma da profundidade, que não é uma terceira dimensão ao lado da altura e da largura, mas aquilo que não vemos e, no entanto, nos permite ver; enigma da cor, pois uma cor é apenas diferença entre cores, enigma da linha, pois ao oferecer os limites de uma coisa não a fecha sobre si, mas a coloca em relação com todas as outras. O pintor interroga esses enigmas e seu trabalho é dar a ver o visível que não vemos quando olhamos o mundo (CHAUI, 2006; p. 137).

O pintor mostra uma forma da realidade a partir de seu ponto de vista, para que de alguma forma outros possam interpretá-la. Numa perspectiva de cultura apenas como trabalho, podemos ser levados a privilegiar o campo das belas-artes, e a ação estatal poderia ficar reduzida à promoção de ateliês e grupos de pintura, e teríamos como resultado um hobby, um passatempo e, no melhor dos casos, uma ludoterapia (CHAUÍ, 2006), uma solução que não contempla o direito de produzir obras culturais em sua plenitude. Partindo dos pressupostos de que o Estado não é produtor de cultura, nem instrumento para seu consumo, uma forma de intervenção democrática deve pautar-se em assegurar o direito de acesso às obras culturais produzidas, particularmente o direito de fruí-las, o direito de criar as obras, isto é, produzi-las, e o direito de participar das decisões sobre políticas culturais.

A autora lembra que existe uma diversidade de sujeitos na sociedade, e que nem todos são pintores, mas praticamente todos amam as obras da pintura. Assim, da mesma forma que permite a produção de uma série de sujeitos, o Estado também deve prezar para que todos possam ser levados para as obras dos artistas, garantindo o acesso às informações e fornecendo recursos estruturais, como instalações e espaços para a fruição. Por fim, e como um dos prismas mais importantes da política cultural, a autora lembra que mesmo as pessoas não são pintoras, nem escultoras nem dançarinas, também são produtoras de cultura, no sentido antropológico da palavra: são, por exemplo, sujeitos, agentes, autores de sua própria memória (CHAUÍ, 2006). Assim, a ação deve caminhar no sentido de oferecer condições para que os próprios sujeitos possam criar seus registros, garantindo a preservação da sua memória social.

Alargando o conceito para além da concepção das belas-artes, garante-se o acesso à produção e fruição a partir de perspectivas distintas daquelas voltadas para o espetáculo, e o valor da obra passa a remeter menos para seu valor de uso como mercadoria e mais como o registro da história de um povo, a partir de suas contradições, de suas lutas internas e externas, a partir de suas próprias concepções e visões de mundo. A partir dessa concepção, parece-nos elementar para uma ação política democrática a exigência de acomodação dos mais diversos interesses e propósitos culturais, particularmente a produção cultural daqueles grupos considerados marginais, dissidentes, residuais, e que na verdade são o produto direto das contradições internas cada vez mais agudas do capitalismo flexível.

Na era do fim dos empregos exatamente porque a classe trabalhadora não pode mais ser considerada o único sujeito coletivo produzido pela ação predatória do capitalismo é que começa a tomar vulto a tese de um multiculturalismo emancipatório, que acomode de forma transdisciplinar as demandas dos diversos movimentos sociais, promovendo hibridismos e debates democráticos num campo mais amplo de participação democrática, coletivizando demandas e promovendo o processo de formação de consensos e dissensos como o mais importante produto da ação coletiva.

Uma política cultural dessa monta pode marcar o inicio de uma nova era em termos de ação coletiva para os movimentos sociais, articulando demandas sociais comuns em torno da temática da cultura, de forma a promover um feixe maior para o necessário entrelaçamento entre o espaço político estatal e o espaço político não-estatal – diferentemente dos movimentos articulados somente por atores relevantes da nova sociedade civil.

Conforme lembra Boaventura Santos, a teoria liberal pretendeu evacuar todos os mecanismos de poder presentes na sociedade civil, que como espaço antagônico não se mostra como um foco aglutinador de poder e interesses para grupos marginais, e o poder se efetua exatamente nas relações entre a sociedade civil e o Estado. O reconhecimento de diversos atores marginalizados por séculos de dominação e opressão pelo Estado pode marcar a estruturação de uma nova forma de poder, inicialmente para as políticas culturais,

e pode ser a semente para uma ampliação sem precedentes dos espaços políticos da democracia participativa.