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5. POLÍTICAS PÚBLICAS E POLÍTICAS CULTURAIS

5.2. Políticas Culturais

5.2.7. Indústria Cultural

Analisemos assim os principais aspectos da indústria cultural. Márcia Dias lembra que o conceito de indústria cultural foi proposto por Adorno e Horkheimer em 1947, quando da primeira edição de Dialética do Esclarecimento, e foi usado para se referirem à produção cultural própria do capitalismo (DIAS, 2007). Questionavam o conceito de cultura de massa, que concebia a sociedade como estratificada entre elite e massa, evocando a cultura que emergiria espontaneamente das massas, ofuscando assim a sua condição de dominação de classe. Para os autores a indústria cultural seria parte constitutiva da longa e contraditória marcha do esclarecimento (DIAS, 2007). No mundo moderno, a absorção das atividades artísticas pela lógica industrial seria apenas uma etapa de articulação do capital com as possibilidades do simbolismo inerentes aos processos culturais, promovendo a sinergia de interesses entre o econômico e o devaneio artístico. A absorção da atividade de criação mostra somente a movimentação dos preceitos racionais da indústria, que num certo momento necessitou promover a circulação de manifestações culturais – que nesse momento já podem ser identificados como bens culturais – dentro da lógica da lucratividade e do aumento do giro do capital.

Nesse novo paradigma, inicia-se uma fase de necessidade da apresentação de conteúdos e formatos que possam ser palatáveis ao gosto da maior gama possível do mercado-alvo das corporações. Dessa forma, eleva-se a posição do efêmero e do frugal, dentro de uma cultura de consumo, que deve satisfazer uma necessidade ao mesmo tempo em que deve produzir uma outra, instantaneamente, como um valor interiorizado que muitas vezes não se possa ao menos ter consciência de sua eficiência. A disseminação do uso da televisão, eletrodoméstico que como um “liquidificador” promovia uma “dose diária de vitamina cultural”, do folhetim à música clássica, da pintura ao futebol, do documentário ao show de rock, certamente contribuiu para o desenvolvimento desse modo de consumo, o que foi compreendido desde cedo pelas corporações, que viram na televisão o elemento faltante para emitir para milhares de receptores mensagens sobre as maravilhosas possibilidades de seus produtos.

Com relação à indústria fonográfica, por sua vez, não se pode podemos desconsiderar a importância do jabá (jabaculê, sinônimo de propina) como um dos fundamentos da indústria cultural, se tornou uma prática comum principalmente no mercado fonográfico e tem adquirido ares de venda legal de serviços de divulgação de produtos musicais. Entretanto, os altos valores envolvidos são da ordem da circulação dos bens culturais, penalizando aqueles produtores com menos recursos financeiros e privilegiando os atores das grandes corporações, que podem de alguma forma pagar para ter os seus produtos veiculados nas mídias com maior penetração de mercado. Os altos valores envolvidos elevam significativamente o preço final dos produtos e alimentam o circuito endógeno e auto-referente da indústria cultural (DIAS, 2006).

Os prejuízos para a diversificação da oferta são conhecidos, haja vista a longa permanência na mídia dos mesmos artistas ligados às majors e a dificuldade para o surgimento e a manutenção de produções independentes das chamadas indies. Dessa forma, a velha máxima de “passa porque é bom ou é bom porque passa?” deveria ser na verdade preenchida pelo poder auto-referente promovido pela esfera estrutural, e o que se passa nas mídias mais concorridas tem como base nada mais do que o poder do capital e sua necessidade de geração de lucro cada vez mais rapidamente. A situação tende a se tornar

estável, quase naturalizada, uma vez que o que passa precisa ter a simplicidade necessária para o público ouvinte, que infelizmente tem pouca ou nenhuma educação musical para distinguir produções mais aprimoradas daquelas voltadas para a rápida comercialização.

Ainda com relação à indústria fonográfica, e passando também pelo conteúdo de revistas, vídeos e livros, mesmo os artistas mais consagrados precisam também, de alguma forma, passar pelo crivo do mercado. Com relação à distribuição, além do poder das grandes gravadoras e editoras, existe ainda o poder de seleção de repertório dos grandes varejistas, que se recusam a vender em suas prateleiras CDs, revistas e vídeos cujo conteúdo não esteja em conformidade com os “valores de tradição e da família”, maculando a imagem de “entretenimento para a família”. Naomi Klein considera a atuação desses agentes como eliminação e supressão ativa de material, uma eficiente forma de censura corporativa. Para enfrentar esse tipo de censura, muitos produtores chegam a apresentar os conteúdos aos varejistas antecipadamente. Outros, a fim de não perder o grande filão do concentrado mercado de distribuição promovido pelos categorial killers, acabam lançando duas versões do mesmo trabalho, como no caso da Warner e do Nirvana, que após a objeção do Wal- Mart em vender o segundo disco da banda, In Utero, mudaram a contracapa e alteraram a título da canção “Rape Me” (“estupre-me”) para “Waif Me” (“Abandone-me”) (KLEIN, 2004).

Acontece, assim, uma seleção de repertório a partir da lógica privada de atuação dos grandes conglomerados varejistas, não somente do que será vendido, mas antes de quase tudo o que será produzido. Apesar de a autora levantar esses aspectos na perspectiva do mercado dos países desenvolvidos, muito dessas práticas já acontecem no Brasil. Não podemos esquecer de casos como o da banda Planet Hemp, que no início da carreira chegou a ser acusada de apologia às drogas por parte dos meios de comunicação. Depois de alguma acomodação, a banda conseguiu mudar a imagem de apologia para uma atitude moderninha com relação às drogas, entrando para o circuito dos grandes artistas nacionais e hoje vai muito bem, fazendo grande sucesso em todas as rádios e em canais de clips musicais como a MTV.

A autora chama atenção para o fato da maioria das pessoas serem propensas a acreditar em decisões corporativas dessa monta como sendo não-ideológicas, mesmo que apresentem um forte viés político. Tanto no caso do jabá como no da restrição de conteúdos por parte dos varejistas o que está em jogo na verdade são valores eminentemente políticos. Nesse caso, passamos por um processo de “aculturação” em que os valores determinantes para toda a sociedade são aqueles que passam pelo crivo do mercado e consequentemente pelas idéias da classe dominante, engendrando assim uma “cultura comum” a partir de valores e ideais de uma pequena minoria. Não queremos nem podemos reduzir toda a questão da indústria cultural apenas à visão de uma classe, mas fica evidente que qualquer forma de manifestação artística que não contemple a visão de mundo das classes dominantes está fadada ao fracasso mercadológico.

Como pode ser encarada, nessa perspectiva, a omissão das grandes redes de comunicação para o rap da periferia de grupos como o Racionais, que apresenta uma visão de mundo diametralmente oposta àquela das classes dominantes? Sabemos que existe uma recusa explicita do líder do grupo em participar de programas nas grandes redes, e podemos especular que essa recusa é corolário do poder de veto dessas emissoras, que certamente vai exigir desses grupos uma versão higienizada de seus trabalhos (KLEIN, 2004), uma vez que tais conteúdos vão de encontro à visão de mundo das classes dominantes. Quanto mais a cultura é comercializada, maior a imposição da disciplina do mercado em forçar os produtores aos valores conservadores da prudência, antiinovação e um nervosismo quanto a ser causa de conflitos (EAGLETON, 2005).