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4. A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE CULTURA

4.7. Cultura e políticas de identidade

Eagleton levanta uma importante questão acerca das políticas de identidade, necessidade última do pós-modernismo. A partir da década de 60 a palavra “cultura” teria girado sobre seu próprio eixo, passando de uma universalidade transcendente que caracteriza toda a humanidade para a afirmação de uma identidade específica – nacional, étnica, regional. O conflito é então colocado por Eagleton como o choque entre Cultura e cultura, esta valorizando uma particularidade coletiva acidental ao invés de uma forma de universalismo daquela. Por sua vez, essas identidades particulares, ao verem a si mesmas indistintamente

como oprimidas, ocasionaram a transformação de um reino de consenso em terreno de conflito, fragmentando ainda mais a sociedade e diminuindo as possibilidades da luta coletiva. Essas diferenças, marcadamente baseadas na cultura como sinal, imagem, valor, identidade, solidariedade e auto-expressão, foram a tônica das formas de combate político radical nas últimas décadas – nacionalismo revolucionário, feminismo e luta étnica – mas nem por isso podemos relacionar positivamente as políticas de identidade. Na Bósnia ou em Belfast, cultura não é apenas o que se coloca no toca-fitas; é aquilo por que se mata (EAGLETON, 2005).

Ao elevar particularidades coletivas puramente aleatórias ao status de tônica da luta política, as políticas de identidade da pós-modernidade vão contra a individualidade como o meio do universal, pois é na unicidade de alguma coisa que o espírito do mundo pode ser mais intimamente sentido (EAGLETON, 2005). Dessa forma, um modo de vida contingente, um acidente de lugar e tempo que sempre poderia ter sido de outra maneira acaba por suplantar a essência da espécie humana, desestabilizando o circuito direto entre o individual e o universal e configurando-se como uma forma de diferenciação arbitrária entre os indivíduos. Enquanto isso, o sistema político dominante se torna cada vez mais hegemônico, baseado no fato de não ter apenas um oponente, mas uma coleção heterogênea de adversários desunidos. Se essas subculturas protestam contra as alienações da modernidade, também as reproduzem na sua própria fragmentação. Para o autor, as formas mais inspiradoras de políticas de identidade são aquelas em que se reivindica uma igualdade com os outros no que diz respeito a ser livre para determinar aquilo que você deseja se tornar, ao contrário daquela que reclama que uma identidade já completamente formada está sendo reprimida por outras (EAGLETON, 2005). As identidades coletivas associadas a essa reivindicação são os resultados emergentes das próprias lutas (SANTOS, 2003).

Eagleton ressalta um importante aspecto acerca das políticas de identidade e cultura. Para o autor, não existe uma “política cultural”, no sentido de certas formas de política que são especificamente culturais. Ao contrário, a cultura não é em absoluto inerentemente política. Não há nada de inerentemente político em cantar uma canção de amor bretônica,

organizar uma mostra de arte afro-americana ou declarar-se lésbica. O autor continua, insistindo que essas coisas se tornam política apenas sob específicas condições históricas, geralmente de um tipo desagradável, quando são apanhadas num processo de dominação e resistência – quando essas questões, de outra forma inócuas, são transformadas por uma razão ou outra em terrenos de disputa. Para ele, o propósito último de uma política de cultura seria então devolver a essas coisas sua inocuidade, permitindo que se possa cantar, pintar ou fazer amor sem a incômoda perturbação da disputa política (EAGLETON, 2005; p. 173).

O autor sumariza o paradoxo da política da identidade afirmando que se precisa de uma identidade a fim de se sentir livre para desfazer-se dela e finaliza afirmando ironicamente que há proponentes de uma política de identidade que no momento em que pudessem finalmente apresentar suas particularidades com sossego, não teriam mais nenhuma noção do que fazer consigo mesmos (EAGLETON, 2005). Ainda não temos como responder essa questão, haja vista que as políticas radicais de identidade ainda estão a toda força, mas podemos assuntar que o próprio capitalismo tem se preparado para acomodar essas “inovações democráticas”.

Na medida em que novas especificidades são reconhecidas e mais “aceitas” pela sociedade, não faltarão empresas prontas a formatar toda uma nova linha de produtos para atender ao novo “nicho de mercado”. Aliás, esse movimento está bastante adiantado, e já temos linhas de produtos exclusivas para negros, shoppings em que há maior tolerância sexual e serviços específicos para idosos, agora chamados singelamente de “melhor idade”. O novo paradigma do capitalismo, em que as marcas são “significado” e não características de produtos, vai ao encontro dessa política de identidade que valoriza sobremaneira particularidades coletivas.

Não faltarão, portanto, empresas prontas a fornecer aos consumidores oportunidades não apenas de compra, mas de experimentar plenamente o significado de sua marca (KLEIN, 2004). Dessa forma, vislumbra-se uma assustadora sinergia entre política de identidade e nicho de mercado, e as empresas não mais precisarão criar experiências mirabolantes para

estreitar o relacionamento com seus clientes, necessitando apenas adequar-se às essas novas identidades da sociedade, identidades essas que na mente de seus defensores com certeza transcendem a universalidade da espécie humana. Nada mais cômodo para o capitalismo do que ver seus antigos inimigos cada vez mais divididos. A questão do branding e da transcendência será mais bem tratada em capítulo específico, mas devemos ressaltar aqui a sinergia que alguns autores consideram existir entre o capitalismo e o multiculturalismo.