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3 NUMEQ: UMA EXPERIÊNCIA EXTENSIONISTA ANTIRRACISTA NO SERTÃO CENTRAL CEARENSE

3.3 Relação teoria-prática no fazer pedagógico antirracista: o Numeq no Quilombo Sítio Veiga

3.3.2 Curso de Arquitetura e Urbanismo

As ações realizadas aconteceram com os jovens, juntamente com o curso de Psicologia, na mesma perspectiva de protagonismo juvenil e de pertença, fortalecendo vínculos dos jovens quilombolas com a comunidade.

Em nossas primeiras conversas da liderança com o curso de Arquitetura, colocou-se a necessidade da criação de um espaço de leitura no Veiga. Nas nossas primeiras ações, ainda se cogitou essa possibilidade: os jovens identificaram os espaços para possível idealização da

demanda da comunidade. Posteriormente, o grupo foi dividido em duplas ou trios para traçar estratégias de implantação do espaço de leitura, como listar os livros que iriam compor o acervo; DVDoteca; brinquedoteca; oficina de construção de brinquedos com materiais recicláveis; entrevista com os mais velhos da comunidade para o registro de brincadeiras da comunidade, sendo uma forma de preservação da cultura local. Podemos perceber que a ideia do Espaço de Leitura, apesar de ter partido de uma necessidade da comunidade, deveria ser trabalhada de forma dialogada com os jovens. Assim, acreditávamos que estaríamos sensibilizando-os para o protagonismo juvenil e despertando-os para o sentimento de pertença. Entretanto, no decorrer do processo, levaram-se para o Numeq as dificuldades de implantação, e ficou definido que não faríamos quaisquer alterações no espaço-território – primeiramente por não ter apoio financeiro por parte da instituição, e também por não fortalecer a ideia de que a Arquitetura estava ali para modificar o espaço, muito pelo contrário: o que se almejava era uma perspectiva popular da arquitetura, sem necessariamente haver uma modificação do espaço.

Levamos a decisão para a liderança da comunidade, falamos das nossas dificuldades em relação à concretude do Espaço de Leitura, lamentamos não poder contemplar a demanda. Logo, redefinimos as atividades do curso de Arquitetura no quilombo, e foi apresentada ao Numeq a proposta de se realizar o levantamento censitário da comunidade, com a aplicação de questionários contendo perguntas que atendessem a todas as áreas do grupo, construindo uma base de dados do Sítio Veiga para subsidiar nossas pesquisas.

Assim, as atividades foram reformuladas e os/as estudantes passaram a realizar um levantamento e o mapeamento da comunidade. Com a ajuda de moradores, conheceram a delimitação do território quilombola e fizeram também uma visitação às casas da comunidade. Nesse contexto, foram obtidas informações acerca do número de homens e mulheres, idosos, adultos, jovens e crianças, da infraestrutura básica da comunidade, da cultura e do reconhecimento de cada morador como quilombola – essa última em associação ao grau de parentesco com o membro mais antigo da comunidade, seu Joaquim –, à sua história, aos seus costumes, bem como à sua materialidade arquitetônica (GRANGEIRO; MAIA; NOGUEIRA, 2017).

Ainda de acordo com os referidos autores, as maneiras de morar e suas relações, as formas das casas e os costumes estão dentro de uma rede de criação, algo construído pela cultura, que se passa a chamar de patrimônio imaterial.

Importante observar, de acordo com os mesmos autores, que a permanência do quilombo no tempo e no espaço é fruto da adaptação à realidade local, o que não significa que

ela perdeu sua identidade como comunidade negra, mas sim que passou por um processo de aglutinação de novos saberes e fazeres. As trocas de informações e aprendizados foram internalizadas pelos moradores e passaram a fazer parte do cotidiano daquelas pessoas.As novas técnicas de construção que foram agregadas, tanto pelas inovações e condições financeiras como pelas questões de terras, não descaracterizaram a comunidade: pelo contrário, impulsionaram a adaptação ao local, fator importante para sua permanência.

Após a primeira coleta de dados, por meio de questionários (disponíveis nos apêndices) e levantamento fotográfico, foram gerados mapas contendo o levantamento genealógico dos habitantes, relacionando-os com suas respectivas casas, com um plano geral da comunidade no território e uma possível divisão tipológica das construções quilombolas a partir de suas fachadas. A formação desses mapas permitiu construir hipóteses para uma leitura tanto histórica como espacial sobre a ocupação do território do Sítio Veiga.

Além da aplicação dos questionários, do registro fotográfico e do mapeamento histórico e espacial do Quilombo, os/as estudantes de Arquitetura facilitaram duas oficinas durante a Semana da Consciência Negra na comunidade quilombola: turbantes e máscaras africanas.

A oficina de turbante aconteceu no mês de novembro durante a Semana da Consciência Negra do Quilombo Sítio Veiga. Na oportunidade, contribuímos na facilitação das oficinas, e a de turbante era uma delas. A escolha da oficina foi coletiva do Numeq, visto que as temáticas de intervenção estavam direcionadas à identidade negra – assim, era mais do que oportuno contemplar essa oficina.

Como já falamos no decorrer deste texto, o cabelo e o corpo negro são representações de positivação na construção da identidade negra. Na oficina se historicizou sobre a temática, falamos de seus diversos sentidos e significados – por exemplo, as diversas etnias do continente africanos e suas posições sociais, e posteriormente fizemos as diferentes formas de amarração. Ainda na exposição da oficina, ressaltou-se o turbante como um símbolo de resistência e autoestima da população negra, bem como de seus valores identitários, políticos e de pertencimento étnico. Todavia, Lody (2004, p. 19) afirma que “o espaço da cabeça identifica a pessoa. A cabeça e os cabelos têm esse poder sobre as pessoas: quem é, o que faz, qual o seu lugar no grupo, na sua comunidade, na sociedade”.

Os tecidos para a confecção dos turbantes foram adquiridos por nós: cotizamo-os entre os/as professores/as do Numeq e realizamos três diferentes tipos de amarrações. Durante a oficina, houve alguns relatos como: “eu nunca tinha soltado o cabelo”, “achava bonito o turbante, mas nunca tive a coragem de usar”, “pensava que era difícil colocar o turbante”. O uso

desse adorno implica também uma prática política dos movimentos afro-diaspóricos, tendo a África como referencial identitário, histórico e estético que legitima práticas e costumes. Figura 33 – Roda de conversa sobre a história do turbante

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Figura 34 – Primeira amarração de turbante durante a oficina

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Lody (2004) é categórico ao afirmar a influência da cultura africana na cabeça dos negros brasileiros. Os penteados e turbantes são, na opinião do autor, “um dos nossos fortes elos com a África e [...] um modo criativo de ser „africano‟ no Brasil” (LODY, 2004, p. 19).

A culminância da oficina de turbante foi no desfile da noite cultural, em que as jovens quilombolas e mulheres afirmaram sua identidade e elevaram sua autoestima desfilando com esse adorno. O turbante foi utilizado pela primeira vez por mulheres durante as jornadas da Dança de São Gonçalo.

A oficina de máscaras africanas seguiu a mesma dinâmica da de turbantes: primeiramente falou-se sobre a história, bem como a simbologia para o povo africano, utilizado principalmente em eventos religiosos e sociais como forma de representação dos espíritos dos antepassados.

Domingues (2015) ressalta que as máscaras para os povos africanos têm um significado espiritual e religioso; contudo, elas são usadas em celebrações, nascimentos, rituais de iniciação, colheita, entre outras ocasiões. Entretanto, as máscaras africanas para outras culturas são vistas como algo exótico, não muito diferentes das indumentárias, cabelos, turbantes, entre outros elementos que a cultura ocidental, principalmente, enxerga como diferente, exótico, e não como cultura.

Ainda de acordo com a mesma autora, as máscaras variam em formas, estilos, tamanhos, material utilizado, uso e significados, sendo um elemento identitário fundamental de cada etnia e atestando a riqueza e o patrimônio cultural africano.

Há várias formas de se confeccionar as máscaras africanas. Optamos por fazê-las com papel dupla face, tanto pela facilidade de encontrar o material e pelo manuseio dos participantes quanto pelo custo-benefício. O produto da oficina foi utilizado como ornamentação no local da Dança de São Gonçalo.

Figura 35 – Produção final da oficina de máscaras africanas

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Foram criados canais de comunicação e divulgação das ações do projeto de extensão como uma ferramenta de comunicação dos integrantes do Numeq e também uma forma de visibilidade das ações que eram desenvolvidas nos encontros de formação e de intervenção no Quilombo Sítio Veiga. A responsabilidade e o gerenciamento de alimentar as mídias digitais, tais como Facebook22, Instagram23 e o blog,24 ficavam por conta dos/as estudantes do Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo (Toca) e sob a supervisão do professor de Arquitetura.

Destacamos que a Arquitetura nos possibilitou olhar por um viés cultural, trazendo, tanto para a comunidade quanto para os seus alunos, a valorização da cultura local, da memória, da tradição oral, a Dança de São Gonçalo como patrimônio imaterial, ou seja, elementos essenciais para a construção da identidade e da pertença do povo quilombola.