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3 NUMEQ: UMA EXPERIÊNCIA EXTENSIONISTA ANTIRRACISTA NO SERTÃO CENTRAL CEARENSE

3.3 Relação teoria-prática no fazer pedagógico antirracista: o Numeq no Quilombo Sítio Veiga

3.3.1 Curso de Educação Física

A prioridade das atividades por parte da Educação Física foi a contação de histórias com as crianças. A ideia de trabalhar a identidade negra com esse grupo foi construída ao longo do processo no quilombo e a partir das observações realizadas nas primeiras ações no Veiga. A proposta foi abordar a temática racial de maneira lúdica: tocamos em pontos cruciais e importantes para o fortalecimento da identidade negra, como a aceitação do cabelo, racismo na infância, ancestralidade, entre outras discussões peculiares que incidem principalmente sobre as crianças negras. Todavia, numa comunidade quilombola e com uma liderança que pauta essa questão, percebeu-se a carência em relação à questão racial especificamente com as crianças da comunidade.

Durante o período de intervenções com as crianças quilombolas, priorizaram-se livros infantis que possuíssem personagens negros para que eles se reconhecessem nas histórias contadas e como forma de assimilação do conhecimento. Após a contação, trabalhamos com

desenhos, colagens e massa de modelar. Desse modo, teríamos uma melhor compreensão do assunto levantado.

Os livros que foram trabalhados nas intervenções no Veiga foram: “Mundo Black Power de Tayó” (Kiusam de Oliveira, 2013), “Cabelo de Lelê” (Valéria Belém, 2007), “Minha mãe é preta, sim!” (Patrícia Santana, 2008), “Zumbi: o pequeno guerreiro” (Kayodê, 2009). Além disso, exibimos o vídeo: “Pode me chamar de Nadí” (Déo Cardoso, 2009). A escolha das histórias se fez de forma pessoal, ou seja, primeiro eu lia e conhecia os livros que iriam compor a intervenção, necessariamente e como um dos requisitos era conter personagens negros/as e trabalhar positivamente a questão da identidade negra. Desta forma, não caíamos no erro de escolher qualquer livro ou que não contemplasse nosso objetivo maior que seria o enfrentamento do racismo e a construção identitária das crianças negras quilombolas.

De forma breve, vou apresentar cada livro que foi utilizado nas ações desenvolvidas no quilombo. O livro de Kiusam de Oliveira, “Mundo Black Power de Tayó” (2013), conta a história de Tayó, a qual é uma menina negra que tem orgulho do seu black power, enfeitando-o das mais diversas formas, mas sofre e enfrenta os preconceitos dos coleguinhas da escola. A autora nos traz uma personagem cheia de autoestima e transforma o enorme cabelo crespo de Tayó numa metáfora para a riqueza cultural de um povo. A autora narra, de forma lúdica, o que pode ser bem traumático na vida real, pois as crianças negras sofrem demais com os xingamentos que recaem sobre a cor da sua pele e seus traços físicos. Falar sobre cabelo, principalmente para as meninas negras, é de extrema importância, visto que cada vez mais são submetidas a processos de alisamentos para se adequar aos padrões. O ambiente escolar é o espaço onde elas são inicialmente confrontadas com o racismo e consequentemente daí vem a falta de preparo dos educadores para tratar sobre a temática racial.

“O cabelo de Lelê”, da autora Valéria Belém (2007), nos apresenta Lelê, que se sente incomodada com o que vê no espelho e começa a se perguntar – de onde vêm tantos cachinhos? Sem saber o que fazer, ela puxa e estica os cabelos, tentando entender de onde vieram tantos cachinhos. E essa resposta ela encontra num livro, em que descobre sua história e a beleza da herança africana. São cabelos de todos os tipos, penteados diversos e enfeites lindos, cada um mais belo que o outro. Ela ama ver aquilo e sai por aí, com os cabelos ao vento, brincando e exalando a sua felicidade. Ela percebe que seu cabelo é a sua marca, seu cabelo conta histórias e, além de tudo, vê a beleza que existe nele. O livro termina com Lelê amando o que ela vê, seus cabelos.

Posteriormente, mostramos ilustrações de Lelê com seus vários tipos de cabelos e pedimos para cada um escolher os que mais gostaram. Os participantes recortaram cerca de quatro ou cinco imagens, colaram no papel e depois fixamos na parede para que cada um pudesse ver o do outro. Um garoto chamou minha atenção: ele tinha uma deficiência física e participou poucas vezes das ações, pois seu deslocamento era muito difícil. Percebi que ele não escolheu nenhum dos cabelos, então me aproximei dele e perguntei:

- Você não vai cortar nenhum desses cabelos? Ele falou: - Não gostei de nenhum desses cabelos. E eu retruquei: - Tu olhou direito, olha o monte de cabelo, olha de novo, não acredito que dentre esse tanto de cabelo tu não achou um bonito... - Não, não. - Olha direito. Dessa forma, ele olhou novamente e escolheu quatro tipos de cabelos que ele achou bonito. Depois eu falei: - Olha aí, viu? Tu olhou direito e encontrou os cabelos bonitos. Ele começou a rir.

Figura 26 – Exposição da atividade de colagem pós-contação de história Cabelo de Lelê

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Figura 27 – Atividades de colagem pós-contação de história Cabelo de Lelê

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Depois da atividade de colagem, pedimos para que agora eles desenhassem seus próprios cabelos. Com essa atividade, quisemos mostrar a questão da diferença, que não existe um modelo único, que cada um era belo e bonito com aquilo que possui. Trabalhamos principalmente a valorização do cabelo, que, para a população negra principalmente, é alvo de muitas brincadeiras racistas e de inferiorização da sua estética. Isso resulta, muitas vezes, na negação do ser negro.

Ainda numa mesma perspectiva da contação de história, foi exibido o curta “Pode me chamar de Nadí”, do cineasta cearense Déo Cardoso (2009), já relatado anteriormente, pois foi um dos vídeos utilizados no encontro de formação.

Assim como o livro de Kiusam de Oliveira (2013) e Valéria Belém (2007), Déo Cardoso (2009) também nos traz essa narrativa tão atual e sobre a qual a cada dia precisamos falar: os cabelos, temas silenciados e omitidos na escola e fora dela. Se não forem trabalhados podem gerar feridas enormes e um afastamento da sua identidade e da sua pertença étnica.

A importância do corpo e do cabelo no processo de construção da identidade, principalmente do ser negro/a, são ferramentas fundamentais. São marcas de como o negro/a se vê e é visto pelo outro e carregam um forte significado no mundo simbólico – porém, o cabelo traz consigo um imaginário de inferioridade.

Seguindo o mesmo pensamento de Gomes (2003), há espaços em que o cabelo é sinônimo de revalorização, de afirmação, de pertença, que acaba nos remetendo, de forma consciente ou não, a uma ancestralidade africana ressignificada no Brasil. Podemos citar o movimento hip-hop, que utiliza essa corporeidade e estética de forma bastante positiva; o movimento Black Power; bailes black da década de 1970, entre outros. Daí, podemos perceber como é complexa a construção dessa identidade numa sociedade onde nos deparamos diariamente com ações discriminatórias e com olhares negativos no que se refere ao ser negro/a. Portanto, a corporeidade e a estética são consideradas fortes marcas e traços construtores da identidade negra.

Quantas vezes são ouvidas piadas pejorativas relacionadas a sua imagem, como “nega do cabelo pixaim”, “cabelo de Bombril”, “nega do óleo”, entre tantas outras. A naturalização de tais agressões racistas é nítida, podendo ser internalizadas pelo/a negro/a – o que pode propiciar uma inferioridade em relação ao outro. Por isso, precisamos ressaltar a autoestima e a identidade do ser negro/a de maneira positiva(GOMES, 2003).

Foi apresentada ao grupo a história de Patrícia Santana (2008), chamada “Minha mãe é negra, sim!”. A autora nos conta sobre o garoto Eno, que é levado a se perguntar sobre a sua origem. A professora sugere que o menino pinte o desenho da mãe, negra, de amarelo, por ser

uma cor mais bonita. Diante do preconceito sofrido, sua tristeza não cabia no coração, pois a mãe que ele tanto amava era tão linda, e era tão difícil contrariar a professora. Mesmo triste, Eno procurou no dicionário uma explicação para a palavra preconceito, mas não obteve muita resposta. Ele permanecia triste, até que o avô teve uma conversa decisiva com ele, aconchegando-o com todo o amor.

Após a apresentação, foi distribuída massa de modelar para cada criança desenhar a família. Foi interessante, pois um deles disse: “minha mãe é negra”. A discussão enquanto estavam manuseando a massa de modelar era de saber se a mãe era negra ou não. Outro fato curioso foi que uma das meninas, que estava participando da intervenção, falou que não conheceu sua mãe, pois ela tinha falecido – mas ela estava fazendo a avó, que era quem a criava. Os detalhes da cor e dos cabelos foi o que mais me chamou a atenção.

Figura 28 – Representação da mãe construída com massa de modelar

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Figura 29 – Atividade com massa de modelar/ Figura 30 – Contação de história “Minha mãe é negra, sim!”

A autora nos relata uma história que se adapta muito bem à nossa realidade: a ausência das discussões raciais, tanto na escola como fora dela, reafirmando sentimentos e representações negativas em torno do ser negro/a, o que acaba perpetuando a cordialidade do “racismo à brasileira”.

Para falar um pouco da ancestralidade e do respeito à nossa história, contamos a história “Zumbi: o pequeno guerreiro”, de Kayodê (2009). O autor traz uma versão infantil e bem animada dos pequenos Zumbi dos Palmares e de Dandara, falando de resistência, de luta e principalmente de liberdade.

Figura 31 – Contação de história na Semana da Consciência Negra

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Essa foi a última contação que fizemos em comemoração à Semana da Consciência Negra, que acontece todos os anos no Sítio Veiga. Quisemos abordar a história do grande guerreiro Zumbi, mas numa linguagem apropriada, para que eles pudessem assimilar o que foi falado. Depois, pedimos para cada um desenhar o que tinha entendido da história e partilhar sua ideia sobre Zumbi dos Palmares.

Importante observar que Gomes (2003) reflete sobre a escola não ser o único lugar permitido para que a educação aconteça, nem o professor o detentor de todo o saber e único responsável pela sua prática, considerando que há diferentes e diversas formas e modelos de educação. Aponta, ainda, ser importante refletirmos sobre esse processo, sejam eles escolares ou não escolares, pois muitas vezes existem práticas educativas que acontecem paralelamente à escola – por exemplo, nas ONGs, nos movimentos sociais, nos grupos juvenis, na extensão universitária, entre outros –, que precisam ser legitimadas e consideradas pelos educadores escolares e que necessitam ser estudadas nos processos de formação de professores.