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3 NUMEQ: UMA EXPERIÊNCIA EXTENSIONISTA ANTIRRACISTA NO SERTÃO CENTRAL CEARENSE

3.3 Relação teoria-prática no fazer pedagógico antirracista: o Numeq no Quilombo Sítio Veiga

3.3.5 Curso de Odontologia

O curso de Odontologia trabalhou com o grupo das crianças juntamente com a Educação Física, priorizando-se a ludicidade como um elemento fundamental para abordar a promoção da saúde bucal das crianças quilombolas através de atividades educativas e preventivas, como contação de histórias, teatro e brincadeiras recreativas, contribuindo para a educação e a informação sobre os cuidados com a saúde bucal.

O Ministério da Saúde, a partir da década de 2000, passou a trabalhar com a proposta de que se deveria ampliar e qualificar o acesso à saúde bucal em unidades básicas de saúde que abrangessem áreas urbanas e rurais, de difícil acesso e de fronteiras nacionais, e que disponibilizassem atendimento em diversos horários, com a possibilidade de atender idosos, crianças e adultos, incluindo os trabalhadores. Esses serviços incluíam a assistência e a implantação, pelo setor público, de laboratórios de próteses dentárias de âmbito regional ou municipal.

Em dezembro do ano de 2000, ainda segundo o site oficial do Ministério da Saúde, foi lançada a Portaria nº 1444, a qual “estabelece incentivo financeiro para a reorganização da atenção à saúde bucal prestada nos municípios por meio do Programa de Saúde da Família”. Tal medida representou a iniciativa necessária para o aumento da oferta de serviços públicos na área. Anteriormente a isso, o setor privado na prestação de serviços odontológicos tinha total predominância, e o Estado operava um modelo cirúrgico mutilador de baixa cobertura. A aprovação de incentivo financeiro para implantar as equipes significou uma mudança importante para o setor e para a realidade assistencial nos municípios.

Consoante a esse processo, também houve a percepção da necessidade de assistência acerca de ações de saúde bucal em comunidades quilombolas e a análise de sua implantação, visando a garantir o estabelecimento de um programa de atendimento de caráter não mutilador, universal, integral, com justiça e igualdade, e que considere as experiências e os valores culturais de cada povo quilombola (PARE; OLIVEIRA; VELLOSO, 2007; MACHADO; BATISTA; LIMA, 2010).

Os programas de saúde devem levar em conta os aspectos relativos ao conhecimento e às práticas em saúde bucal, para tornar possível o processo de capacitação da população e disseminar a responsabilidade coletiva da promoção da saúde em todos os níveis da sociedade (UNFER; SALIBA, 2000).

Freitas et al. (2011), em uma revisão de literatura acerca da saúde em localidades quilombolas, apresentaram uma reflexão sobre as questões referentes às populações

quilombolas e seus obstáculos em relação à garantia de seus direitos de acesso aos serviços de saúde. A partir dessa explicação, concluiu-se que as políticas públicas em saúde devem ser baseadas na equidade, dando assistência inclusive a grupos especiais, de maneira especializada, às comunidades quilombolas brasileiras.

O Governo Federal vem incluindo propostas de iniciativas que estão concentradas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Quilombola e são quase completamente centradas em obras de saneamento e infraestrutura. No relatório do Ministério da Saúde, as ações voltadas à população quilombola estão, em geral, marcadas pela ideia de “incentivo à equidade”, através da extensão da cobertura de ações já existentes, como o Programa de Habitação e Saneamento, as ações de segurança alimentar e nutricional e a Estratégia de Saúde da Família (ESF) (FREITAS et al., 2011)

As intervenções visavam à sensibilização da comunidade, mais especificamente das crianças, no que concerne à educação em saúde bucal, visto a precariedade do atendimento nas comunidades quilombolas. Dessa forma, os alunos de Odontologia, juntamente com a Educação Física, por meio de um avental de história36 – sendo essa a estratégia utilizada para despertar a atenção e o interesse das crianças –, realizaram a contação de história do “Jacaré com dor de dente”. De forma breve, a história conta a conversa do jacaré Joca e o seu dente, na qual ele reclama da falta de cuidado. No decorrer da história, o dente conta como se faz a higiene bucal para que Joca nunca mais possa sentir dor. Para ressaltar o cuidado com a saúde bucal, após a contação foi realizada uma brincadeira de amarelinha com figuras que podiam ou não comer, abordando essa relação do cuidado com os dentes na prevenção de problemas como a cárie.

Figura 52 – Explicação sobre higiene bucal/ Figura 53 – Atividade lúdica depois da explicação

36 O avental de história é um ótimo recurso lúdico para contar histórias. Pode ser confeccionado a partir dos diversos tipos de histórias.

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Figura 54 – Contação de história/ Figura 55 – Crianças atentas ao modo correto de Jacaré com dor de dente escovar os dentes

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Com intuito de apreender o conhecimento em relação à educação em saúde bucal, as ações tinham esse viés. No entanto, foram desenvolvidas atividades de colagem nas quais as crianças recortavam de revistas e livros alimentos que evitavam e não evitavam a cárie dentária, e posteriormente era colado na cartolina. Após a atividade, os alunos do curso explanaram sobre a importância do cuidado com a saúde bucal, aprendendo a escovar os dentes antes de dormir, após ingerir doce e após as refeições, entre outras.

Outra atividade desenvolvida foi a escovação supervisionada e aplicação de flúor, que visou à orientação e ao estímulo das crianças quilombolas à adesão de hábitos saudáveis de higiene bucal, contribuindo para a prevenção de doenças bucais como as cáries dentárias.

Quando se pensa nas comunidades quilombolas e seu acesso às políticas de saúde, não há como fechar os olhos ao grave problema das crianças. As comunidades, em sua maioria, caracterizam-se pelo forte vínculo com o meio ambiente. As famílias destas comunidades vivem da agricultura de subsistência, sendo a atividade econômica baseada na mão de obra familiar, para assegurar os produtos básicos para o consumo. As crianças aprendem a lida na roça desde muito tenra idade. As condições sanitárias destas populações são insuficientes; a maior parte não possui água tratada e nem esgoto sanitário. Outra característica importante dessas comunidades é a ausência de serviços de saúde locais, fazendo com que, ao surgirem doenças, seus habitantes sejam obrigados a percorrer grandes distâncias em busca de ajuda. Todas estas questões acabam por aumentar o baixo índice de indicadores de saúde entre as crianças quilombolas (FREITAS et al., 2011).

Essa abordagem do curso de Odontologia deu-se principalmente da necessidade de assistência à saúde das comunidades quilombolas, tendo em vista a herança cultural sofrida e as condições de vida, que apresentam indivíduos geralmente isolados e com baixo nível de renda. Nota-se a carência de acesso ao serviço odontológico nessas comunidades (CARDOSO, 2010; FREITAS et al., 2011; ROSA, 2012). Entende-se que a condição de saúde bucal é, sem dúvida, um dos mais significativos sinais de exclusão social, seja pelos problemas de saúde localizados na boca, seja pelas imensas dificuldades encontradas no acesso aos serviços assistenciais. Dentes e gengivas registram o impacto das precárias condições de vida de pessoas em todo o país.

Figura 56 – Entrega de kit odontológico (escova, creme dental e fio dental) para crianças

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Figura 57 – Teatro para as crianças sobre higiene bucal/ Figura 58 – Escovação supervisionada

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Interessante destacar a produção de novas práticas didáticas e pedagógicas no ensino superior, a partir dos diferentes saberes e ensinamentos quilombolas e sua valorização, como vimos nas intervenções dos cursos participantes do Numeq. Para Fazenda (2012), a produção em parceria consolida, alimenta, registra e enaltece as boas produções na área da educação, a partir do olhar acadêmico no desdobramento de novas formas de trabalhar a Lei nº 10.639/03.

Podemos perceber que o Numeq possibilitou tanto aos/às estudantes quanto aos/às professores/as uma ampliação do conhecimento no que tange à questão racial. Nessa via de mão dupla com o Quilombo do Veiga, foi possível descobrir o universo de possibilidades para se transversalizar a discussão racial nas áreas de humanas, exatas e saúde, compreendendo que o saber é construído com o outro. Assim, a extensão universitária vai contribuir diretamente com a formação do/a estudante, tornando-se um diferencial.

Como salienta Freire (1996, p. 90) em seu livro “Pedagogia da Autonomia”, “[...] a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto ao seu desmascaramento”. As atividades do Numeq foram possibilidades pelas quais devemos lutar, no combate diário e incansável contra o racismo em todos os espaços em que estamos inseridos.

Ademais, destacamos como se deu a avaliação do Numeq, entendendo a avaliação como processo contínuo e flexível. Dessa forma, avaliamos a estruturação do Numeq com os encontros de formação, planejamentos e intervenções e, posteriormente, avaliamos com aplicação de questionário o que foi aprendido pelos/as estudantes por meio do projeto de extensão no que tange à temática racial.