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4 TECENDO SABERES NO ENSINO, NA PESQUISA E NA EXTENSÃO: O NUMEQ COMO LÓCUS DE UMA EXPERIÊNCIA ANTIRRACISTA

4.2 Experiência na extensão

Para o Plano Nacional de Extensão Universitária (2000), a extensão passa a ser percebida como um processo de articulação entre o ensino e a pesquisa. Dessa maneira, o conceito de extensão é estabelecido no I Encontro Nacional de Pró-Reitores de Extensão:

A Extensão Universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre Universidade e Sociedade. A Extensão é uma via de mão dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica, que encontrará, na sociedade, a oportunidade de elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à Universidade, docentes e estudantes trarão um aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será acrescido àquele conhecimento. Esse fluxo, que estabelece a troca de saberes sistematizados, acadêmico e popular, terá como consequências a produção do conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira e regional, a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da Universidade. Além de instrumentalizadora deste processo dialético de teoria/prática, a Extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integrada do social (Plano Nacional de Extensão Universitária, 2000, p. 5).

A extensão universitária, muitas vezes, é uma atividade acadêmica vista em segundo plano. Principalmente no ensino superior privado, há uma predominância, de acordo com Calderón (2007), no setor particular, da ideia da extensão como um balcão de negócios, tendo em vista o lucro ou o mero assistencialismo. Não podemos cair no erro de confundir as ações de extensão com práticas filantrópicas, prestação de serviços, como via de mão única – esse ideário reverberou durante muito tempo nas IES particulares.

As IES particulares, como falamos no início deste capítulo, tiveram um crescimento significativo nos cursos de graduação. Acredita-se que essas instituições não possuem tradição extensionista, mas, segundo Calderón (2007), elas têm crescido e amadurecido muito nessa área.

Para tanto, com a expansão do ensino superior por meio das IES particulares, bem como as mudanças ocorridas nas universidades, a extensão ganhou novos sentidos e significados, além de importância equiparada ao ensino e à pesquisa. A Lei nº 5.540/6839 marca as transformações no ensino superior por meio da Reforma Universitária. Entre as discussões, estavam as ações, natureza e características da extensão, mas nesses debates não se inseriam as instituições privadas.

Para tanto, criou-se, paralelamente ao Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas (Forproex), pois este não abrange as instituições particulares, o Fórum das Instituições Particulares (Forexp). Para Tavares e Freitas (2016), o principal objetivo desses fóruns consistiu num processo determinante na evolução e consolidação da extensão para superação puramente técnica e assistencialista.

Para Tavares e Freitas (2016), a extensão – a partir do Plano Nacional de Extensão Universitária – consolidou-se com um fazer educativo visando à formação política, profissional e acadêmica, sendo um corpo integrado da universidade, na tentativa de atender às necessidades formativas a partir de um viés interdisciplinar voltado para construir conhecimentos e relacionando-os ao cotidiano, contribuindo para uma aprendizagem colaborativa e significativa.

O Numeq priorizou a construção do conhecimento no que tange à questão racial, e, nessa via de mão dupla com o quilombo, reconhece e revaloriza seus saberes na esfera acadêmica. Diante do não financiamento das nossas ações durante a execução do projeto de extensão, assim como o voluntariado dos/as professores/as e dos/as estudantes, as atividades de extensão da instituição foram estendidas para a comunidade quilombola.

Paralelamente a todo o processo de intervenção e encontros de formação, em abril daquele ano de execução do Numeq deu-se início aos atendimentos odontológicos para as crianças do Sítio Veiga na clínica odontológica da instituição. Os/as professores/as do curso de Odontologia e seus/suas alunos/as que participavam do Numeq atenderam às segundas-feiras no turno da tarde, durante os meses de abril a junho. A prioridade foi dada às crianças, visto que muitas delas nunca frequentaram o dentista, e foi realizado um trabalho

prévio de higiene e saúde bucal. Durante o primeiro semestre daquele referido ano, fizeram tratamento dentário de dez crianças. A priori, a ideia era solicitar à universidade um transporte para trazer as crianças e as mães até a clínica, mas infelizmente não tivemos tempo hábil para fazer tal solicitação.

A liderança quilombola Ana Eugênio fez uma triagem dessas crianças, e o requisito para serem atendidas na clínica era que participassem das atividades do Numeq no quilombo. Assim, semanalmente frequentavam a clínica de três a quatro crianças no máximo, pois os/as professores/as não tinham alunos/as suficientes para atender uma demanda maior. Lembrando que eles/as tinham prioridade em relação ao atendimento à comunidade externa, que levavam meses para serem atendidos nesse setor.

Os atendimentos odontológicos começaram tardiamente no segundo semestre. A prioridade foi o término do tratamento das crianças iniciado no semestre passado, e houve uma dificuldade de alunos para fazer os procedimentos, pois as alunas que participavam do Numeq estavam no último semestre e os horários não se encaixavam com atendimentos das crianças – por isso, o retorno demorou a acontecer.

Figura 59 – Atendimentos odontológicos na clínica-escola

Fonte: Acervo Numeq, 2015.

Sobre essa questão, é importante considerar a dificuldade de acesso aos serviços públicos, como saúde, saneamento, trabalho e renda, educação, entre outros, principalmente às comunidades quilombolas.

Em relação à saúde, ressalta-se que o Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Política Governamental para a Saúde Bucal, prevê em seus princípios a equidade, que significa

ofertar mais a quem mais precisa, ou seja, prestar relacionado a um cuidado igualitário, mas respeitando as desigualdades existentes.

De acordo com Freitas et al. (2011), essa política prioriza implementar ações de saúde bucal junto às comunidades quilombolas, a fim de garantir um atendimento de caráter não mutilador, universal, integral e com equidade. Portanto, é necessário que os serviços de saúde bucal conheçam e considerem as experiências e valores culturais, bem como as diferentes formas de viver de cada comunidade, para que prestem assistência singular à saúde.

No entanto, a chegada desses serviços para a comunidade ainda está muito longe de acontecer, visto a dificuldade de acesso, a distância das comunidades aos centros urbanos, a desinformação, entre tantos fatores que contribuem para que essa população seja desassistida pelo Estado, onde as políticas públicas não conseguem alcançar essas comunidades quilombolas.

Em novembro do corrente ano, durante a semana acadêmica, solicitei à professora de Enfermagem responsável pelo exame de prevenção – a qual não participava do Numeq – algumas vagas para que as mulheres do quilombo pudessem realizar tal procedimento. Ela sinalizou positivamente ao meu pedido, e dez pessoas foram atendidas com o exame do papanicolau. Interessante ressaltar que muitas delas nunca haviam realizado o método.

No dia marcado para realização do exame, fui recepcioná-las na instituição. Algumas estavam ansiosas, outras angustiadas, querendo saber como seria o procedimento. A professora da Enfermagem foi acolhedora com elas: primeiramente houve uma roda de conversa falando sobre a saúde da mulher, e logo depois foi realizado o exame. O resultado sairia depois de um mês, no qual a professora daria todas as orientações e encaminhamentos, caso houvesse alguma alteração no resultado dos exames.

Um fato me chamou a atenção nesse dia: ao chegar à instituição, as mulheres foram barradas na entrada da instituição. Quando fui ao encontro delas, questionei o segurança, e ele falou que os nomes delas não estavam na lista. Não satisfeita com a resposta, uma delas o acusou de racismo, porque outras pessoas não haviam sido. Tal fato é reflexo de um sistema de opressão que nega oportunidades a grupos por conta da sua cor de pele. Podemos falar de racismo institucional, que possivelmente é a dimensão mais negligenciada do racismo: desloca-se da dimensão individual e instaura a dimensão estrutural, correspondendo a formas organizativas, políticas, práticas e normas que resultam em tratamentos e resultados desiguais. É também denominado racismo sistêmico e garante a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados, atuando como alavanca importante da exclusão diferenciada de diferentes sujeitos nesses grupos (WERNECK, 2016).

A experiência com a professora de Enfermagem como uma ação pontual reverteu-se em uma abordagem assistencialista da extensão universitária, sendo desenvolvida de maneira unilateral, na qual a universidade leva os seus serviços à sociedade – nesse caso, às mulheres quilombolas (TAVARES; FREITAS, 2016).

As referidas autoras esclarecem que, nas atividades de extensão, devem ser bem definidas as responsabilidades com os sujeitos. Elas nos alertam para que elas não se transformem em ações assistencialistas nem como responsabilidade social da instituição. É uma linha tênue à qual precisamos ficar sempre atentos para não retroceder em relação aos objetivos da extensão.

O projeto de extensão do Numeq teve essa preocupação para não basear-se em moldes assistencialistas e transcender a ideia de responsabilidade social, pois a intenção partiu justamente de municiar a comunidade com o conhecimento, sendo esse o elemento propulsor para reivindicar seus direitos perante o Estado: a orientação sobre qual o melhor caminho a seguir, com o fortalecimento da identidade local e do seu território.

Sob a ótica de Arruti (2009), os quilombolas saem da condição de “quase folclóricos” para ativistas na reivindicação dos seus direitos – localizados no mapa político nacional em algum lugar entre trabalhadores sem-terra, indígenas, favelas e universitários cotistas. Cabe aqui ressaltar, entretanto, que o poder público, apesar dos avanços, não tem sido suficientemente ágil nos encaminhamentos das demandas geradas pelos quilombolas, principalmente no que se refere à certificação e titulação das terras às quais eles têm direito.

A invisibilidade desses territórios ainda persiste: prova disso é a precariedade dos acessos aos serviços públicos, que insistem em não chegar às comunidades quilombolas, como foi visto em relação ao direito à terra. Essa ausência também está no âmbito educacional, onde há uma negligência e negação de um direito básico às pessoas do campo – o direito à educação, bem como à saúde.