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CAPÍTULO I Políticas Públicas de Gênero: um sobrevoo pelo Brasil, Pernambuco e

2. Década de 90 do século XX: diversificação do movimento e reforma do Estado

A efervescência feminista da década de 80 do século XX permaneceu na década seguinte. A redemocratização e a abertura de espaços de participação dos movimentos sociais possibilitaram que novas vozes se mostrassem presentes dentro dos próprios movimentos, reivindicando direitos esquecidos até então. Segundo Vera Soares, um número crescente de mulheres pobres, trabalhadoras, negras, lésbicas, sindicalistas e ativistas católicas incorporaram elementos do feminismo e os reelaboraram segundo suas identidades particulares. Esta incorporação de novas vozes permitiu que o feminismo brasileiro se enquadrasse dentro dos moldes do chamado feminismo de terceira onda, de forma emancipada das suas bases europeias que tanto o homogeneizava, lhes concedendo novas

perspectivas para a compreensão da exclusão das mulheres, nas suas várias facetas47 (SOARES, 1998, p.45-46).

A década de 90 do século XX foi permeada por grandes Conferências Internacionais promovidas pelas Nações Unidas, das quais as feministas organizadas se mostraram presentes, estimulando o debate e fazendo proposições. Dentre estas, podemos citar a ECO 92 (Conferência do Rio de Janeiro sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente, em 1992), que contou com uma rede feminista para introduzir as questões de gênero nos debates preparatórios; a Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, em 1993, que também contou com a presença de mulheres na sua preparação; a Conferência do Cairo sobre Desenvolvimento e População, em 1994, que articulou mulheres por meio da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos; os preparativos para a IV Conferência Mundial das Mulheres, realizada em 1995 em Beijing, que oportunizou a criação de uma rede de cooperação e que contou com a participação de vários movimentos feministas e de mulheres, como a de mulheres negras, urbanas, rurais, periféricas, de sindicatos, lésbicas, empregadas domésticas, prostitutas e feministas acadêmicas. Essa articulação de mulheres e feministas gerou uma agenda pautada na diversidade das mulheres e impulsionou um debate público sobre as desigualdades de gênero (ibid., p.46-47).

Dentre estas grandes conferências, é importante observarmos como a Conferência do Cairo sobre Desenvolvimento e População, por exemplo, foi um espaço importante para contribuições em prol dos direitos sexuais, reprodutivos, e da eliminação da violência contra as mulheres e seu empoderamento. Isto porque, nesta Conferência, foi possível localizarmos um novo paradigma no debate sobre população, que transferiu as discussões sobre as questões demográficas, para aquelas sobre direitos humanos e suas interfaces com os direitos reprodutivos. As críticas feministas se voltavam, principalmente, sobre as polêmicas acerca dos problemas do crescimento populacional e seu interesse em limitá-lo para combater a pobreza nos países periféricos. As feministas se contrapunham a este discurso com o argumento de que a pobreza estava relacionada, sim, aos modelos de desenvolvimento excludentes e não ao crescimento puro e simples da população pobre (PRÁ & EPPING, 2012, p. 36-37).

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No que diz respeito às mulheres negras, é importante frisar que elas mesmas criaram suas formas de organização e que por meio de encontros feministas pressionaram os movimentos a incorporar o viés de raça nas suas análises e demandas. O papel que as feministas negras exerceram nos grupos de mulheres se tornou educativo, complexificando o papel das diferenças nas práticas das mulheres (SOARES, 1998, p.45).

Outra Conferência de suma importância para pensarmos o papel da participação dos movimentos de mulheres e feministas e a sua culminância em políticas públicas foi a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, de Beijing, em 1995. Esta conferência contou com a participação de 184 países e cinco mil organizações não governamentais para juntos pensarem em propostas em prol da igualdade de gênero no mundo. Suas medidas centrais versavam sobre a inserção das mulheres nos espaços de poder e das perspectivas de gênero nas legislações e em projetos estatais. Nesta conferência, também, foi reiterado o documento “Estratégias para o futuro”, proposto em umas das Conferências Mundiais sobre a Mulher, a de Nairóbi em 1985, que identificava áreas de ação a serem implementadas no período de 1986 a 2000. Este documento propunha medidas a serem levadas a cabo por governos nacionais e organismos internacionais nas áreas de educação, emprego, saúde, agricultura e indústria. Desse modo, as Conferências não apenas criavam formas de participação das mulheres organizadas, ou de apoio entre diferentes instituições para lidar com as questões de gênero. Elas também propunham tratados, acordos, protocolos e convenções propiciando um direcionamento na elaboração de políticas públicas para as mulheres no âmbito dos Estados- Nação (ibid., p.41).

A década de 1990 foi um período onde as ações feministas se ampliaram de maneira significativa, assumindo vieses específicos. Um deles se refere às novas formas de participação feminina nas esferas de poder, que foram inauguradas com o movimento de mulheres pela inclusão dos direitos de igualdade de gênero na Constituinte. Esta participação adquiriu novas facetas com a organização de mulheres nas grandes Conferências, como as acima citadas, e com a proposição de medidas de promoção da equidade de gênero para os Estados signatários. Outro viés característico do protagonismo feminista neste período diz respeito à expansão e participação de grupos e núcleos de estudos e pesquisa universitários em quase todo o Brasil (PRÁ, 2013, p.5).

Nestes grupos, muitas teóricas e estudiosas de gênero e feminismo estavam engajadas em repensar os princípios da democracia liberal, devido ao desencantamento com a prática política institucional (MARIANO, 2003, p.6). Neste período, tomou visibilidade uma corrente da teoria política, vinculada ao feminismo, que procurava demonstrar como as noções de democracia que foram popularizadas, apesar de parecerem contemplar as demandas das mulheres, ainda possuíam um viés sexista em sua origem e se baseavam em uma ideia de igualdade formal que não se mostrava suficiente, por não considerar as diferenças e desigualdades entre homens e mulheres. Lançando críticas a estas perspectivas, muitas

feministas, já diversas em sua composição e em suas propostas, apontaram a necessidade e a legitimidade de ações afirmativas que tinham por fim a busca pelo reconhecimento das diferenças e desigualdades48. Para ilustrar esta demanda, a adoção de cotas para candidatas nos processos eleitorais demonstrou como as elaborações críticas à democracia liberal podiam se converter em política pública. Além destas, políticas referentes aos protocolos especiais no atendimento na rede de saúde à mulher vítima de violência e a recomendação do Ministério do Planejamento de adotar critério de elegibilidade nos programas habitacionais para que inserissem as mulheres chefes de família, se basearam nesta crítica (idem, 2001, p.16, ibid., p.7).

Quando o movimento feminista (ou parte dele) reivindica ao Estado o atendimento a questões específicas da mulher, põe em xeque alguns pilares da democracia liberal: o indivíduo como unidade política; a universalidade das regras; e a neutralidade do Estado. No bojo das reivindicações feministas, a unidade política passa a ser os grupos sociais, neste caso divididos por sexo; a universalidade das regras é substituída por direitos especiais a grupos específicos; e a neutralidade do Estado e das instituições políticas é substituída pela concepção de que este, tendo participado dos sistemas de reprodução das desigualdades deve, então, absorver demandas para a promoção da equidade entre homens e mulheres, bem como entre outros grupos (MARIANO, 2003, p.8).

Esta crítica à democracia liberal, e às proposições de políticas públicas que se seguiram, não aconteceram sem novas bases políticas e organizacionais. Segundo Marta Farah (2004), a crise do Estado brasileiro, de fins dos anos 80 do século XX – devido a sua baixa capacidade de investimento em um período de globalização e reestruturação produtiva –, promoveu um mudança na agenda de reformas do Estado. Essas mudanças, segundo ela, estavam estruturadas em quatro eixos: o da descentralização para garantir um uso mais eficiente de recursos; o das novas formas de articulação entre Estado e sociedade civil, onde as organizações não governamentais e o setor privado passaram a fazer parte da provisão de serviços públicos; o referente à eficiência na gestão de políticas públicas; e a focalização que garantia prioridades de ação frente aos ajustes em tempos de crise (FARAH, 2004, p.52).

No que se refere à descentralização, esta não impactou profundamente nas políticas para as mulheres, haja vista que ainda não havia um sistema centralizado consolidado. Dessa

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Entenderemos melhor a crítica das feministas à democracia liberal no terceiro capítulo desta tese, onde serão discutidas as contestações feministas à democracia liberal e as possibilidades emancipatórias que surgiram a partir desta crítica, concretizadas, por sua vez, em políticas públicas para as mulheres.

maneira, o que ocorreu foi que o locus de pressão passou a ser redirecionado para os níveis locais de governo, principalmente aqueles relacionados à saúde e educação49 (ibid., p.53).

Em relação às formas de articulação entre sociedade civil, Estado e setores privados, foi possível notar, neste período a constituição de uma série de organizações não governamentais que passaram a desenvolver programas de gênero, principalmente nas áreas de saúde, educação, combate à violência, geração de renda e organização de mulheres. Estas passaram a dialogar com o Estado as diretrizes de políticas públicas, principalmente por meio de uma série de encontros sobre gênero e mulheres (ibid., p.53-54; MARIANO, 2001, p.22). Este movimento refletiu uma tendência à democratização dos processos de formulação de políticas públicas, na qual as mulheres foram tomadas não só como foco das políticas, mas também como agentes formuladores destas (FARAH, op. cit., p.54). A associação entre Estado e sociedade civil organizada também foi concebida como uma tentativa de implantação do neoliberalismo em defesa do Estado mínimo, no que se refere às suas obrigações sociais. Isto se refletiu no momento em que as ONGs passaram a ser prestadoras dos serviços do Estado, recebendo financiamentos e assumindo contratos de gestão que deveriam ser por obrigação do Governo Federal (MARIANO, 2001, p.23).

A noção de focalização, por sua vez é ambígua e vem provendo debates díspares. Se, por um alado, ela pode significar uma ênfase nos direitos e na promoção da mulher enquanto cidadã, por meio de políticas focais com atenção privilegiada e específica, como as ações afirmativas, discutidas mais acima; ela pode também refletir certa “funcionalização da mulher”. A primeira noção de focalização está associada às propostas dos movimentos feministas que dão centralidade à inclusão das mulheres nos espaços de cidadania, haja vista a sua posição de invisibilidade social. Segundo este ponto de vista, as mulheres precisariam, ao menos em um primeiro momento, de políticas específicas e “discriminação positiva” (ibid., p.56). A segunda perspectiva, que está diretamente associada à noção de eficiência, vê a mulher, pura e simplesmente, como instrumento do desenvolvimento, potencializando políticas públicas, principalmente a partir do seu lugar na família. A noção de eficiência de gastos, proposta pelo Banco Mundial e apoiada pelos partidos conservadores de direita, ligados às elites empresariais, privilegiavam os cortes de gastos, principalmente na área social, privatizações e modernização gerencial das políticas (ibid., p.52-53). Dentre as

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É importante destacar que, apesar de a perspectiva da descentralização ter sido o mote central das politicas públicas neste período, não quer dizer que a esfera Federal tenha perdido o seu papel enquanto formuladora de diretrizes e programas de âmbito nacional (FARAH, 2004, p.53).

perspectivas relativas à noção de eficiência do governo, a focalização seria o “carro chefe”. Ela se ampara, fundamentalmente, na ideia de “feminização da pobreza”, que coloca as mulheres pobres como o segmento mais vulnerável da população, e se ampara em dados relativos à disparidade salarial, renda e desemprego.

A proposta de focalização baseia-se no argumento de que esta garantirá maior eficiência às políticas de combate à pobreza: a atenção privilegiada às mulheres (...) terá impacto na sociedade como um todo (ibid., p.55).

Esta proposta, apesar das benesses que pode trazer por meio das políticas baseadas na discriminação positiva, não critica nem coloca em questão os pressupostos que levaram as mulheres à condição de desiguais. Ao contrário, se respalda na reestruturação e continuidade do mesmo sistema patriarcal e neoliberal que as coloca em situação de opressão.

3. Século XXI: institucionalização do movimento e novos horizontes para as políticas