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CAPÍTULO I Políticas Públicas de Gênero: um sobrevoo pelo Brasil, Pernambuco e

1. Das lutas pelo Sufrágio Universal à Nova Carta Constitucional de 1988

Ao tomarmos como referência os ciclos da ação do movimento feminista e de mulheres por ondas, como referido na introdução deste trabalho, podemos caracterizar o período anterior à redemocratização do Brasil por meio de demandas características da primeira e segunda ondas do feminismo. Do mesmo modo como aconteceu na Europa em fins do século XIX e início do século XX, as lutas das mulheres no Brasil (ainda não consideradas feministas) se baseavam em demandas por direitos essenciais para que pudessem ter uma cidadania equiparada à masculina. Dentre as demandas que se destacaram, o direito ao voto se mostrou central. As “sufragetes”, como ficaram conhecidas, fizeram manifestações, greves de fome e até se lançaram à morte pela causa (ibid, p.15)44.

Segundo Jussara Prá, para além da luta pelo sufrágio universal, neste período também se destacaram demandas referentes à luta por direitos nas esferas do trabalho e educação. Essas demandas, todavia, foram invisibilizadas devido ao modo como as mulheres se encontravam no seio da estrutura patriarcal brasileira, que as mantinha excluídas dos espaços públicos e persistiam em realçar uma ideia de fragilidade feminina e sua incapacidade de

44 Para uma análise do modo como a luta pelo voto se deu em outros países, como na França e Estados Unidos,

adentrar espaços masculinos, na política, educação e mercado de trabalho. A sua educação, diferente da masculina, às restringia à esfera da domesticidade, do matrimônio e da maternidade (2014, p.6). Desse modo, o sufrágio feminino foi descartado na constituinte de 1891 “mediante argumentos de que a missão de esposa e mãe impedia as mulheres de conformar o eleitorado do país” (ibid., p. 6).

No entanto, segundo Prá, as mudanças provocadas pela república, como a urbanização das cidades e a modernização da economia, permitiu que muitas mulheres se inserissem em diversos âmbitos da sociedade brasileira. Esta inserção desencadeou demandas mais enfáticas em prol da educação, trabalho e voto, apesar de às vezes pautadas em concepções conservadoras como às relacionadas às ocupações em áreas eminentemente femininas e em propostas de educação para o aprimoramento da maternidade. Todavia, é importante salientar que este período foi marcado por um debate nascente que questionava o determinismo biológico que as reduzia às suas funções de mães e esposas (ibid., p. 6).

No entanto, foi só com a aproximação das feministas dos movimentos operários e de vanguarda intelectual e de setores da classe média, na década de 20 do século XX, que o debate sobre o voto feminino foi intensificado em instâncias políticas e na imprensa do país como uma porta de entrada para o acesso à cidadania feminina (ibid., p.7). Uma das protagonistas da luta deste período foi Bertha Lutz, bióloga, de formação no exterior, e uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Ela levou ao senado um abaixo-assinado pedindo a aprovação do projeto de lei que concedia o direito ao voto feminino (PRÁ, op. cit., p.7; PINTO, op. cit., p.16). Com isso, esse direito foi conquistado em 1932 e incorporado à Carta Constitucional de 1934 (PRÁ, op. cit., p.7). Apesar dessa importante conquista, estudiosas apontam que o feminismo desta época não buscava se contrapor às bases que organizavam a sociedade patriarcal, levantando bandeiras relativas à emancipação feminina, por exemplo (BONETTI, et. al., 2009, p.199).

Deste período até a Segunda Guerra Mundial, o movimento feminista praticamente se extinguiu no Brasil. No entanto, a partir dos anos 60 do século XX uma série de mobilizações marcou o cenário do mundo ocidental. Neste período, nos Estados Unidos, grandes e diversas mobilizações se contrapunham a uma violenta investida deste país no Vietnã, às duras leis que restringiam os direitos civis da população negra, assim como dos grupos formados por gays e lésbicas. Em Paris, em maio de 1968, estudantes ocuparam a Sorbonne para questionar a ordem acadêmica estabelecida e também para expressar sua insatisfação com os partidos da

esquerda comunista. Neste período, o movimento feminista colocou em xeque, pela primeira vez de forma direta, as relações de poder entre homens e mulheres indo além das demandas específicas relativas ao trabalho, educação e voto, apontando outra forma de dominação que não aquela relativa às classes sociais (PINTO, 2010, p.16). Vale ressaltar que a explicitação deste modelo de dominação até então negligenciado, aliado às lutas feministas do agora chamado feminismo de segunda onda, deu origem a construção do campo de estudos feministas, nos anos 70 do referido século (PRÁ, op. cit., p.8).

No entanto, enquanto que nos países do norte o cenário era propício ao surgimento de movimentos libertários, no Brasil um golpe de Estado deu origem a uma série de governos ditatoriais e dominados por militares, instaurando uma situação social e política de repressões que se intensificou ao longo dos anos (PINTO, op. cit., p.16). A ditadura militar no Brasil levou os movimentos de esquerda para a clandestinidade, porém não conseguiu aniquilá-los. Desse modo, podemos notar uma profusão de movimentos sociais neste país, apesar de localizarmos uma prevalência dos movimentos de cunho classista e por melhorias urbanas.

Todavia, isso não quer dizer que não houve mobilizações de mulheres nos períodos de repressão política no Brasil. Ao contrario, elas se mostravam como presença expressiva nos movimentos sociais urbanos, atuando nos espaços públicos e publicizando temas antes restritos à esfera da privacidade. Estes temas estavam relacionados tanto à redemocratização do regime quanto aos baixos salários e custo de vida; à infraestrutura urbana e acesso precário aos serviços coletivos, ao saneamento nas periferias, à situação das escolas e postos de saúde (FARAH, 2004, p.50-51). Essas mulheres, segundo Marta Farah, ao passo que denunciavam desigualdades relativas à classe social, também aproveitavam para propor demandas exclusivas das mulheres, como as relativas ao acesso a creches, à saúde da mulher, sexualidade, contracepção e políticas relativas à violência contra a mulher (ibid., p.51; SOARES, 1998, p.39). A sua participação nestes movimentos lhes propiciou maior inserção em suas comunidades, ampliação da circulação no espaço geográfico e trocas com outras mulheres, modificando por completo seu cotidiano. Esta politização da vida as permitiu, também, se redefinirem enquanto atrizes políticas, proporcionado a transformação das normas tradicionais que circunscreviam sua atuação na esfera pública e privada e um consequente aumento de sua autoestima (SOARES, op. cit., p.40).

Foi ao salientar temas relativos especificamente à questão da desigualdade das mulheres que ocorreu uma convergência do movimento de mulheres com o movimento

feminista. Farah faz uma diferenciação entre os movimentos sociais com participação feminina e os movimentos feministas. Para esta autora, este último, diferente daqueles com presença de mulheres citados anteriormente, “tinha como objetivo central a transformação da situação da mulher na sociedade, de forma a superar a desigualdade presente nas relações entre homens e mulheres” (op. cit., p.51). Conferindo o tom do chamado feminismo de segunda onda no Brasil, as feministas organizadas, além de lutarem pela democracia, também rejeitavam as práticas androcentradas da esquerda e a invisibilidade das questões de gênero nos debates voltados para a transformação da atual situação social e política no país.

Em um contexto em que o Estado representava a violência exercida sobre os corpos das mulheres, o silêncio das demandas de participação e a impermeabilidade das questões de igualdade, os feminismos deste período se construíram em posição de aversão ao Estado. (...) a autonomia significava na época a independência e oposição absoluta tanto ao Estado, quanto à esquerda (MATOS & PARADIS, 2013, p.7).

Esta postura antiestatista, defensiva e de confrontação com os regimes ditatoriais, caracterizaram não só o feminismo no Brasil, como também o da América Latina do período. Este feminismo teve como principal característica a aliança com a esquerda contra o autoritarismo e os projetos modernizantes, conferindo ao movimento um caráter marxista (BONETTI et. al., 2009, p.204). No entanto, mesmo assumindo uma oposição ao Estado ditatorial, foram as feministas deste período que contribuíram para a inclusão das questões de gênero na agenda pública.

O desenrolar dos movimentos feministas no Brasil, que ganharam destaque a partir da década de 60 do século XX, sofreu influência de dois processos: um relativo às mudanças da “transição negociada” do regime autoritário para o democrático, a partir da segunda metade da década de 70 do século XX (SOARES, 1998, p.35); e o outro relativo aos eventos relacionados ao ano internacional da mulher (1975) e à década da mulher (1976-1985), sob os auspícios da Organização das Nações Unidas (ONU), que reencaminharam as lutas femininas para a garantia de direitos de cidadania (PRÁ, 2014, p.9).

No que diz respeito ao primeiro processo, a crise econômica e a abertura política gradual a partir do governo do presidente Geisel propiciaram o surgimento de uma série de movimentos sociais e de rearticulação da oposição. Estes processos conferiram às mulheres organizadas uma maior ação política, principalmente ligada a um modelo que se contrapunha

ao que estava presente no senso comum, que as associava a cidadãs despolitizadas, apolíticas e vinculadas a movimentos conservadores, como aqueles em prol da família (SOARES, op. cit., p.35-36). As militantes deste feminismo estavam engajadas na luta pela democracia no Brasil e atuavam, também, por meio dos partidos de esquerda, ao mesmo tempo em que mantinham o compromisso de lutar pela igualdade entre homens e mulheres. Seu locus de atuação era os bairros, comunidades das periferias urbanas, Igrejas Católicas e associações de vizinhança. Elas trouxeram novos temas à baila, como o direito de ter ou não filhos, o aborto, sexualidade, punição para assassinos de mulheres, violência doméstica entre tantos outros. Mas, acima de tudo, estas feministas dialogaram com forças progressistas a partir de uma perspectiva não hierarquizada da teoria e prática política, visão que, consequentemente, questiona a sexualização das práticas no fazer cotidiano (ibid., p.37-38).

Por outro lado, os eventos relativos ao Ano Internacional da Mulher (1975), como a Conferência Mundial da Mulher (CMM), em 1975, no México, e a Década da Mulher da ONU (1976-1985), deram uma alavancada às lutas das mulheres por cidadania. Estes eventos encaminharam, aos países signatários, como o Brasil, compromissos com a igualdade de gênero, cobrando dos governos um posicionamento sobre esta questão. Além de funcionar como instrumentos de proteção aos direitos das mulheres, estes eventos, assim como outros que seguiram, funcionaram no sentido de cobrar dos Estados signatários indicadores que demonstrassem a atual situação relativa aos diretos femininos, assim como uma superação desta em prol de uma maior equidade de gênero. Os estudos que contribuíram para dar conta desta demanda por indicadores revelaram uma sub-representação feminina nos espaços de poder e uma dificuldade histórica de inclusão das mulheres em ambientes dominados por homens (como nas esferas de trabalho e educação). Além disso, eles serviram de subsídio para proposições oriundas da referida conferência como, por exemplo, a relativa às cotas de gênero na política (PRÁ, 2014, p.8-9).

Este contexto abriu espaço para significativas transformações no movimento feminista a partir da década de 80 do século XX. Segundo Vera Soares, este movimento se tornou mais complexo e diverso ideologicamente. Neste período, a abertura democrática permitiu que muitas mulheres começassem a atuar nos partidos, levando suas demandas para os espaços de debate nas plataformas eleitorais e a proposta de políticas públicas para as mulheres na esfera do Estado (op. cit., p.43).

Esta nova forma de atuação aproximou um grupo de feministas ao Estado rompendo com uma tradição que tinha se mantido durante o período ditatorial no Brasil. Muitas feministas tinham percebido que para transformar suas propostas em políticas públicas seria necessária uma aproximação maior com as instâncias de elaboração, fiscalização e efetivação destas políticas. Segundo Céli Pinto (1994), a posição de distância em relação ao Estado, nesta situação, só podia gerar um movimento de privatização da coisa pública em um Estado que supostamente defendesse os interesses gerais. A aproximação, segundo ela, pode até comprometer a identidade e autonomia do movimento, mas é um risco necessário para aumentar o espaço de atuação, potencializar os resultados e ampliar a agenda do campo político institucional (Pinto, 1994, p.270).

A inserção das feministas nestes espaços institucionais de poder também agregou ao mundo da política as críticas que elas haviam colocado à baila desde as décadas de 60 e 70 em grande parte do mundo ocidental. Estas se referiam aos questionamentos do significado do político a partir da inserção do pessoal e da domesticidade enquanto esferas de poder, com a célebre ideia de que “o pessoal é político”. Essa ampliação do campo político questionou, consequentemente, a separação entre esfera pública e privada, ampliando a noção de publicidade das esferas da vida, incorporando na agenda pública questões antes restritas à esfera da privacidade. Assim, temáticas como direitos reprodutivos, maternidade e violência contra a mulher entraram na agenda de proposições de políticas públicas, incorporando ao debate referente à democratização críticas que diziam respeito a elementos estruturantes das sociedades patriarcais e liberais (MARIANO, 2001, p.13)45.

Já neste sentido, feministas que compunham o PMDM (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) de São Paulo propuseram e implementaram um Conselho da Condição Feminina (1983) e a primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher (1985) nesta cidade. Este movimento abriu brechas para a criação, nos diversos níveis (municipal, estadual e federal), de Conselhos dos Direitos da Mulher e em 1985, do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, vinculado ao Ministério da Justiça (BONETTI, 2009, p.204; FARAH, 2004, p.51; SOARES, 1998, p.44).

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Os debates que fundam a desconstrução das esferas públicas e privadas e a sua crítica ao liberalismo e universalismo de direitos serão travados no terceiro capítulo deste trabalho com fins de evidenciar os pressupostos teóricos e epistemológicos que subsidiaram as lutas feministas e as demandas por políticas públicas para as mulheres, principalmente no período pós-redemocratização no Brasil.

A criação das Delegacias especializadas de Atendimento às Mulheres (DEAMs) deu visibilidade a uma das principais bandeiras de luta dos movimentos feministas: a violência contra a mulher. Este foi um período de uma quantidade significativa de absolvições de assassinos de mulheres sob a justificativa da defesa da honra. Estes eventos promoveram efervescência na mídia e também nos movimentos feministas. Assim, as feministas pautaram este tema na agenda política, por meio do combate à violência doméstica e conjugal sob o

slogan: “quem ama não mata”. As investidas feministas foram bem sucedidas e esta temática

se transformou no signo político do movimento – haja vista sua maior capacidade de conseguir adesões (BONETTI, op. cit., p.205).

A criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, por sua vez, foi de suma importância para a incorporação da agenda de gênero46 pelos governos e na Constituição de 1988. Este conselho promoveu, junto a importantes grupos feministas e de mulheres, uma campanha nacional para incorporar os direitos das mulheres na nova carta constitucional (PINTO, 2010, p.17). Esta campanha, denominada “Constituinte pra Valer tem que ter Palavra de Mulher”, permitiu que durante meses acontecessem debates por todo o país. E, por meio da apresentação de emendas populares, foi elaborada a “Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes”, entregue no Congresso Nacional, em 26 de agosto de 1986, pelas mãos de mais de mil mulheres numa atuação caracterizada como “lobby do batom” (SILVA, 2012, p.61). Segundo Salete da Silva, é possível afirmarmos que este processo foi único na história do movimento de mulheres, haja vista que a Constituição de 1988 incorporou cerca de 80% das reivindicações contidas na referida carta, como o estabelecimento da igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres e a igualdade no âmbito doméstico e familiar, coibindo atos de violência nas relações conjugais (ibid., p.62). Além destes direitos, a nova Constituição também contemplou a licença maternidade, o acesso ao planejamento familiar, o incentivo ao trabalho da mulher e o reconhecimento da união estável entre homens e mulheres e de filhos concebidos fora do casamento (PRÁ, 2013, p.4-5).

Apesar dos ganhos constitucionais, Bonetti et al. destacam a forma como a mulher foi concebida na Carta Constitucional de 1988. Segundo estas autoras, o sujeito de direitos que é contemplado nesta carta é muito mais a família do que a mulher. Esta ficaria subsumida a uma entidade maior – a família – conferindo aos direitos contemplados na carta, neste quesito, um

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Segundo Marta Farah, a agenda de gênero consiste na incorporação de temas e propostas levantados por mulheres e feministas de movimentos sociais com ênfase nas relações de gênero para compor uma agenda pública (2004, p.53).

caráter mais social do que civil. É como se os direitos das mulheres aparecessem como concessões para benefício da família, sua coesão e proteção. Importante salientar que o modelo de família presente no texto constitucional é aquele compreendido como organização natural que se conforma por meio das diferenças sexuais. Este modelo pôde ser visto enquanto alegoria presente nos debates das comissões e subcomissões, nas quais se defendia a família nuclear, monogâmica e heterossexual a partir do controle feminino e sua proteção. “O foco é a família; os direitos das mulheres aparecem como concessões em prol da família” (2009, p.210-211).

Esta forma de dar invisibilidade à mulher enquanto sujeito de direitos na Constituição de 1988 no Brasil, apesar dos ganhos demonstrados, se mostra presente, principalmente no artigo que versa sobre a violência intrafamiliar. Nele a violência contra a mulher não foi tratada de forma clara, ficando subsumida no parágrafo sobre violência na família (ibid., p.214). Segundo esta perspectiva, a violência contra a mulher, uma das principais bandeiras do movimento feminista de então, era considerada apenas na esfera da domesticidade, sendo invisibilizada em todas as inúmeras formas que ela costuma se manifestar nas esferas societais. Este ponto de vista apenas afirma a dicotomia público/privado, concebendo a mulher na esfera a que tradicionalmente pertence, sem maiores questionamentos.