• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II A sedução do campo, a formação das associações e os esboços

1. Ações sem estrutura: a centralidade da violência contra a mulher e o foco em casos

1.1.1 Esfera pública e esfera privada: seus antecedentes e princípios básicos

Já foi dito no primeiro capítulo deste trabalho que os modos como os movimentos feministas se configuraram, nos países europeus e das Américas especificamente, em suas atuações

99

Como modernidade entendo o período que procedeu à Idade Média, e foi caracterizado por acontecimentos como a Reforma Protestante, as Revoluções Francesa e Industriais, o Iluminismo e o aburguesamento do mundo ocidental. Neste momento muito mais importante do que definir os acontecimentos históricos que marcaram este período, será entender os elementos teóricos e epistemológicos que lhes serviram de base e que serão discutidos ao longo deste capítulo. Isto porque, é importante frisar, que um dos intuitos deste trabalho é salientar os elementos que ajudaram a construir este período (que se convencionou chamar modernidade), como estes nos ajudam a compreender este momento como um construto analítico e não como um fenômeno natural, e como estes elementos se mostraram criticáveis, principalmente segundo a perspectiva crítica feminista atual.

contra a dominação masculina, estiveram conectados com os debates acadêmicos, promovidos pelas feministas desta área. Estes debates se referiam, principalmente, às reviravoltas políticas e epistemológicas promovidas para fins de uma interpretação mais justa sobre as relações sociais de gênero (BIROLI E MIGUEL 2014, p. 8; MIGUEL 2014, p. 17). O trabalho realizado pelas acadêmicas feministas compreendeu o desvelar de concepções que, naturalizadas, fundavam e mantinham a ordem social androcentrada dominante. Neste sentido Joan Scott afirma que se faz necessário uma análise das categorias cunhadas pelos períodos históricos sob um novo ângulo para que possa ser possível modificar a representação dos outros grupos que foram deixados fora da história (em função de sua raça, classe, gênero e etnicidade) (1994, p. 14). Benhabib e Cornell argumentam no mesmo sentido ao afirmar a necessidade de enforcar a experiência concreta das mulheres para uma mudança de perspectiva acerca das categorias fundamentais para a alteração do seu entendimento e para a explicitação dos pressupostos androcentrados que os respaldam (1987, p. 7).

Dentre estas possibilidades críticas, podemos salientar como fundamental aquela que está relacionada ao modo como o conhecimento produzido pela modernidade ocidental para pensar a si própria, julgado pelos seus próprios protagonistas como universal e neutro, na verdade possuía sujeitos muito específicos que pensavam a partir de um lugar bastante singular. Estes sujeitos, em grande medida homens, brancos, ocidentais e heterossexuais, se predispuseram a elaborar teorias e pressuposições sobre o mundo e as relações sociais pautadas em ideias basilares dentre as quais as que se referiam às pessoas como iguais em condições e direitos, livres para ir e vir e adquirir propriedades e todas merecedoras de uma boa vida. O contexto destas elucubrações se caracterizava pela tomada da burguesia ao poder, junto a todas as suas visões de mundo, principalmente às pautadas nas ideias de propriedade privada, livre câmbio, democracia liberal, cidadania e, principalmente, nas noções de privacidade e publicidade e suas separações e interconexões concretizadas na separação entre esfera pública e privada.

As ideias cunhadas pelo liberalismo ocidental neste contexto influenciaram diretamente as demandas e o pensamento das feministas do chamado feminismo de primeira onda, que tinha como principal bandeira a igualdade entre homens e mulheres. Esta perspectiva política exaltava noções como às relativas à liberdade, direitos universais e cidadania. Os movimentos feministas de meados do século XX, por sua vez, se contrapuseram a esta perspectiva, haja vista que os fundamentos de igualitarismo e universalidade que lhes respaldavam não encaminhavam as mulheres para a emancipação e sim mantinham inabaladas

hierarquias e desigualdades. A perspectiva da diferença da segunda onda cunhou o termo gênero, porém manteve uma base sexual naturalizada e imutável. Este elemento abriu brechas para que as feministas da terceira onda questionassem a essencialidade do corpo, do sexo e das categorias tomadas como naturais100.

Este questionamento se baseou, em grande medida, em críticas profundas aos fundamentos das ideias do período Iluminista, como as noções de racionalidade e sujeito universais, igualdade, cidadania e direitos, assim como a de masculino/feminino, sujeito, identidade e a separação do mundo nas esferas pública e privada. Segundo Carole Pateman, as visões trazidas pela noção de contrato social para a formação do Estado, tão cara a este período, apresentam uma falsa noção de liberdade individual e universal na medida em que desprezavam as questões relativas ao contrato sexual que estabeleciam o patriarcado e fundamentavam a dominação dos homens sobre as mulheres, de alguns homens (brancos, burgueses e ocidentais) sobre outros e, consequentemente, as formas de dominação e submissão (PATEMAN, 1993). O que a teoria feminista fez foi dar gênero, raça e classe a este suposto sujeito universal, explicitando as exclusões que as concepções da modernidade ocidental, supostamente igualitária, resguardava. Uma destas exclusões diz respeito a uma das principais dicotomias cunhadas neste período: a separação entre esfera pública e privada. Segundo Mariano (2008):

(...) essa dicotomia associa, de um lado, a esfera pública à racionalidade e ao bem público comum e, de outro, a esfera privada-íntima ao amor e afeição e ao interesse parcial, portanto, ao pré ou anti-racional. De acordo com essa mesma lógica binária, o homem é associado ao público e ao racional, logo, a mulher é associada ao privado e irracional, emocional (ibid, p. 364).

Com a crítica a esta separação foi possível estabelecer questionamentos que se referiam desde as noções de racionalidade e objetividade da esfera pública e de todas as suas subesferas, como a da política, economia e ciência, à da prevalência do sujeito masculino e burguês no seu interior. Todavia, para realizar este trabalho crítico, foi necessário questionar, invariavelmente, as noções de sujeito que permeavam ambas as esferas (a pública e privada), que por sua vez criavam as concepções sobre as relações sociais e influenciavam as noções

100 Em Hita (2000) podemos ver uma revisão bibliográfica interessante sobre essa separação dos movimentos

sobre direitos de cidadania na esfera pública e relações de poder presentes na esfera privada101.

Para entender melhor a reviravolta epistemológica, teórica e política por que passou estas concepções, se faz necessário atentar para dois fundamentos específicos, porém interconectados: a noção de público e sua relação com a divisão da sociedade em esfera pública e privada; e como esta reestruturação levou teóricas feministas a repensar a ideia de sujeito, identidade e atuação política102. Apesar de existirem, atualmente, pensamentos bastante distintos no que tange às ideias do sujeito político do feminismo, sua atuação e os modos como esta atuação se concretizam em políticas públicas, é de fundamental importância entendermos quais caminhos levaram à atual seara política do pensamento feminista. Este entendimento nos será de grande valia, haja vista que são as reviravoltas relativas às concepções de sujeito, identidade, atuação política, democracia e direitos, protagonizadas pelos movimentos feministas, que embasam, ou deveriam embasar, as políticas públicas para as mulheres no Brasil em geral, e em Petrolina, em particular.

Neste sentido, a concepção de “público”, tecida no bojo do período que se convencionou chamar de modernidade, está relacionada a uma das principais construções de dicotomias conceituais deste período: a separação entre esfera pública e esfera privada. É possível afirmar que entre todos os arroubos maniqueístas protagonizados pela história deste ocidente moderno, este par dicotômico tem um valor inigualável para a criação e manutenção de estruturas de poder baseadas em diferenciações entre os sexos. Tais diferenças perduram mesmo nas teorias e propostas mais críticas do pensamento político e social de nossa época, principalmente aquelas relacionadas às políticas públicas para as mulheres municipais, estaduais e Federal. Este par dicotômico carrega consigo fundamentos conceituais que lhe servem de base e ao mesmo tempo ajudam a moldar e caracterizar todo um período da história do Ocidente moderno até os dias atuais. O mesmo originou concepções que, naturalizadas, fundamentam nosso cotidiano, nossas teorias científicas, e nossas práticas políticas.

No período industrial, as relações econômicas, políticas e sociais sofreram transformações impactantes no que diz respeito ao que foi concebido enquanto conteúdo das esferas públicas e privadas. O avanço do capitalismo industrial desencadeou mudanças demográficas, crescimento das cidades, êxodo rural e diversificação das atividades proporcionando novas formas de produção, novas demandas por produtos, aumento do

101

Veremos mais abaixo a importância dos debates sobre poder na esfera privada para as problematizações sobre a violência contra a mulher.

102

consumo, padronização das mercadorias e novas formas de distribuição. Estas mudanças alteraram os modos de vida em dois espaços centrais e, a partir de então polarizados: a esfera da casa e a esfera do trabalho (BRIOSCHI E TRIGO, 2009, p. 38-39). Se, no período pré- industrial, a família constituía uma unidade de produção chefiada pela autoridade paterna e as práticas sociais transcorriam em lugares de livre trânsito, como as ruas e casas, sem especialização dos espaços e a ideia de privado, tal qual nos temos hoje era desconhecida; no período industrial essas relações mudaram radicalmente. O processo de especialização e diferenciação das atividades esvaziou os domicílios das atividades econômicas, que passaram a ser desenvolvidas nas fábricas e espaços específicos para esta função. Este fator conferiu a esfera doméstica, com a nuclearização da família, e sua consequente diminuição, uma perda de funções, restringindo-a ao espaço do cuidado das crianças, idosos, doentes. O espaço doméstico passou então a ser visto como o local da privacidade e intimidade; ao abrigo das mazelas, asperezas e dissidências do espaço público (ibid, p. 39).

A “coisa pública”, em oposição a esta esfera de proteção da intimidade, seria aquela dos vínculos por associação e compromisso mútuo, do estranho e não familiar, do trabalho e da luta pela sobrevivência. Esta distinção proporcionou uma das principais diferenciações que perduram até os dias atuais: a separação de espaços femininos e masculinos a partir da noção do público/privado (ibid, p. 39).

Com a mulher reclusa e responsável pelas tarefas domésticas e o homem exercendo suas atividades profissionais no espaço público e ocupando sua posição de mando no domicílio, a família dita moderna, apesar de reduzida em tamanho e funções, permanece com sua estrutura patriarcal (ibid, p. 40).

A separação entre esfera pública e privada da modernidade precisou vir acompanhada de concepções epistemológicas e de mundo, sem as quais essa separação não seria possível. Uma dessas principais concepções foi a de um Estado universalista e imparcial, desenvolvida a partir do século XVIII. Iris Young (1987) vai descrever como se configurou os espaços das cidades à medida que o comércio e a população cresciam no período industrial. Segundo ela, devido à modificação intensa dos espaços urbanos, diferentes classes começaram a se misturar, e, apesar da predominância de homens burgueses, os espaços públicos de discussão admitiam homens de quaisquer classes e condição. Além disto, mulheres aristocratas, através dos salões, teatros e espaços de leitura por vezes dirigiam discussões públicas (YOUNG, 1987, p. 73-74).

No entanto, como meio de suprimir os rumos que tomava o desenvolvimento dessa esfera pública incipiente, a filosofia republicana, que ganhava fôlego à medida que a

burguesia persistia no poder, fez valer uma estratégia importante para abafar as particularidades e a incipiente pluralidade dos espaços públicos de discussão. Essa estratégia estava relacionada à referida ideia de Estado universalista e imparcial que transcende a interesses particulares. Esse Estado universalista estava, para os republicanos, associado à ideia de “público cívico”, institucionalizado pela teoria e prática política da Europa e Estados Unidos em fins do século XVIII, e propunha suprimir a heterogeneidade popular e linguística do público urbano, como visto, por exemplo, em J. J Rousseau (ibid., p. 74).

Compondo a perspectiva do público cívico, está o pressuposto da separação entre esfera pública e privada e, também, a perspectiva da universalidade e imparcialidade da razão, vista como oposta ao desejo, ao sentimento e às particularidades. A racionalidade deveria ter como fim o reconhecimento de interesses comuns sob a premissa de uma vontade geral. A participação em uma vontade geral configuraria a condição de cidadania e seria a expressão autêntica de liberdade. Para isso, Rousseau, por exemplo, criou métodos para fomentar o compromisso com a homogeneidade, como por meio de comemorações cívicas. Isso não quer dizer, todavia, que para ele o pensamento parcial e as diferenciações, desejos e afetividades estivessem ausentes da vida humana. No entanto, estes sentimentos deveriam estar restritos à esfera privada da vida doméstica, na qual as mulheres seriam suas guardiãs morais (ibid., p. 74-75).

A crítica aos particularismos está associada a outro pressuposto central do pensamento liberal republicano: a ideia de igualdade. Os pressupostos liberais estão pautados, todos, no princípio da perfeita igualdade entre os indivíduos, e desta como condição para justiça social (DIETZ, 1999, p. 7). Por sua vez, essa noção de igualdade está diretamente associada à de liberdade, haja vista que foi relacionada, por vezes, à concepção de que os homens são iguais para eleger valores e fins, desde que estes não interferiam na liberdade dos outros em eleger seus próprios valores e fins. Essa relacionalidade entre igualdade e liberdade evidencia a construção de uma arena na qual todo homem só pode atuar se não obstaculizar nem ser obstaculizado pelos demais (ibid., p. 7).

Segundo Dietz, as concepções de igualdade e liberdade do liberalismo estão, por sua vez, diretamente associadas à concepção do indivíduo enquanto portador de direitos formais, que têm por objetivo protegê-lo da infração e interferência dos demais, para lhes garantir as mesmas oportunidades e acesso igual. Estes direitos seriam garantidos pela justiça e não poderiam estar submetidos à regateios políticos ou interesses sociais (ibid., p. 8). Esta concepção de direitos, segundo a autora, não só reforçaria os princípios de igualdade e liberdade, como também sustentaria a construção e separação das esferas públicas e privadas.

Para ela, ao passo que estes pressupostos (igualdade e liberdade) reforçam e caracterizam a noção de esfera pública, estes também abrem margem para a formulação da noção de direitos individuais, que, por sua vez, fariam referência a um âmbito de liberdade privada, distinta da pública, e não passíveis de intervenção estatal. Os direitos privados seriam invioláveis e nem o Estado, nem nenhuma outra instância, poderiam intervir legitimamente. Caracterizando o âmbito privado, quase sempre estavam noções como matrimônio, família, trabalho doméstico e cuidado com as crianças, e a ideia de que esses elementos, e os agentes que lhes pertencem, deveriam ser defendidos da interferência do âmbito público, e mantidos fora deste espaço (ibid., p. 8-9; BIROLI, 2014, p. 32).

Dessa maneira, ao passo que os princípios liberais se mostraram libertadores em um contexto de hierarquizações e obscurantismos, eles também se mostraram estéreis para uma crítica e proposições a respeitos dos direitos daqueles que não se enquadravam como homens, brancos e burgueses. Suas concepções não se mostraram eficazes para eliminar as restrições que sofriam as mulheres, e nem mostraram uma linguagem ou conceitos que abarcassem uma noção de público plural e diverso, despindo-se, assim, às críticas que ora propunham reelaborações conceituais, ora a implosão dos seus pressupostos fundamentais.