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Joalharia exclusiva, permanente e invasiva: a expressão corporal

de uma estética da divergência

Do gosto pelas marcas corporais

Dadas as características materiais e simbólicas que particulari- zam as marcas corporais nas sociedades ocidentais contemporâneas, a decisão pelo seu uso mais ou menos extensível e visível tende a não traduzir um mero acto de consumo, como se de um «vulgar» adorno se tratasse. Quando são tomadas como possibilidades con- cretas no horizonte de expectativas corporais dos jovens, as tatua- gens ou os piercings começam a exigir justificações na respectiva mobilização. Mais ou menos difusas no início, essas justificações expressam sentidos que, quando as marcas começam a atingir uma certa extensividade corporal, acabam, inclusive, por funcionar como estratégia de gestão de um suporte que é, por natureza, finito. Não se pode esquecer que a epiderme é uma superfície li- mitada, impondo logo à partida restrições materiais aos projectos que a mobilizam. Desta feita, a partir de determinado momen- to — normalmente coincidente com o reconhecimento do «vício» da marcação corporal —, uma marca, sobretudo quando se trata de tatuagem, não é feita sem uma «boa razão», sem um «significado» que a justifique.

No seu início, porém, o acto de marcar o corpo começa por ser ocasional, um gesto impulsivo e mimético, sobretudo na sua

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versão body piercing. Com a relativa difusão das marcas corporais enquanto bens de consumo mercantilizados, a sua adesão por parte dos jovens começa, na maior parte das vezes, por traduzir uma experiência cujas motivações são difíceis de racionalizar e de narrar, habitualmente justificada através de um argumento de gosto: «… porque gosto…», «… porque é giro…», «… porque é bué da fixe…». Este foi o tipo de justificação mais frequentemente re- produzido ao longo das inúmeras conversas tidas com jovens nas salas de espera dos estúdios — evocativo da expressão estética que é amplamente atribuída e tacitamente reconhecida a estes objectos por parte dos seus adeptos:

Acho que é mais pela estética dos desenhos. Alguns têm signi- ficado. Alguns têm significado, alguns são personagens que uma pes- soa idealizava quando era mais nova, talvez. Como, por exemplo, o Homem Aranha, e coisas assim do género, que era aquele herói de marca que uma pessoa — eu pelo menos — gostava muito. E a partir daí, depois, acho que algumas têm significado, outras nem por isso. É mesmo pela estética delas, que se enquadra no tipo de trabalho que eu quero no corpo.

Profissional de body piercing, 8.º ano de escolaridade, sexo masculino, 23 anos

Já no contexto das sociedades ditas «primitivas» a dimensão estética e decorativa das marcas corporais não deixava de ser cons- cientemente invocada e valorizada pelos sujeitos que as portavam, a par das funções estatutárias e ritualistas que cumpriam. Na medida em que faziam parte da percepção corporal desses povos, as marcas tatuadas, escarificadas ou laceradas nos corpos dos seus indígenas deixavam-nos atraentes, sedutores, desejados, humanos (Ramos 2001, 35-36). Na década de 50, por exemplo, Mesquitela Lima observava ser «vulgar, quando se pergunta a um nativo ou nativa da Lunda por que se deixa tatuar, ouvi-lo dizer: ‘Muata, é para ficar mais bonito’» (1956, 31). Hoje, nas sociedades ocidentais, quer sejam usadas de forma mais ostentatória ou discreta, mais pública ou privada, as marcas continuam investidas de um elevado valor de uso ornamental, funcionando como signos de embeleza- mento que revelam um acto de estetização corporal por parte do seu praticante.

Enquanto objectos de consumo dotados de um elevado valor de excepcionalidade, as marcas corporais passaram a pertencer ao con- junto de pormenores potencialmente mobilizáveis na monitorização

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dos visuais.1 Considerando a superabundância ou até saturação de

signos de distinção social actualmente disponíveis em consequência da eclosão, fragmentação e proliferação exponencial de modelos de referência e de recursos materiais produzidos e reproduzidos em rotatividade constante e cada vez mais veloz a partir da indústria da moda, o fenómeno de construção do visual e da imagem corporal na sociedade ocidental contemporânea desmultiplicou-se e com- plexificou-se (Barreiro 1998 e 2004; Campbell 1992; Lipovetsky 1994 [1992]).

Com a prevalência de modelos cada vez mais facultativos e me- nos imperativos, o poder unanimista e normativo da moda começou a ceder à sedução do estilo (Hebdige 1986 [1979] e 1988): a primei- ra, conotada com a cópia, a padronização, a adequação seguidista e alinhada a um conjunto de tendências sazonais que (pré)tendem à generalização, definidas por instâncias exteriores ao indivíduo e comercializadas em larga escala a preços relativamente acessíveis; o segundo, remetendo para a criação de um visual pessoal, inves- tido de uma ilusão autoral traduzida numa imagem construída e reconhecida como autêntica e personalizada, proporcionada pela monitorização de recursos imagéticos socialmente investidos do valor de originalidade, autenticidade e diferença, numa lógica mais opcional, lúdica e criativa entre vários modelos que desalinhada- mente se justapõem.

«O que é valorizado é a diferença, a personalidade criativa, a imagem surpreendente, e já não a perfeição de um modelo. Ligado ao desenvolvimento do psicologismo, aos desejos de independência acrescida e de expressão de si, o look representa a face teatralizada e estética do neonarcisismo, alérgico aos imperativos standardiza- dos e às regras homogéneas» (Lipovetsky 1994 [1992], 173). E na construção e imputação destes valores a mercadorias amplamente

1 Segundo Barthes, o pormenor define-se pela «pequenez» e «criatividade». Nas

suas palavras, «o ‘nada’ é, precisamente, o núcleo irradiante: a sua importância não é ampla mas sim enérgica, há uma propagação do pormenor no conjunto, nada pode significar tudo […] um ‘pormenor’ é suficiente para transformar o sem- -sentido em sentido, o fora-de-moda em moda» (1999 [1967], 269-270). Também Calabrese define o pormenor como o detalhe que introduz «excepcionalidade» contra a «normalidade», um elemento de «singularidade» por oposição à «regula- ridade» (1999 [1987], 92-93): «o pormenor consiste na operação de fazer passar um fenómeno da área da individualidade para a da excepcionalidade, ou melhor, da polaridade do regular para a do excepcional. A prática ‘detalhante’, de facto, consiste em ‘pôr em relevo’, como facto excepcional, uma porção do fenómeno que de outro modo surgiria como normal» (1999 [1987], 94).

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reproduzidas o sistema da moda encontra na publicidade uma íntima e poderosa cúmplice: «na reprodutibilidade, o que hoje interessa é a diferença. A publicidade, instrumento fundamental das estratégias implicadas no actual processo, sustenta habilmente o estranho equívoco de um único que é produzido em série…» (Santos 1994, 122).

Ora, as marcas, enquanto pormenores enfáticos de um dado visual, servem, sobretudo, as intenções deste último modelo, mais associado à linguagem do estilo do que da moda, ao conservarem o estatuto de acessórios «exóticos» para adornar o corpo e compor um visual, construído no sentido de se demarcar socialmente ao

marcar um estilo próprio, supostamente personalizado.2 Enquanto

metáforas contemporâneas de joalharia exclusiva, definitiva e in- transmissível, são investidas de um elevado valor estético e decora- tivo. Tal como as jóias, a sua apropriação requer algum investimen- to e capacidade financeira. Tal como as jóias, marcam e demarcam socialmente quem as usa, se bem que em sentidos diferentes. Se, por um lado, o consumo de joalharia está tradicionalmente asso- ciado a estratégias de distinção de ordem hierárquica, à produção de identidades de classe e a expressão de estatutos sociais, o acto de marcar o corpo tende, por sua vez, a relacionar-se com estra- tégias de demarcação social de ordem horizontal, a produção de identidades grupais e/ou pessoais e a expressão imagética de uma determinada zona de gosto (Melo 1994, 97):

Há quem prefira diamantes, rubis e essas coisas. Eu não. Os meus

piercings e as minhas tatuagens são as minhas jóias! […] Portanto,

sou igual a toda a gente. Pá, só com uma diferença! Pronto, é assim: eu não gosto de andar cheia de ouro por aqui abaixo! Eh pá, eu não gosto, mas quem sou eu? Eu não gosto, mas eu não sou ninguém... Como tal, é assim: acham que eu sou horrível com isto na cara! Eu gosto! […] É como eu digo, isto são as minhas jóias, como a senhora tem as suas jóias, não é?

Gerente de estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos

Embora social e ideologicamente diversificada, a zona de gosto revelada converge transversalmente numa ética da estética (Maffe-

2 Daí a ampla mobilização e exposição de corpos marcados em anúncios

publicitários que tentam associar uma mensagem de diferença e autenticidade ao produto que pretendem ver largamente consumido (Feyrabend 2005).

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soli 1988b e 1990) ou, melhor dizendo, numa determinada estética como ideal ético (Shusterman 1988), caracterizada pela divergência perante os modelos juvenis de corporeidade modal. Quer isto dizer que, não obstante poder assumir diferentes formas, trata-se de um investimento estético unificado pela partilha de uma atitude iconoclasta perante as convenções dominantes que regem os visuais juvenis, atitude mais ou menos empenhada ou comprometida para a vida conforme a extensividade efectiva ou planeada para o projecto de marcação do corpo:

Em termos de comunidade de alterações corporais, acho que [o que nos une] será mesmo uma filosofia da estética. Tens uma série de profissionais e uma série de clientes, uma série de consumidores das mais variadas classes sociais, das mais variadas filosofias políticas, das mais variadas correntes de pensamento, e o que os identifica será precisamente a estética ou a necessidade de violar a estética ou o sentimento que daí advém em oposição ao estereótipo. Será mais ou menos isso. De resto, não há um ideal comum a estas pessoas.

Profissional de body piercing, frequência universitária, sexo masculino, 25 anos

A divergência expressa nos corpos extensivamente marcados traduz-se, em termos estéticos, numa manifestação corporal de tipo neobarroco (Calabrese 1999 [1987]), caracterizada pela tenta- ção do limite e do excesso ornamental como estratégia de chegar ao original, pelo culto do pormenor e do fractal como estratégia de evitamento do centro modal. Em suma, pela divergência das convenções que regem as corporeidades dominantes, pretendendo enunciar, demonstrar e ratificar socialmente uma forma de exis- tência singular e de inserção alternativa às que são regulares no

mundo.3

Nesta perspectiva, a estética neobarroca encontra uma forte

proximidade analítica com a que Lipovetsky designa por neodandy,4

ou seja, uma estética que aposta e «ostenta a diferença radical em relação à média, joga na provocação, no sobrelanço, na excentri-

3 As polaridades singular/regular, excepcional/normal, original/mimético,

dinâmico/estático, são algumas das categorias de sentido e valor analisadas por Calabrese (1999 [1987]) para explicar a dicotomia formal que divide clássico/ barroco.

4 A figura do dandy novecentista tem sido amplamente tratada como arqué-

tipo histórico da antimoda, na medida em que constituía, na época, um estilo

oposicional utilizado para chocar e demonstrar hostilidade perante o conformismo

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cidade, para desagradar, surpreender ou chocar. À semelhança do dandismo clássico, trata-se sempre de aumentar a distância, de se separar da massa, de causar espanto, de cultivar a originalidade pes- soal, com a única diferença de já não se tratar agora de desagradar para desagradar, de se fazer reconhecer pelos círculos mundanos através do escândalo ou do imprevisto, mas de ir até ao extremo da ruptura com os códigos dominantes do bom gosto e com a conveniência» (1989 [1987], 170).

Deste ponto de vista, o barroquismo ou o dandismo contem- porâneo manifesto nestes corpos mais não faz do que levar ao extremo o gosto pela singularidade, pela sobrediferenciação indi- vidualizada através da exacerbação do artifício, que já em épocas anteriores se havia manifestado, embora de forma completamente diferente e dentro de limites sociais substancialmente mais estreitos e localizados. Está-se perante a radicalização daquilo a que os in- teraccionistas chamam fachada (Goffman 1993 [1959]), através de uma encenação «forte» de si mesmo, onde o corpo é mobilizado no sentido de marcar e demarcar uma existência com impacto no mundo, de ostentação de uma presença física e maximização da distância estética.

Dos valores de ordem estética nos projectos