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Ser diferente: distintividade e singularização

nos projectos de marcação corporal

A identidade pessoal dos jovens extensivamente marcados surge, em grande medida, construída, sustentada e performativizada a partir de um profundo sentimento subjectivo de distintividade in- dividual ou, melhor dizendo, de singularização identitária. Trata-se de um sentimento que toca o extremo do processo de individuação, na medida em que vai além da sensação individual de autonomia

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enquanto pessoa: há um sentimento de diferença radical que subjaz

à construção de uma identidade para si enquanto individualidade.17

O barroquismo da parafernália estética a que entregam o seu corpo permite-lhes operar uma demarcação perceptiva intensa, facultando- -lhes a criação de um diferencial estilístico e semiótico sobre uma fachada que passa a ser percepcionada como altamente personalizada.

No contexto de sociedades cada vez mais heteróclitas, frag- mentadas e multiculturais, a diferença tem sido tradicionalmente pensada, no âmbito da antropologia e da sociologia, como um atributo do outro, enunciado em termos de colectivos culturais estruturados a partir de categorias como a «raça», o «sexo», a

«orientação sexual» ou a «idade», por exemplo (Melo 2003).18 São

categorias sociais em grande medida construídas a partir de traços corporais fenotípicos, sujeitos a processos de generalização, cate- gorização e estereotipia social. Como formula Nahoum-Grappe, a diferença tende a oferecer sempre uma superfície visível ao olhar social (1988, 21-22). A estética corporal, por sua vez, enquanto apresentação formal do corpo, reúne um conjunto de informação semiótica cuja recepção passa em grande medida pelo acto de olhar. Este não implica apenas a apreensão da realidade captada, mas a respectiva interpretação e valoração, o que inclui operações de atri- buição e decifração sobre a realidade objecto do olhar, a partir das quais se estruturam as dinâmicas de diferenciação e de generalização identitária.19

17 Já Schutz reconhecia que, embora a dinâmica da individuação tenda a impor-

se em todo o mundo social, existem determinados meios sociais onde esta ganha uma tal intensidade que se transforma em dinâmica de individualização, dando atenção à especificidade da «personalidade artística» e de esta surgir integrada em «certas comunidades que dão elevada importância ao carácter das persona- lidades», valorizando «peculiares objectividades mentais» (1978, 136 e 127-128). A propósito da radicalização do processo de individuação em individualização e das diferenças entre indivíduo e individualidade, v. também Luhmann (1986).

18 No trabalho de Wieviorka, paradigmático da reflexão e análise da construção

social da diferença, são sobretudo as condições de emergência dos processos de afirmação colectiva da diferença que são analisadas. Na medida em que esta, na concepção do autor, é experimentada através de mecanismos de hierarquização, dominação, desqualificação ou discriminação, a dinâmica de diferenciação, por sua vez, irá ser caracterizada pela dissolução e assimilação do indivíduo numa identidade colectiva portadora de memória, de valores e de práticas supostamente partilhadas e universais e agenciadora de acções colectivas (Wieviorka e Ohana 2001; Wieviorka 2002).

19 Enquanto o processo de diferenciação visa segmentar, ou seja, estabelecer a

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Quanto mais a percepção visual compreende traços corporal- mente distintivos, mais intensos e incisivos são os processos de diferenciação e categorização que dela decorrem. Um corpo ex- cepcional está na base da construção expressiva de um indivíduo de excepção. É nesta medida que as corporeidades extensivamente tatuadas e perfuradas se vislumbram activamente participativas na dinâmica de diferenciação de alguns segmentos juvenis. Num con- texto de ampla diversificação e rotatividade dos recursos, normas e códigos de construção imagética, onde um certo inconformismo estético é valorizado, a tatuagem e o body piercing continuam a constituir marcas que demarcam, acessórios apropriados como formas visíveis de expressão da diferença, não apenas pela origi- nalidade, exotismo ou excesso que são comummente lidos na sua estética, mas também pela marginalidade, insubordinação, coragem e determinação atribuídas à sua ética.

O indivíduo que adopta esta militância estética em público pretende, antes de mais, causar impressão, fazer-se ressaltar, pôr- -se em relevo, abandonar a fachada que o fazia ser qualquer um, para assumir uma outra que o torna alguém em concreto, cujo excesso de presença no mundo pode desencadear sentimentos de fascínio ou cumplicidade, curiosidade ou interrogação, suspeição ou rejeição, inquietude ou temor, estranheza ou repugnância, adver- tência ou até agressão (verbal ou física), mas nunca de indiferença. A radicalização do seu projecto de corpo responde a um projecto identitário de construção e reconhecimento social da sua pessoa como ser singular. Para tal se ser, necessário será como tal ser per- cebido. Através da ostentação de um corpo iconoclasta (Sirost 1998, 6), os jovens extensivamente marcados fazem-se distinguir entre a massa corpórea de transeuntes anódinos que se agitam pelas ruas, fazem-se sobressair da imagem saturada e indiferenciada dos «cor- pos jovens» que se vestem seguindo as manipulações normativas da moda mais estandardizada.

Essa dinâmica de diferenciação implica uma forma actualizada de viver e de entender a diferença. Mais do que uma realidade que supostamente lhes é «naturalmente» dada, a «diferença» emerge nos discursos dos entrevistados como uma categoria regular de

de generalização implica a definição de um denominador comum a uma classe de elementos diferentes de uma outra, alimentando os fenómenos de categorização social (Dubar 2000).

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autodefinição que, como revela a sua raiz etimológica,20 dá conta

de uma subjectividade construída em torno de um sentimento e uma vontade individual(izada) de diferir. Não é representada entre estes jovens como atributo fenotípico herdado e colectivamente partilhado, mas como uma qualidade pessoal, reivindicada, projec- tada e gerida pelo próprio. Tal diferença vai ser expressa por uma estética da divergência, marginal relativamente aos pólos centrais e hegemónicos de produção corporal, consubstanciada num conjunto de traços corporais diacríticos que «ostenta a diferença radical em relação à média» e que «joga na provocação, no sobrelanço, na ex- centricidade, para desagradar, surpreender ou chocar» (Lipovetsky 1989 [1987], 170):

Desde que eu me lembro assim de mim, tipo na escola, ainda nos Olivais, eu sempre fui diferente. Ou seja, 14-15 anos, eu sem- pre fui diferente das outras pessoas. Aliás, vejo por fotografias e tudo isso. Não sei, sempre fui diferente. A minha mãe sempre teve imenso desgosto... [Risos] Sim, porque nunca fui daquele género de meninas ao estilo das filhas das amigas dela. Nunca gostei, ou nunca me atraiu muito ser igual às outras pessoas [...] Por isso é que acho que eu, desde muito pequena, procurei sempre, se calhar, chocar, chamar a atenção, não sei [...] Não é por mal, eu sou mui- to diferente! Eu sempre fui a excêntrica! Sempre fui totalmente diferente! […] Eu lembro-me que era um grande sucesso, há 15 anos atrás […] Não havia NINGUÉM, ninguém que tivesse [tatua- gens]! E então era fantástico poder mostrá-las a toda a gente, porque cá, de facto, não havia.

Profissional de body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 34 anos

A exploração da estética corporal, de que as marcas corporais fazem parte, é concomitante com uma busca de originalidade, de distinção perante a seriação uniforme da produção corporal pa- dronizada e despersonalizada, característica das vagas rotativas e efémeras de consumo imagético, forjando um recurso genuíno de auto-exploração estética e identitária para quem não se revê nas habituais narrativas e recursos «autenticado(re)s» providenciados pelo sistema da moda. Constitui uma estratégia de, através da dife- renciação radical do corpo, o sujeito se demarcar de uma existência que percebe como demasiado banal e estereotipada e de expressar uma identidade pessoal, ela própria, radicalizada na sua irredutível idiossincrasia.

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A opção por um regime de marcação corporal extensiva vislum- bra-se, assim, como um acting out, uma forma de exteriorização e certificação de uma subjectividade construída na base de um sentimento de diferença que se vai radicalizando. O acentuado desejo de «diferença radical» expresso através da marcação exten- siva é firmado numa construção subjectiva destes jovens como sujeitos excêntricos, que não se resignam ao estatuto impessoal e universalista de indivíduo, mas que procuram aceder ao estatuto de individualidade («ser eu próprio»), tentando fazer-se reconhecer e respeitar como pessoa singular («ser diferente dos outros»).

Fazem-no através da mobilização de um regime corporal selec- cionado, fundamentalmente, pelo elevado valor de contraste que proporciona na operacionalização de uma estratégia de diferen- ciação. Como os discursos notoriamente manifestam, os jovens portadores de projectos extensivos de marcação corporal tendem a construir-se desde cedo enquanto pessoas diferentes e únicas por referência às zonas de gosto implicadas nos seus quadros de in- teracção nucleares — pais e outros familiares, colegas de escola, amigos de rua, etc. São zonas de gosto que implicam sobretudo referentes musicais e imagéticos, tidos como altamente hegemó- nicos, padronizados e saturados, em suma, normativizados. Mas fazem-no também pelo valor de simetria que este tipo de regime corporal proporciona, ao estabelecer um conjunto de identificações simbólicas por empatia com quem, física ou virtualmente próximo do seu mundo, é reconhecido, respeitado e celebrado por estes jo- vens como signo de diferença, como ícone, assumindo por esta via o estatuto social de individualidade. As referências de identificação que constituem pólos de autoridade somática na expressão social dessa diferença podem ir das suas estrelas musicais preferidas aos heróis do seu bairro ou da sua escola, por exemplo:

Normalmente as pessoas, quando fazem um primeiro piercing, fazem- -no pela procura de algo diferente, porque é o primeiro. O que acontece é que as pessoas depois de fazerem o primeiro, depois de se aperceberem que não é aquele terreno proibido, aquela coisa do outro mundo que se imaginava, começam a desenvolver o gosto pelo exagero, ou seja, quanto mais usarem, quanto mais ostentarem, mais

status aquilo lhes dará. Se quiseres, mais os diferenciará do cidadão

comum. Aliás, eu penso que muitas das pessoas é isso que procuram, é a diferenciação de todos os outros. «Eu utilizo porque quero ser diferente ou porque me quero associar ou me quero identificar com aquela X pessoa que também tem.» Normalmente as pessoas tendem

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a identificar-se com personagens, com ídolos, com imagens, que são aquelas que se diferenciam do padrão, do estereótipo. E a busca ou a procura da diferença muitas das vezes traduz-se no exagero.

Profissional de body piercing, frequência universitária, sexo masculino, 25 anos

Nesta perspectiva, apesar de apresentar um valor identitário altamente individualizado e individualizador, a construção do corpo extensivamente marcado não deixa de se verificar altamente inde- xada a um coeficiente de alteridade, a partir do qual é afirmada a diferença e a suposta irredutibilidade individual. Ou seja, em última instância, objectivamente, até pode haver muitos outros «iguais» ou semelhantes no feixe de identificações do sujeito que se constrói como diferente e único; o que interessa é que o sujeito se diz, se apresenta e se representa segundo essa categoria, encontrando sem- pre «grupos» de contraste (socialmente muito generalizados e visí- veis) e de simetria (socialmente muito mais raros e marginais).

Sendo a diferença um sentimento intersubjectivo, a individuali- dade não deixa de constituir um valor vivido por referência a um mundo de vida. Daí não dever-se confundir individualidade com individualismo, muito menos com isolacionismo, na medida em que se trata de uma construção cujo significado é produzido na relação social. O que, de resto, vem de encontro a uma constata- ção relativamente consensual entre as diversas teorias sociológicas que abordam a construção social da identidade pessoal: o facto de a dinâmica de distintividade estar estreitamente ligada à cons- trução recíproca da alteridade. A diferença sentida relativamente a si próprio não existe senão por via da colocação do indivíduo perante o outro, da qual resultam sentimentos de diferenciação e identificação.

É nesta perspectiva que a diferença remete para a dimensão con- trastante das identidades, enfatizando a pluralidade como condição implícita e necessária à dinâmica de diferenciação: só há lugar para a identidade se houver uma diversidade de feixes de identificação, sendo que esse sentido de diferença constitui e precede a cons- trução identitária (Sökefeld 1999, 418). Se a identidade depende da diferença, a identificação, por sua vez, não existe senão em oposição (Martuccelli 2002, 420). A operacionalização do próprio conceito de identidade implica, justamente, dar conta da dinâmica recíproca entre identificação e diferenciação, permitindo, num úni-

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co e mesmo movimento, sublinhar a distintividade de um indivíduo e/ou grupo, no contexto de uma dada cultura ou sociedade, por referência à semelhança com certos outros.

Contudo, a dinâmica de distintividade presente entre os jovens tatuados e perfurados em larga extensão corporal não reflecte uma estratégia de diferenciação cultural de natureza colectiva entre sexos, orientações sexuais, raças ou etnias, sequer entre classes

sociais.21 Expressa, sim, uma dinâmica de diferenciação individual,

orientada no sentido da subjectivação (construção de uma identi- dade para si), da individuação (reconhecimento social do indivíduo enquanto pessoa autónoma) e da singularização (reconhecimento social do indivíduo enquanto individualidade), através da procura de uma estética «própria», original e idiossincrática, enquanto marca visível de autenticidade e irredutibilidade do self. Trata-se de uma dinâmica de diferenciação que ancora num projecto reflexivo que coloniza o corpo de signos conotados com excentricidade, excesso e transgressão. Mais do que marcas de distinção social, no sentido colectivista de Bourdieu (1979), as marcas corporais são hoje investidas pelo seu portador como pormenores de distinção individual, como signos distintivos de identidade pessoal, um valor eminente que resulta de novos imperativos societários.

Nas sociedades ditas «primitivas», onde as marcas corporais fa- ziam parte integrante da percepção corporal dos seus membros, estas técnicas do corpo reflectiam sobretudo uma forma de idiossincrasia social (Mauss 1966 [1950], 368), sendo mobilizadas enquanto signos políticos de inclusão endogrupal e de exclusão exogrupal, expressão de pertença a determinado grupo que, por sua vez, funcionaria para outros como um território de exclusão. Eram fundamentalmente investidas de um valor distintivo de natureza colectivista e esta- tutária, no sentido em que desempenhavam funções simbólicas de integração e demarcação social, de filiação do sujeito numa dada linhagem, clã, estatuto, grupo etário ou sexual, bem como da sua homóloga separação relativamente a outras linhagens, clãs, esta- tutos ou grupos sociais. Os regimes de marcação corporal mais efémeros (como o body painting ou o body piercing, por exemplo) estavam mais correlacionados com estatutos transicionais consagra-

21 Viu-se nos resultados do inquérito aos jovens portugueses de 2000 que a

marcação corporal extensiva não é afectada por esse tipo de distinções sociais (Ferreira 2003, 328).

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dos em cerimónias sociais limitadas no tempo, enquanto formas de modificação corporal mais indeléveis (como a tatuagem, a escarifi- cação ou o branding) se viam conectadas a estatutos, eles próprios, permanentes (género, maturidade sexual, posição social, etc.).

Nestas sociedades, os regimes de marcação corporal reenviam, portanto, para a celebração e reprodução do corpo comunitário, «um corpo ‘incestuoso’ que atravessa todos os corpos individuais», cada um apenas seu «fragmento e momento» (Gil 1980, 44-46). Não somente fixavam e certificavam as pertenças colectivas do indivíduo, como constituíam uma prática indispensável no acesso à dimensão social e cosmológica da sua formação social de origem (Borel 1992, 174). A eventualidade de um corpo sem marcas cor- responderia a uma corporeidade desassociada do mundo (social e cosmológico), equivaleria a uma corporeidade culturalmente inexis- tente e indigna de qualquer forma de respeito social, na medida em

que não expressava qualquer pertença (Ramos 2001, 35-36).22

Hoje, nas sociedades ocidentais, os projectos de marcação corporal extensiva correspondem, de facto, à expressão de novas exigências sociais, de novas pressões normativas, que tomam a for- ma de desejos pessoais actualmente em expansão no tecido social: «ser eu próprio», «ser diferente», «ultrapassar limites», «realizar-se pessoalmente», «afirmar-se como pessoa», em suma, expressar a idiossincrasia pessoal do sujeito marcado e distinguir-se radical- mente dos outros, suportando expressivamente uma identidade pessoal que intenta perpassar autenticidade e singularidade. São exigências que traduzem um tempo de acentuada individualização social e correspondente idealização simbólica da singularidade, condições segundo as quais os indivíduos, nomeadamente os mais jovens, são constrangidos a localizarem-se e a projectarem-se a si próprios para si mesmos e para os outros, como seres únicos e

22 O que não quer dizer que, no âmbito das formações sociais mais tra-

di-cionais, as marcas também não servissem algumas formas de individuação. As tatuagens faciais entre os guerreiros jivaro, por exemplo, para além de preten- derem salientar força, virilidade e agressividade, tentavam simultaneamente marcar na respectiva iconografia a singularidade anatómica de cada rosto, por forma a salientar as diferenças entre as várias faces de uma mesma família (Taylor 2003, 227). Também os jovens nuban masculinos, segundo Sanders (1989, 5), criavam desenhos altamente pessoais e sofisticados com a intenção de acentuarem o seu desenvolvimento e perfeição física, nomeadamente através do uso da cor, forma de criação pessoal e opcional não ditada pela tradição ou pelo significado ritual. Do mesmo modo, entre as mulheres maori, os desenhos moko eram bastante individualizados e sofisticados (Sanders 1989, 10).

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singulares, obrigando-os a manter e fazer prova (expressiva) dessa mesma singularidade ao longo da sua trajectória de vida. Tal implica a performatização credível da genuinidade da sua identidade pessoal no âmbito de um espaço cada vez mais largo de possibilidades e recursos identitários, mas também de interditos sociais.

Neste contexto, a relativa raridade social na mobilização de re- gimes de marcação do corpo quando estes tomam uma certa exten- sividade no espaço e regularidade no tempo, a par das propriedades materiais (permanência e invasividade) e simbólicas (exotismo, arte, patologia, marginalidade, etc.) que lhes são formal e historicamente consagradas, concede aos seus praticantes uma imagem de si e uma visibilidade social amplamente distintiva perante o que é percebido como sendo o «banal» e o «estereótipo», ou seja, a normatividade dos visuais amplamente mercantilizados. Por outro lado, na medida em que é voluntária e reflexivamente modificado sob a orientação do valor da originalidade, o corpo extensivamente marcado poten- cia um sentido acrescido de unicidade individual para o sujeito que o excorpora. Por outras palavras, ao operar no sentido da acen- tuação imagética da distintividade do self, a originalidade atribuída ao projecto de marcação do corpo intensifica o sentimento de diferença do seu portador ao ponto de se perceber como único e incomparável. O valor estético de originalidade, quando concreti- zado sobre o que de mais personalizado a pessoa possui — o seu corpo —, vê-se transmutado em valor de singularidade e autenti- cidade identitária transferível para o sujeito encarnado:

Pode ter sido, se calhar, uma... uma vontade de ser diferente, não ser como toda a gente, e de tentar ter uma cena particular… […] Também, na altura [em que comecei], pelo menos cá em Portugal, não se via assim propriamente muita gente assim com piercings […] Acho que hoje em dia há aquela necessidade de originalidade, de ser diferente, não sei... [...] Isto se calhar foi tipo uma fuga, se calhar foi uma forma de mostrar que não existe só um caminho, não é por uma pessoa se vestir assim que têm todos de vestir [...] Também pode ter sido se calhar uma forma de me encontrar a mim próprio. E se calhar não me identificava com o que as outras pessoas eram, naquela altura de início de formação de personalidade. Foi um processo gradual, não foi de um momento para o outro.

Estudante universitário, sexo masculino, 20 anos

É nesta perspectiva que o sentido de individualidade destes jovens surge amplamente ancorado à imagem corporal que foram e vão construindo, através da acumulação de múltiplos objectos-in-

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cisão (Babo 2000 e 2001) sobre um acessório — o corpo — já em si próprio altamente valorizado em termos da representação social indivisível do self (Le Breton 1985). A marca traduzirá, assim, a necessidade de completar por iniciativa pessoal um corpo insufi- ciente em si mesmo para encarnar uma identidade que se pretende singular. Neste sentido, a epiderme, como se de uma tela se tra- tasse, vai sendo colonizada de objectos e de tintas que a dotam de uma densidade simbólica bastante além da sua habitual superfície

normativa, indiferenciada, característica da «natureza do corpo

original», quando desnudo, servindo os propósitos de realização e expressão de uma subjectividade que se concebe e se pretende publicamente reconhecida como singular.

O processo de diferenciação é progressivo, começando por compreender toda uma zona de gosto onde a música assume