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Histórias dos usos de marcar o corpo

Quando falamos de «marcas corporais», referimo-nos a um con- junto de práticas ornamentais do corpo que têm a particularidade de, literalmente, o encarnarem e de, deliberada e indelevelmente, marcarem a sua superfície, com recurso a um complexo e diversi- ficado conjunto de objectos materiais e de técnicas de aplicação. Tomam uma variedade de configurações, sendo as mais recorrentes, actualmente, no mundo ocidental as que se socorrem de formas

mais moderadas de perfuração epidérmica, como a tatuagem1 e o

body piercing.

Para além destas, outras formas de inscrição corporal mais ra- dicais começam discretamente a tomar lugar dentro do espaço de possibilidades disponíveis para adornar o corpo, formas essas onde são aplicados processos técnicos que vão além da tradicional pica-

1 Inscrição de desenhos na profundidade da derme através da injecção mecânica

de uma matéria corante de origem mineral, vegetal, animal ou sintética.

 Inscrição de uma peça de joalharia em determinada parte da superfície do

corpo, sendo, em geral, peças simples, como barras ou argolas. No entanto, dada a sua popularidade e procura, existe hoje uma maior diversidade em termos dos motivos e cores das peças relativamente à altura do seu surgimento em Portugal há praticamente duas décadas.

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dura, implicando o corte ou incisão, a queimadura, a distensão de órgãos ou até a intervenção cirúrgica. Falamos, nomeadamente, do cutting ou escarificação,3 do branding,4 do stretching ou dilatação,

da colocação de implantes subcutâneos ou ainda de outro tipo de

modificações corporais mais extremas, como, por exemplo, a cisão

da língua ou a amputação de membros.

As práticas de modificação corporal enumeradas não são, na sua maioria, uma invenção recente. Ancestrais, universais e praticamen- te ubíquas, as modificações parecem ter marcado o corpo humano, desde sempre, por todo o mundo, tidas como um dos actos mais «primitivos» da história da humanidade (Peixoto 1990, 1-0). Arranhando, rasgando, perfurando, queimando a pele, cortando,

penetrando, distendendo, deformando ou amputando órgãos, o

corpo foi sempre sendo sujeito a modelações onde o cultural e o social se inscrevem e gravam sobre o biológico. No contexto das sociedades tradicionais, tomavam a forma de instrumento de biopoder, no sentido em que configuravam uma forma microfísica de exercício de dominação e controlo sobre o indivíduo (Foucault 199). Reproduzidas numa situação compulsória e obrigatória, as

3 Inscrição na epiderme de figuras geométricas ou de desenhos sob a forma

de cicatrizes em relevo, abertas com recurso a bisturi ou a outro instrumento cortante, podendo ou não ser preenchidas com determinados pigmentos corantes. A incisão cria na pele uma chaga, mais ou menos profunda, tratada de forma a criar uma cicatriz plana, saliente ou afundada.

4 Inscrição na pele de figuras geométricas ou desenhos através de uma quei-

madura com ferro em brasa, podendo ou não ser preenchida com determinados pigmentos corantes.

 Corresponde ao alargamento do orifício do piercing com o objectivo de co-

locar uma peça de joalharia mais volumosa; no contexto das sociedades ocidentais, esta intervenção é habitualmente feita no lóbulo da orelha.

 Colocação de objectos por debaixo da pele de forma a dar-lhe relevo, recor-

rendo-se frequentemente à joalharia utilizada no body piercing.

 Sobre outros tipos de modificação corporal menos comuns no contexto

das sociedades ocidentais, v., por exemplo, Borel (199), Brain (194), Chippaux (199 [1990]), Ebin (199), Heuze (000) e Rubin (19) especificamente sobre a modificação dos órgãos sexuais; v. ainda Mascia-Lees e Sharpe (199), Myers (199) e Rowanchilde (199). Em Portugal, estoutro tipo de intervenções é ainda muito raro, sendo normalmente auto-infligidas ou adquiridas no estrangeiro, não integrando ainda o segmento da indústria de design corporal responsável pela per- furação mercantilizada do corpo, como já acontece noutras metrópoles do mundo.

 Dilatação do pavilhão auricular, perfuração do septo, dos lábios, das faces,

decepamento das falanges, amputação das unhas, alongamento do pescoço, incrus- tações, apontamento dos dentes ou extracção dos mesmos, deformação cefálica, atrofiamento dos membros, são algumas das práticas desde há muito conhecidas noutras formações sociais (Atkinson 003; Borel 199; Caplan 000; Cassard 000; Chippaux 199 [1990]; Rubin 19; Vasseur 004).

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marcas submetiam o indivíduo à autoridade que as impunha, sendo nelas claramente expressas as relações hierárquicas subjacentes ao quadro institucional em que o sujeito marcado se inseria.

Como Isabel Mendes de Almeida explica, «no caso específico da tatuagem, esta sempre se caracterizou, no passado e até épocas não muito remotas, como uma forma de classificação de indivíduos e grupos onde o registo e a supremacia da sociedade sobre esses sempre se verificavam de forma rigorosa e inescapável. Valores, visões do mundo, ritos de passagem, comportamentos rituais, nascimentos e morte, as diversas formas de classificação moral e jurídica marcam ao longo da história e das sociedades (diacroni- camente) formas de controlo e ascendência da sociedade sobre os indivíduos» (000, 103). As marcas funcionavam, portanto, como formas de decoração corporal complexas mas consistentes, veicu- lando um sistema de signos que identificava, localizava e orientava socialmente os seus portadores, em conformidade com códigos de comunicação definidos no contexto de sistemas sócio-culturais específicos. Através dessa gramática corporal normativamente codi- ficada e materialmente incorporada era sublinhada a determinação colectiva e o controlo do social sobre os membros de um dado grupo, manifestando uma noção de pertença colectiva que actuava no sentido de agregar identidades individuais e sociais, ou melhor,

de submeter as primeiras às últimas.9

No Ocidente, ao serem violentamente combatidas e condena-

das pela Igreja enquanto atentado moral à integridade corporal,10

as marcas corporais permaneceram numa relativa obscuridade até

ao século xviii. Representadas como marcas de iniquidade no con-

texto da tradição judaico-cristã,11 as diversas formas de inscrição

indelével do corpo faziam distinguir o pagão do crente, o ímpio

9 Brain (194); Clastres (19 [194]); Durkheim (00 [191]); Ebin (199);

Gil (190); Johnson (001); Lévi-Strauss (19 [19]); Peixoto (1990); Pritchard (001); Schildkrout (004); Taylor (003); Turner (190, 199 [199] e 1999); van Gennepp (1991 [1909]).

10 O respeito pela integridade do corpo é uma forma essencial de submissão

às leis de Deus enquanto gesto de demonstração de fidelidade ao acto de criação. Se o corpo é «feito à imagem e semelhança de Deus», modificar essa imagem, nomeadamente através da inscrição corporal, equivale a desfigurar a sua «perfeição natural», o que seria uma blasfémia digna de reprovação moral (Bíblia Sagrada, Génesis 4:1, Deuteronómio 14:1 e Levítico 19:).

11 Reza no Velho Testamento que Caim, tido como primeiro pecador da

história da humanidade, terá sido marcado por mão divina. As marcas não são proscritas apenas no cristianismo. Também no Alcorão, livro sagrado dos povos islâmicos, são consideradas marcas de iniquidade e injúria.

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do fiel. Constituíam interditos só aceites quando tomavam a forma de práticas de autoflagelação divinamente inspiradas, utilizadas para assinalarem virtude, obediência e devoção religiosa. Num sistema social em que o corpo era codificado como um signo de transcen- dência só deveria ser tocado em rituais sagrados e autorizados pela Igreja Católica, como se passava, por exemplo, no caso dos estig- mas (stigmatas), inspirados pela Epístola de São Paulo aos Gálatas : 1. Os próprios médicos monásticos estavam proibidos, segundo o Concílio de Trento (113), de procederem à sangria — prática de cura habitual na época —, pois violava os limites do interior do corpo (Gustafson 000; Jones 000; MacQuarrie 000). Ora o corpo marcado é um corpo inscrito, perfurado, cujos limites interiores foram violados.

Durante os períodos medieval e renascentista, envoltas num conteúdo místico, as marcas corporais estiveram discretamente presentes no seio de algumas «subculturas pagãs», as quais inte- gravam druidas, mágicos, médicos, astrónomos e físicos que, hete- rodoxos relativamente às tradições cristãs, apadrinhavam filosofias e práticas relacionadas com as ditas «artes» ou «ciências ocultas», como a astrologia ou a própria feitiçaria (Rosecrans 000). Nesses contextos, as marcas eram investidas de significados mágicos e protectores, cumprindo a função de amuleto sagrado e ancestral. Tal como também entre povos guerreiros de cultura wiccan, como os celtas e os vikings. Daí encontrarmos ainda hoje uma maior tradição e visibilidade da tatuagem em países que tiveram nas suas origens este tipo de culturas pagãs e esotéricas, por comparação com os países da velha Europa católica, como Portugal. Se a tra- dição católica acabou por nunca conseguir impedir totalmente o acto de marcar o corpo, limitou-o notoriamente, por comparação com os países de tradição protestante (países escandinavos, Países Baixos, Alemanha, Reino Unido, ou até mesmo os EUA).

De acordo com a tradição popular e alguma história social acu- mulada — muito mais relatada do que documentada, segundo al-

guns historiadores (Fleming 000) —, foi em finais do século xviii

que as marcas corporais começaram a popularizar-se no contexto da sociedade ocidental europeia, aquando das expedições marítimas à descoberta do «novo mundo», empreendidas entre cruzadas, des-

cobertas e colonizações.1 A tatuagem e o brinco passaram então

1 Praticamente toda a bibliografia específica sobre marcas corporais faz refe-

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a constituir uma importante parcela simbólica da experiência de navegação, difundindo-se não só entre os seus protagonistas mais directamente implicados (ou seja, as tripulações dos navios), como também, por contágio ou mimetismo, entre as respectivas redes de relações sociais (Bradley 000).

A partir daí criaram-se as condições sociais e culturais para a consolidação do processo no âmbito do qual as marcas corporais foram sendo socialmente construídas como estigma, já não no sentido religioso do termo, mas como evidência ou característica corporal cuja leitura social induz um efeito de descrédito sobre quem o porta (Goffman 19 [193], 1). Ao peso do interdito re- ligioso juntou-se o ónus da distância cultural e social na percepção ocidental das marcas corporais, na medida em que representavam um encontro com o outro, ou seja, alguém que não é como «nós» e que, portanto, não é um de «nós» (Fleming 000, ).

Em primeiro lugar, o corpo tatuado representava um outro colonizado, primitivo, exótico, pré-moderno e pagão, encarnado no nativo tatuado e profusamente adornado — como refere Blanchard, «a diferença entre o colonizador e o colonizado está na textura da pele» (1991, 13). Reminiscências de um corpo incivilizado, em estado «selvagem», um corpo supostamente constrangido por poucas normas de comportamento, que dá expressão e satisfação imediata aos seus impulsos, emoções, desejos e necessidades mais básicos, sem a auto-restrição do «refinamento das maneiras» exi- gido pelo sistema de etiqueta que passa a controlar e a disciplinar as relações intercorporais das classes dominantes. De acordo com a visão «branca» e «burguesa» da Europa «civilizada» (Barkan e Bush

vários arquipélagos da Oceânia e descobriu a Nova Zelândia, como personagem histórica responsável pela emergência da tatuagem e de algumas formas de body

piercing na sociedade ocidental europeia. Conta-se, designadamente, a história de

que a etimologia da palavra tatuagem está associada ao fonema tatau utilizado no Taiti para descrever o acto de desenhar no corpo, remetendo-a para os diários das viagens do capitão Cook. O fonema conserva na duplicação do radical ta a encenação do ritual de picar, golpear repetidamente a pele, com o fim de intro- duzir dermicamente os corantes que darão forma aos traços (Utanga e Mangos 00; Va’a 00). Há, no entanto, quem refute esta explicação mais popularizada, na convicção (não apenas assumida mas devidamente documentada) de que «a prática [da tatuagem] não foi importada para o Ocidente como resultado de um encontro colonial com os «primitivos», sendo um fenómeno cultural do antigo Mediterrâneo, da Europa e da América do Norte» (Gustafson 000, 1). É este o argumento forte de alguns textos presentes nas colectâneas organizadas por Jane Caplan (000) e Arnold Rubin (19).

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199; Elias 199 [1939] e 1990 [1939]), o corpo tatuado represen- tava a barbárie, lamentando-se não apenas um gosto esteticamente deplorável, como a indiferença e falta de sensibilidade à dor.

Ao mesmo tempo, o corpo tatuado encarnava também um outro marginal, na medida em que, no processo de importação ocidental das marcas corporais, a sua apropriação se localizou, em grande medida, dentro das culturas populares urbanas, figurando entre marinheiros, estivadores, prostitutas, reclusos, membros de gangs e mafias, a par de outro tipo de malandros. Até meados do

século xx, sujeitos extensivamente tatuados eram expostos em

freak-shows de circos e feiras itinerantes,13 ao lado de anões, gi-

gantes, gémeos siameses, mulheres barbadas e outras bizarrias corporais e curiosidades animais. Eram corpos que também se vislumbravam por entre bairros populares de boémia, pobreza e marginalidade, onde se fixaram os primeiros estúdios dos profissio- nais que até aí, em regime itinerante, vendiam os seus serviços aos protagonistas e clientes daqueles espectáculos do bizarro. Apesar de constituir uma actividade bastante comercial e rentável, a tatua- gem permanece marginal, praticada no âmbito de uma clientela restrita, habitante ou frequentadora desse «meio de becos e de facadas» (Rio s. d., 1):

Os adultos, depois de inscritos na armada e no exército e, em maior proporção, seguidamente à permanência nas cadeias, é que se entregam à prática com mais frequência. Nas mulheres a tatuagem aparece raramente e, quando tal acontece, é devido à convivência com tatuados e violentadas por eles; está neste último caso uma mulher que habitava à Ribeira [Porto] à qual haviam desenhado a agulha, nas coxas e no ventre, enormes barcos de vela. Os símbolos amorosos e as iniciais do nome dos amantes são a tatuagem comum no número diminuto de mulheres das quais pôde haver notícia […] Do que pre- cede e do que vai seguir-se poder-se-á inferir a moralidade do maior número dos tatuados. A multiplicidade, a sede, de ordinário escolhida

13 Muitas vezes nativos capturados, mas também marinheiros aposentados

que encontravam nestes contextos o seu ganha-pão contando histórias acerca de supostas aventuras junto de «selvagens» perigosos e pagãos por quem haviam sido raptados, reafirmando e confirmando todos os estereótipos sobre as culturas ditas «primitivas». Mais tarde, a partir do início do século xx, de forma a conceder

maior exotismo e erotismo a esses espectáculos, mulheres extensivamente tatua- das, frequentemente as esposas e namoradas dos donos dos circos, começaram a ser o pólo de atracção. A este propósito, v. Atkinson (00 e 003, 33-3), DeMello (000, 3-9) e Mifflin (199). Sobre o modo de produção, promoção e apropriação deste tipo de espectáculos «do exótico», v. Bogdan (1994), Gil (1994), Oettermann (000) e Tucherman (1999, 1-13).

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nas regiões do corpo vulgarmente ocultas, a intenção pornográfica de uma grande percentagem de desenhos, denunciam a insensibilidade à dor, o impudor e a obliteração, ou melhor, a ausência de elevação moral da maior parte dos tatuados [Peixoto 1990, -4].

Era mais usual no nosso país nos antigos tempos que alguns ho- mens de certa categoria, como soldados, marinheiros, alguns homens do campo e mesmo da classe baixa das cidades e vilas imprimissem no corpo, e de ordinário nos braços e no peito, diferentes figuras, especialmente a de um crucifixo, a imagem de Nossa Senhora e um chamado signo de Salomão, etc. As prostitutas da terceira ordem, que vivem com os soldados e com os marujos, os imitam e adquirem estes costumes [Cruz 194 (141), 111-11].

Ainda que, na mesma época, a tatuagem e algumas formas de body piercing também tenham sido experimentadas por personagens distintas pertencentes a estratos sociais mais elevados — quer da aristocracia tradicional europeia, quer da alta sociedade americana, enquanto signo de excentricidade e luxo, bem como de distância irónica perante o rigor dos códigos cortesãos e de celebração do

carisma pessoal e poder político dos respectivos portadores14 —, a

burguesia tendia a olhar para as marcas corporais voluntárias como um indício socialmente inquietante.

Tanto mais quanto, na viragem para o século xx, a associação

entre tatuagem e marginalidade acaba por se institucionalizar no discurso médico e jurídico através dos tratados elaborados por al- guns criminologistas, entre os quais o de Cesare Lombroso (19), criminalista italiano e professor de jurisprudência médica em Turim, bem como o de Alexandre Lacassagne (11), cirurgião da armada francesa e professor de jurisprudência em Lyon. Ambos se de- bruçaram sobre os indícios físicos da delinquência, entre os quais destacam o uso da tatuagem «como sinal de criminalidade inata, mostrando a insensibilidade dos criminosos à dor e o seu gosto atávico pelo ornamento» (Rocha 19, 101), tal como o «homem primitivo», o «selvagem». Deste modo, o que começou por ser visto como mera curiosidade e exotismo é tornado expressão corporal de uma patologia criminal, legitimando jurídica e medicamente o

descrédito social em que as marcas corporais haviam caído.1

14 Atkinson (003, 33); Blanchard (1991, 14); Borel (199, 1-10); Bradley

(000); Fisher (00, 9); Guest (000, 101); Le Breton (00, 34).

1 O principal estudo desenvolvido em Portugal neste domínio é de Álvaro

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Ainda hoje alguma literatura médica no âmbito da psiquiatria e da psicologia associa a decisão por este tipo de práticas a de- terminados perfis supostamente tidos como psicopatológicos ou

com problemas de adaptação às normatividades social ou sexual,1

como a personalidade anti-social, o comportamento agressivo e hostil, a automutilação, o sadomasoquismo, a homossexualidade e outras «dificuldades de ajustamento à sexualidade heterossexual»

(Favazza 199 [19], 13).1 O corpo marcado é assumido, no

âmbito deste tipo de literatura, como revelador de uma identidade «profunda», «verdadeira», «neurológica», à qual o sujeito marcado não pode escapar e que a sua pele deixa transparecer.

A pele marcada funcionaria, assim, como «informação objecti- va», texto ideográfico disponível na sua suposta literalidade, uma forma de exegesis e diagnosis dermográfica de personalidades com predisposição para desordens que se poderiam manifestar sob for- mas patológicas e/ou criminosas. A institucionalização médica e jurídica desta visão essencialista, naturalista, normativa e funciona- lista da relação entre identidade e corpo, que reenvia as marcas para o âmbito dos comportamentos socialmente anómicos (da patologia psicológica, do desvio social, da delinquência, da criminalidade e da «perversidade» sexual), pesou fortemente na reputação social da sua prática, solidificando o estereótipo negativo que persiste em sobreviver-lhes no Ocidente.

Em alguns contextos, as marcas corporais foram ainda utiliza- das, formal e informalmente, como signos de infâmia (Le Breton 00, ; Jones 000, 1). A par de outros dispositivos através dos quais a lei era inscrita nos corpos (instrumentos de tortura, de encarceração, etc.), «maquinaria que transforma os corpos indivi- duais em corpos políticos» (Certeau 190, 14), a tatuagem tam- bém participava em sistemas esclavagistas e penais como forma não só de punir comportamentos socialmente disruptivos, como também, sobretudo, como meio de sujeição, ao classificar, identi-

ficar e perenizar uma condição social dominada.1 Correspondiam

1 V., por exemplo, Claes e Vertommen (00), Favazza (199 [19]) e

Putnins (00).

1 Sobre a perspectiva psicopatológica da marcação corporal desde a sua

construção até à sua reprodução na actualidade, v. Favazza (199 [19]), Hewitt (199), Jeffreys (000), Pitts (1999 e 004), Strong (199) e Sullivan (001).

1 Sobre a utilização das inscrições corporais neste tipo de sistemas, v. Ander-

son (000), Atkinson (003, 3-39), DeMello (1993), Gustafson (000), Jones (000), Kent (199), Maxwel-Stewart e Dufield (000) e Schrader (000).

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a números, letras ou figuras geométricas tatuados na pele, inscri- ções de valor possessivo ou judiciário com acção proprietária ou punitiva sobre determinados grupos sociais (escravos, criminosos,

desertores, minorias étnicas e sexuais19), destinadas a distinguir os

indivíduos livres dos submetidos.

Em algumas instituições totais (Goffman 199), contudo, o sen- tido judiciário e proprietário das marcas viu-se invertido quando as suas tradicionais vítimas começaram a incorporá-las voluntaria- mente, prática que veio a adquirir bastante popularidade dentro das prisões, por exemplo. Aí o seu valor estigmático acabou por ser subvertido e transubstanciado em valor emancipador. A resistência à dominação pode tomar diversas formas, uma das quais através da apropriação dos mesmos artefactos que simbolizavam dominação, mas aqui e agora investindo-lhes estruturas de sentido em oposição, ou melhor, em negação das convencionais. A acção, ao tornar-se voluntária e já não imposta, torna-se assim disruptiva.

Os reclusos são propriedade do Estado, o qual, objectivamente, tem legitimidade para administrar punições sobre os corpos encar- cerados (Foucault 1999 [19]). Se no seu início a tatuagem inte- grava o modelo de punição e vigilância do corpo recluso, quando foi abolida, a sua utilização passou a ser frequentemente voluntária por parte dos reclusos, como forma expressiva de estes reivindi- carem a propriedade do seu corpo individual, actuando como uma poderosa manifestação subjectiva de questionamento da proprie- dade corporal do Estado. Em contextos de reclusão, por definição altamente disciplinados e vigiados, onde se espera que os corpos reajam dócil e receptivamente aos seus apertados mecanismos de controlo, vigilância e disciplina, marcar deliberadamente o corpo através de tatuagens, branding ou escarificações, passou a corres- ponder a um acto de resistência simbólica e de emancipação pessoal contra os processos de «mortificação do eu» (Goffman 19, -

-) característicos desse tipo de instituições.0 A prática de marcar

19 O caso da marcação dos judeus nos campos de concentração durante a

Segunda Guerra Mundial (a par de ciganos e de homossexuais) revestia-se de uma humilhação acrescida, na medida em que, como vimos, o Velho Testamento proíbe veementemente as marcas no corpo.

0 Segundo Manuela Cunha, «a regulamentação marca o arbítrio da instituição

sobre as reclusas — tanto mais ostensivo quanto se exerce sobre o seu corpo ou