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4.2 Do dobramento político.

4.2.3 Da linguagem em perda Kafka

Segundo Steiner, o termo ‘kafkiano’ conota no mundo de hoje – inclusive para aqueles que nunca leram Franz Kafka (1883-1924) – “o que é desumano nesses nossos tempos” (2001, p. 243), tomando como exemplo O processo, no qual “a prisão de Joseph K. [personagem principal do livro], os tribunais indecifráveis, sua morte literalmente bestial constituem o alfabeto com que se escrevem as políticas totalitárias de nossa época” (2001, p. 243); situação que, segundo Hurtado, pode ser reconhecida na peça chilena do ICTUS, sendo uma forte denúncia do aparato letal da ditadura chilena. Tomando O processo como exemplo emblemático, Steiner evidencia outra face da complexa obra do autor tcheco: se também vê espelhada na obra o sistema macabro dos fascismos, o autor comenta ainda que “a ficção de Kafka convida o ser humano perplexo a decifrá-la e faz desse convite uma armadilha” (2001,

53 Interessante é a comparação realizada por Mostaço entre esta peça de Guarnieri e a peça Pano de Boca de

Fauzzi Arap, onde descreve as diferenças de suas dramaturgias, e na medida em que vai demonstrando a plurivocidade da última vai evidenciando a univocidade da primeira (1982, p. 153-162). É isto que aqui está em jogo, porém, o contexto ditatorial vai evidenciar o porquê da univocidade se tornar aqui um contra-sentido para o mesmo teatro de esquerda, na mesma medida em que entendia esta univocidade como a verdade.

54 Esta peça do escritor chileno, nascido em Buenos Aires, foi feita filme por Roman Polanski em 1994, o que

98 p. 243). Qual é a armadilha? É que ela desconfia de seus próprios modos de representação – já se verá o quanto isto pode ser significativo para os teatro(s) da virada.

Há em Kafka, segundo Benjamin, uma desconfiança em relação à tradição, já que esta se encontra doente55 e não carrega mais nenhuma verdade que possa ser transmitida em um mundo moderno, completamente burocratizado e sombriamente administrativo – como ocorre em O processo, no qual Joseph K. é preso (embora não em uma prisão concreta) e submetido a um processo judicial sem saber os motivos dessa apreensão. E assim o protagonista segue em uma interminável sucessão de procedimentos legais constantemente adiados e cujos motivos jamais são explicados. Pode-se ler aqui uma alegoria da escrita literária, entre outras (como por exemplo, as de porte religioso),56 onde a mesma estrutura representacional utilizada por esse romance – labirínticos caminhos narrativos (processos judiciais) que não chegam a nenhuma parte, em um sem fim de pequenas histórias sem acabamento – nunca entrega seu fundamento, seu sentido último. Por isso não é possível construir uma tese, mas somente comentários acerca dessa obra; por isso ela fracassa, nunca conseguindo entregar a sua verdade.

A desconfiança para com a representação, sua impossibilidade, é o que torna Kafka uma figura fracassada, diz Steiner a partir de Benjamin – único pensador, que, em sua opinião, entendeu densamente o escritor tcheco. Se a maioria dos estudos tenta encaixar as obras deste autor em teorias psicanalíticas, políticas ou teológicas, Benjamin centrou sua análise justamente na impossibilidade de Kafka em levantar qualquer tese sobre estes temas. Pela configuração em labirinto de suas obras, diz Benjamin, “as respostas [de Kafka], muito ao invés de nos esclarecer, nos distanciam dela. É essa estrutura, da resposta distanciando da pergunta, que Kafka buscou, encontrando-a por vezes na deslocação ou no sonho” (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 180).

55 Benjamin cita um trecho de Kafka, onde este comenta a sua visão de um outro Abraão, um outro do Patriarca

da tradição judaica, onde este não pode assumir o papel que lhe foi outorgado: “Posso imaginar um outro Abraão, que não chegaria evidentemente a papel de Patriarca, nem sequer a negociante de roupas usadas, que se disporia a cumprir a exigência do sacrifício, obsequioso como um garçom, mas que não consumiria esse sacrifício, porque não pode sair de casa, onde é indispensável, porque seus negócios lhe impõem obrigações, porque há sempre coisa que arrumar, porque a casa não está pronta, e sem que ela esteja pronta não pode sair, como a própria Bíblia admite, quando diz: ele pôs em ordem sua casa” (1993, p. 154).

56 Não se trata em Kafka, como aponta Benjamin, de superar ou negar a tradição judaica, no esvaziamento da

verdade no mundo moderno, já que o paradoxal e surpreendente é que “este mundo de experiências recentes (modernidade) tenha lhe sido trazido pela tradição mística.” (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993, p. 302) Nesta tradição existe a diferença entre “hagadá (o corpo infinito dos comentários) e halakhá (a lei, a norma, a doutrina” (GAGNEBIN, 2007, p. 69), com a qual Benjamin vai pensar a literatura de Kafka, em um mundo moderno. Neste mundo, os comentários são o que nos resta já que não existe sentido último na lei, diz Benjamin. Ver (BENJAMIN, 1993) (BENJAMIN; SCHOLEM, 1993), (ROCHLITZ, 2003), (GAGNEBIN, 2007).

99 O que está em jogo é uma “impossibilidade de narrar” (GAGNEBIN, 2007, p. 66) a derrota, já que não há teses que possam dar-lhe garantia de sentido pleno, esta é irredutível. Significativo então é o comentário de Ricardo Piglia, para quem o escritor tcheco “Estava atento ao murmúrio doentio da história” (1992, p. 205, “tradução nossa”).57

Lo que está en el Aire, ao contrário, confia na sua linguagem discursiva, não percebendo que se encontra presa em malhas retóricas que o cegam e negam a sua derrota. Esta foi a cegueira de muitos grupos de esquerda latino-americanos frente à maquinaria mortal das ditaduras, como atestam alguns estudiosos do teatro latino-americano (HURTADO, 1987; GEIROLA, 2000; GRIFFERO, 1996) – e já se verá o desencanto que isso lhes provocou em tempos democráticos e neoliberais. Idelber Avelar, crítico literário brasileiro, reflete acerca do tema da derrota na literatura latino-americana, principalmente do Brasil, Chile e Argentina, sendo sua contribuição decisiva para compreender esta problemática teatral. Entretanto, é válido insistir que não se trata de negar a verdade dos fatos – papel de capital importância histórica do teatro de esquerda, assim como da literatura, sobretudo a de gênero do testemunho, pelo “peso denunciatório e inclusive judicial dos textos testemunhais produzidos sob condições de opressão” (AVELAR, 2003, p. 83).

Ainda que no texto chileno haja um jogo de quadros, de mudanças de ambientes, de tempos (cenas no presente e cenas atemporais) em uma espécie de montagem, a seqüencialidade dos mesmos reforça uma estrutura linear e objetiva. É o que Mostaço, analogamente, critica em Um grito parado no ar, de Guarnieri e Boal, que apesar do jogo metalingüístico de teatro no teatro (tratando da história de uma companhia de teatro e de suas vicissitudes em tempos de ditadura), obedece a uma estrutura linear, unívoca, onde toda ruptura possível pela meta-teatralidade é submetida a uma visão racionalista do fazer teatral, para reforçar uma mensagem. É na ‘lógica linear’ da peça que “a própria metalinguagem encontra-se inteiramente ao serviço da organização lógica de um mesmo sentido unívoco” (MOSTAÇO,1982, p. 157). Neste mesmo sentido reflete Geirola acerca do teatro de esquerda latino-americano e sobretudo o da criação coletiva, quando acredita que nesta:

“se vive euforicamente, no imaginário, na ilusão de ser sujeito. A racionalidade burguesa que se quer impugnar sai pela porta e entra pela janela, ao mesmo tempo em que se segue impondo como instância de decisão para a construção dos textos dramáticos e os textos espetaculares: exigências de claridade, coerência, continuidade – cujos correlatos opositivos de obscuridade, incoerência e descontinuidade há que atribuí-los à ‘crise da razão’ do povo alienado” (2000, p. 250, “tradução nossa”)58

57 Do original em espanhol: “Estaba atento al murmullo enfermizo de la historia” (PIGLIA, 1992, p. 205) 58 Do original em espanhol: “se vive eufóricamente, en lo imaginario, la ilusión de ser sujeto. La racionalidad

100 A pretensão do teatro de esquerda de ver a si mesmo como o condutor da opinião política, evidenciada por Hurtado, é mais do que um didatismo moralista, vê-lo mais detidamente é vê-lo sob um efeito utópico que se tornou narcótico. Ou seja, é obliterar que seu preceito mais importante, a sua face anti-burguesa, estava na realidade preenchido de emblemas burgueses. E obliterou outra face mais. A missão pela verdade a que se propõem estas peças, além da verdade moral, é – como já foi ressaltado positivamente – a verdade dos fatos; mas, segundo Avelar, “a verdade factual, entretanto, não é ainda a verdade da derrota” (AVELAR, 2003, p. 83). O que se quer dizer, então, com a palavra derrota? Esta tem relação com o fragilizado da memória, e nesta, a história, como foi dito com Oyarzún, se torna campo conflitante cuja marca indelével é a instância do sofrimento. Desse modo, são instigantes as palavras de Gagnebin, quando comenta acerca da realidade “de um sofrimento tal que não pode depositar-se em experiências comunicáveis, que não pode dobrar-se à junção, à sintaxe de nossas proposições.” (2007, p. 63).

Aqui se encontra a verdade da derrota que, segundo Avelar, alguns autores latino- americanos começam a assumir, sobretudo, em tempos pós-ditatoriais,59 sendo esta reflexão importante também acerca do teatro do continente. O que é imperativo questionar, diz Avelar, é a ‘retórica triunfante’ com a qual se rodeou a literatura testemunhal,60

ditatorial e pós- ditatorial, em um misto de cristianismo e discurso falocêntrico; fazendo Geirola algo análogo com o teatro de esquerda do continente.61 Somente uma literatura, diz Avelar – acrescenta-se aqui, um teatro –, que seja capaz de lidar com a impossibilidade de narrar, questionando o seu estatuto retórico, discursivo, pode manter aberta a porta messiânica da história. Caso contrário, “o esquecimento pós-ditatorial [e Avelar estende esta verdade da derrota da América Latina não só às últimas décadas, mas aos últimos séculos] é facilitado na medida como instancia de decisión para la construcción de los textos dramáticos y los textos espectaculares: exigencias de claridad, coherencia, continuidad – cuyos correlatos opositivos de oscuridad, incoherencia y discontinuidad hay que atribuir a ‘la crisis de la razón’ del pueblo alienado” (GEIROLA, 2000, p. 250)

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Crítico para com os recursos retóricos dos autores do gênero de testemunho (e também crítico com o destacado movimento do realismo fantástico, que caracteriza o Boom latino-americano de literatura no âmbito mundial), Avelar, comenta sobre autores da Argentina, Brasil e do Chile, que de uma ou outra forma, elaboram suas escrituras literárias sem negar a derrota, partindo analogamente a Kafka, do fracasso da literatura, da impossibilidade de narrar. O pastiche, a multiplicidade, o apócrifo, a dissolução, entre outras, são noções com as quais se pode refletir acerca desta literatura; não mais ligada a uma autoria centralizada no sujeito, na identidade. Avelar cita aos autores brasileiros, Silviano Santiago e João Gilberto Noll, aos argentinos Ricardo Piglia e Tununa Mercado, aos chilenos Diamela Eltit e Raúl Zurita, entre outros, destes três países. (AVELAR, 2003)

60 Avelar se refere, entre outros, a: Jacobo Timerman, Alicia Partnoy, Fernando Gabeira, Hernán Valdés (2003,

p. 77-84).

61 Sobre as ‘práticas teatrais da utopia’, segundo as chama Geirola, ele comenta: “Esta configuración religiosa y

masculina, con las que se imagina la revolución [...] diseña posiciones que reproducen, como una matriz simbólica, los postulados del enemigo” (2000, p. 178).

101 em que a narração da atrocidade tem lugar numa linguagem que não se pergunta por seu estatuto retórico e político” (2003, p. 83), podendo assim cair, sem percebê-lo, em malhas retóricas dominantes. É imprescindível questionar então, como diz Gagnebin, ‘a sintaxe de nossas proposições’ (2007, p. 63).

Pode-se então retomar a citação de Hurtado ao comentar a peça do ICTUS: aqui os elementos formais se tornam basilares. No foro em 1986, a autora invoca uma possibilidade de lidar com o desconcerto social, ela pergunta:

“Por que não confiar na estrutura e expressividade teatral como contentora das propostas, e na capacidade de compreensão (inclusive intuitiva) delas pelo público? Por que reforçá-las com uma mensagem final […] Estamos em um momento de transição, ainda agarrados ao teatro dos ‘70 que teve o seu momento e sua função, do qual temos nos libertado somente de forma parcial na procura da ambigüidade, da contradição e das marcas profundas do conflito e situação social desta época. E essa complexidade tem que encontrar e confiar na sua linguagem de expressão teatral.” (1987, p. 105)62

Hurtado propunha modos de leitura que pudessem perceber a potência poética de peças consideradas herméticas e formalistas pelo teatro de esquerda, devido às radicais transformações cênicas que provocavam. Aqui Muguercia percebe uma radical virada, que segundo seu entender vinha se dando desde meados da década de 1980 no continente latino- americano. Este teatro, ao afastar-se do didático-político, começa a trabalhar a partir de posturas mais subjetivas e individuais, abrindo espaço para o surgimento de propostas cênicas cuja força imagética opera uma polissemia e ambigüidade estranha e inexistente no teatro político anterior. A autora nomeia esta operação no teatro do continente como Viagem à Subjetividade, pesquisando modos teatrais cuja principal força advém de um entendimento ‘antropológico’ do teatro, em contraposição ao entendimento ‘sociológico’ do teatro de esquerda. Neste contexto se começa a esboçar, tanto na prática como na teoria teatral latino- americana, uma maior confiança, como solicitava Hurtado, na linguagem cênico-teatral.

62 Do original em espanhol: “¿Por qué no confiar en la estructura y expresividad teatral como contenedora de las

propuestas, y en la capacidad de comprensión (incluso intuitiva) de ellas por el público? ¿Por qué reforzarlo con el mensaje final […] Estamos en un momento de transición, todavía pegados con el teatro de los ’70 que tuvo su momento y su función, del cual nos hemos liberado sólo parcialmente en la búsqueda de la ambigüedad, la contradicción y las marcas profundas del conflicto y situación social de esta época. Y esta complejidad tiene que encontrar y confiar en su lenguaje de expresión teatral.” (HURTADO, 1987, p. 105)

102 4.3 Da preeminência da cena