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3.2 Da visão borgeana do aleph

3.3.4 De fragmentos cênicos

O fragmento implica em uma dissolução da cadeia de acontecimentos do historicismo, acontecimentos que ficam flutuando no ar agora caótico da história, sem solução de continuidade (como percebe assombrosamente o anjo da história). Há assim um saber advindo de uma perda. O fragmento lida não só com a quebra do total, mas, sobretudo, com o vazio que dele resulta; nele “existe o residual, o que subsiste do que foi perdido” (L’YVONNET, In: BAUDRILLARD, 2003, p. 42). Na realidade, o fragmento dá sinais acerca dos resíduos provocados dessa visão teleológica da história, as histórias que foram negadas em prol do progresso, as vozes emudecidas. As ‘vozes mortas’, dirá Beckett no seu emblemático Esperando Godot, são elas que sussurram quebradamente, ‘como asas, como cinzas, como ruídos’28, no entrechocar dos fragmentos. Elas são as reminiscências.

Desse modo, o teatro de tese e didático (parente do pensamento progressista e teleológico), se vê completamente desacreditado. Pense-se no teatro didático europeu dos anos 20 e 30, pense-se no teatro político latino-americano dos anos 60 e 70; projetos utópicos. Não há como dirigir um discurso pleno e objetivo à platéia, querendo conduzir o imaginário para um sentido que se pretende verdadeiro. Isto é não deixar espaço ao intempestivo. É não deixar espaço à livre interpretação. É não deixar espaço ao borboletear enigmático das reminiscências, aos fragmentos e mortos secretos e/ou sociais de cada um. Acaso não é neste contexto que se pode situar o teatro contemporâneo?

3.3.4 De fragmentos cênicos

Para realizar a obra Os mansos, o diretor argentino Alejandro Tantanian diz que as linhas que sustentaram a criação dessa peça foram, entre outras referências,

“uma garrafa de vodka; um idioma perdido; alguns labirintos da memória; um bolso cheio de caramelos; a guerra; Rússia e depois Alemanha e depois Argentina; [...] um conto sobre Cristo que nunca foi contado; uma casa na Argentina e uma sopa russa feita com feijões vermelhos” (TANTANIAN, 2005, “tradução nossa”).29

Também no trabalho cênico do diretor norte-americano Bob Wilson diversas e múltiplas referências dão forma às suas peças: “câmara lenta, ondas cerebrais, cochilo, design

28 Alguns textos soltos do diálogo entre Didi e Gogo (primeiro ato) de Esperando a Godot, de Samuel Beckett. 29

Do original em espanhol: “[...] una botella de vodka; un idioma perdido; algunos laberintos de la memoria; un bolsillo lleno de caramelos; la guerra; Rusia y después Alemania y después Argentina; […] un cuento sobre Cristo que nunca se contó; una casa en Argentina y una sopa rusa hecha con porotos rojos. (TANTANIAN, 2005)

68 arquitetônico, pintura, rock progressivo, matemática, terapia, silêncio, teatro ambiental, computadores, poesia concreta, espaços e galerias de arte, drogas, sexo, [entre outros]” (GALIZIA, 2004, p. XIX).

Sánchez (1994, p. 101 – 118) ressalta esta tendência à fragmentação no teatro contemporâneo pelo menos a partir da segunda metade do século XX, com os trabalhos do diretor polonês Tadeusz Kantor (1915 – 1990), do dramaturgo e diretor alemão Heiner Müller (1929 – 1995), da coreógrafa alemã Pina Bausch (1940 – 2009), entre outros. No trabalho desses artistas há uma junção entre memória individual e imagens cênicas. Kantor, por exemplo, utiliza bonecos, manequins e cadeiras velhas – objetos de status inferior, triviais, abandonados – que, pela sua concretude – tão forte como o da sala de teatro – carregam uma força poético-cênica; os atores devem também abdicar de serem seres sagrados, os donos da palavra e imagem e igualar-se aos objetos, para dar passagem ao que esse diretor denomina ‘Teatro da morte’ (KANTOR, 2008, p. 195 – 222). Acontece na peça A Classe Morta (1974) um acúmulo de restos em cena. Há um trabalho com a ‘densidade das imagens’, que são carregadas de histórias, de memórias, de experiências. Estas não se mostram de forma clara e objetiva, ao modo de uma análise científica, mais como fantasmas e sonhos, com forte influência do surrealismo. O que se pretende mostrar é “[...] um material que não acaba por se submeter à forma, é a fragmentação própria, a inquietação própria. Fica ao público a tarefa de realizar a configuração ou permanecer no caos das impressões” (SÁNCHEZ, 1994, p. 106, “tradução nossa”).30

São numerosos fragmentos de uma simetria estranha, ou definitivamente dissimétricos, que justapostos vão configurar formas e estilos cênicos diferentes para cada criador. O que se gera é uma cena em fluxo, talvez o extremo desdobramento do sonho de Meyerhold, profeta do teatro, de criar espetáculos inacabados, com brechas, onde o espectador fosse o quarto criador, em conjunto com o trabalho criativo do autor, diretor e ator. Meyerhold vai dizer que “A biografia de um artista autêntico é a história do seu eterno descontentamento consigo mesmo” (1992, p. 319, “tradução nossa”).31 É desta forma que o artista se liga à sua época, sem concessões para indagar nas zonas sombrias do seu meio social e histórico; Meyerhold faz o comentário anterior tendo como referência a Mayakovski, junto com o qual montou Mistério Buffo (1918), motivo de diversas críticas por parte do meio

30 “Do original em espanhol: “[...] un material que no acaba de someterse a la forma, la fragmentariedad misma,

la inquietud misma. Queda a público la tarea de cumplir la configuración o permanecer en el caos de las impresiones.” (SÁNCHEZ, 1994, p. 106)

31 Do original em espanhol: “La biografía de un artista auténtico es la historia de su eterno descontento consigo

69 artístico russo conservador que os acusou de mesclar o político com a arte, de serem formalistas e ininteligíveis para o povo, críticas que terminariam por excluir ambos os artistas do meio teatral russo.Neste contexto quem tem a palavra é a imagem, é a cena, e não uma intenção social, política ou espiritual prévia; trata-se de um desafio poético e crítico. Esta foi uma significativa premissa cênica libertária de Meyerhold32:

“A tarefa dos personagens em ação sobre o cenário não é em absoluto fazer a demonstração de uma idéia qualquer do autor, do diretor de cena ou do ator. A luta e os conflitos cênicos não são teses às que se contraponham antíteses. No é o que o público vem buscar no teatro. [… ele…] aspira a um teatro capaz de arrastar ao mesmo tempo a inteligência e o coração.” (1992, p. 270-271, “tradução nossa”)33

Há aqui a concepção artística teatral de uma cena que se abre e estimula a imaginação e o corpo do espectador, imagens que o impactam sinestesicamente, convidando-lhe ou provocando-lhe o ato de interpretar. As cenas que se sabem fragmentadas – pensando no teatro contemporâneo – também recolhem os estilhaços, esse amontoado de ruínas da história, com a esperança de poder acordar os mortos, dar outros significados ao passado, que ponham em cheque os artifícios do presente para obliterá-lo. O que significa, então, interpretar? O roteiro da emblemática montagem A Clase Morta de Kantor diz:

“Uma sala de aula,

jorrando das profundezas de nossa memória, algum lugar de um recanto,

umas fileiras pobres

BANCOS escolares de madeira [...] os ALUNOS, velhos rabugentos à beira da tumba, os ausentes...” (2008, p. 207)

Na fragmentação aqui mencionada, que articula a cena ao modo de um mosaico, é precisamente onde se dá o movimento alegórico; tanto o retórico, devido à articulação e desenho desses fragmentos no espaço da cena, como o hermenêutico, porque essa disposição

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Vsevolod Meyerhold (1874 – 1940), diretor de teatro russo, inaugurou um movimento teatral no início do século XX que apostava inteiramente na evidência da teatralidade em cena. O caso de Meyerhold se tornou emblemático, porque suas idéias cênicas da ‘convenção consciente’ (ou a teatralidade consciente), da biomecânica, da cinematificação cênica, acompanharam o processo de revolução social da Rússia de 1917, sendo ele um dos diretores mais importantes da época. Mas poucos anos depois, já no sistema russo stalinista, que se filiou esteticamente ao realismo socialista, Meyerhold foi acusado de formalista. Acusação grave, porque significava que não estava servindo a revolução, que estava traindo sua pátria, deveria ser banido, como aconteceu em 1940, ano do seu fuzilamento e da negação de toda a sua obra e escritos. Qual é o alcance político de abrir o(s) conteúdo(s) de uma obra à visão particular do espectador? (HORMIGÓN, 1992, p. 37 – 112.

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Da versão em espanhol: “La tarea de los personajes en acción sobre el escenario no es en absoluto hacer la demonstración de una idea cualquiera del autor, del director de escena o del actor. La lucha y los conflictos escénicos no son tesis a las que se opongan antítesis. No es lo que el público viene a buscar al teatro. […ele…] aspira a un teatro capaz de arrastrar a la vez la inteligencia y el corazón.” (MEYERHOLD, 1992, p. 270-271)

70 dos fragmentos requer interpretação. Idelber Avelar, crítico literário brasileiro, vai chamar o procedimento do emblema34 barroco - no qual a alegoria se dá na relação entre uma imagem e uma frase - de proto-brechtiano (2003, p. 16), pois a frase que acompanha a imagem impede que esta seja naturalizada, instaurando muitas vezes um enigma que impede qualquer leitura ‘ingênua’ (ou literal) da mesma. O que Avelar percebe no emblema barroco do séc. XVII é o que Brecht consideraria mais tarde um dos recursos para a criação do efeito de distanciamento. Este impede que o espectador naturalize uma cena por meio de uma empatia subconsciente e perceba seus diversos planos e graus de convenção. O sonho de Meyerhold, neste contexto, se dá então quando todos os elementos teatrais são tomados como fragmentos que dialogam na cena, ao mesmo tempo em que se mostram como esses elementos (luz, figurino, espaço, etc.), no que Meyerhold chamou de ‘teatro da convenção consciente’. O importante é que a alegoria se dá, neste plano retórico-hermenêutico-teatral, “não por recurso a um ‘sentido abstrato’, e sim na materialidade de uma inscrição” (AVELAR, 2003, p. 16). Isto é basilar, porque expõe a força poética do teatro alegórico na sua qualidade cênica, na teatralidade, vendo-a como força material e não mais ideal; há assim a fuga de um idealismo lógico e/ou à teologia de fundo metafísico.