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3.2 Da visão borgeana do aleph

3.3.3 Do tempo barroco

É no Barroco que Benjamin descobre um sentimento efêmero da existência, o que lhe permitiu no início do século XX erguer uma leitura da história deslocadora do continuum temporal, vazio e homogêneo, do historicismo e do progresso. Logra perceber a história no que ela apresenta de transitório, na sua abismal precariedade – pobreza –, ao refletir na “superexcitação do desejo de transcendência [... que...] está na raiz dos acentos provocativamente mundanos e imanentistas do Barroco. Pois ele está obcecado pela idéia da catástrofe como antítese ao ideal histórico da Restauração.” (BENJAMIN, 1984, p. 89). Algo similar aponta Maravall, um dos mais agudos estudiosos do Barroco espanhol, delineando os jogos de poderes daquela época. Segundo o autor, houve uma mudança do Renascimento ao Barroco, passando-se de uma confiança extrema na capacidade criativa e racional do homem, na sua potência espiritual ascendente, para o seu contrário, quando,

em vez testemunhar a continuidade de um movimento ascendente, se desenhou diante dos homens o espectro da ruína e queda da monarquia, da miséria e da desagregação da sociedade, do desemprego e fome dos indivíduos, o choque teve de ser suficientemente forte para que vissem nisso uma ameaça e tornou-se necessário montar sólidas escoras com as quais sustentar a ordem tradicional (1997, p.71 e 72)

Forjou-se nesta época a idéia e a sensação de um mundo às avessas, sendo esta frase considerada como um dos importantes tópicos para descrever o Barroco. Tópico que fala de

65 uma serie de transformações sócio-culturais, no qual as mudanças sofridas desde o Renascimento vão provocar uma constante sensação de instabilidade. Não há nada seguro, o que há é uma oscilante desordem. A natureza agora, mais do que ser o sinal de um saber superior, se tornou decaída, triste, muda. Nada dura, nada é eterno, tudo é passageiro, tudo é um trânsito nesta vida. “‘Nada permanece na natureza’, afirma Saavedro Fajardo. ‘Não há coisa estável neste mundo’, escreve Francisco Santos. Tudo se altera: as coisas, os homens, suas paixões e caracteres, suas obras” (MARAVALL, 1997, p. 288). Em contraste com uma teleologia histórica, houve naquele momento, no mundo europeu,27 uma exasperada ‘intuição do efêmero’. Benjamin cita a devastação provocada pela guerra dos trinta anos na Europa (1618 – 1648) como um dos motivos desta ‘intuição’ (1984, p. 247), que denota a consciência do homem barroco frente à sua finitude. A partir daqui se pode dizer que a sua arte é imanente não só por ser instrumental, a serviço da contra-reforma, mas porque “exalta todas as coisas terrenas, antes que elas sejam entregues à consumação” (BENJAMIN, 1984, p. 90).

Há na arte barroca - o que é de interesse para pensar no teatro latino-americano contemporâneo - um olhar mundano às coisas da terra, um ater-se a contemplar os seus aspectos na sua materialidade, no que elas apresentam de objetos, de texturas, de cores, fora da ordem do classificatório, do instrumental. Este é um saber corpo – o ato que possibilitou pensar neste saber no teatro moderno foi Ubu Rei de Jarry com a encenação de Lugné-Poe – mas que é também, pode-se dizer justamente a partir de Jarry,um saber da ruína, como se viu com a expressão Po-logne (lugar nenhum). É assim que se pode conectar arte e história, no que esta tem de extemporâneo, já que é “Como ruína [que] a história se fundiu sensorialmente com o cenário” (BENJAMIN, 1984, p. 200). “Se com a morte, portanto, o espírito se libera, o corpo atinge, nesse momento, a plenitude dos seus direitos” (BENJAMIN, 1984, p. 240), assim também acontece com a história, que como ruína se liberta de todo peso teleológico e se assume como teatro, na plenitude do jogo cênico. Como diz Benjamin, “é a morte que cava mais profundamente a linha dentada de demarcação entre corpo e significação” (1986, p. 22). Se a história, no Barroco, faz sua intromissão ao teatro é porque este dá abertura aos seus

27 E não só no mundo europeu, também no latino-americano. A colonização provocou que a cultura deste

continente tivesse uma forte marca barroca: “A destruição do acervo cultural americano, a morte dos sábios índios, responsáveis pela alta cultura, acarretou a fragmentação de um rico universo conceitual. Este esfacelamento impediu que as comunidades índias que mantinham a sua unidade lingüística, revitalizassem o seu patrimônio cultural, comprimido em meio ao longo processo de expansão da língua espanhola. A estética barroca representa para o latino-americano um confronto constante com a morte, não apenas da transcendência, mas da energia que nutre a vida e que nos foi dada pela tradição indígena. Sem compreender a raiz do pensamento indígena e sem querer abandoná-lo, o latino-americano cria o mito do pensamento mágico, ao qual delega toda a sua ancestralidade. Para não abrir mão do mito, ele se torna anticapitalista e profundamente religioso.” (THEODORO, 1992, cap. 9)

66 fantasmas, suas ruínas, as quais podem ser lidas, significadas - mas sem sentido último, sendo esta sua marca de perda. As coisas, neste contexto, pertencem ao âmbito do inarticulável, fora de toda objetividade, seu sentido nunca é pleno, este é o mundo ao qual se aferra o pensamento e também o teatro alegórico do Barroco, por isso a ligação entre alegoria e ruína. Diz Benjamin: “Do ponto de vista da morte, a vida é o processo de produção do cadáver” (1984, p. 241)

Para Denilson Lopes, baseando-se nos estudos de Maravall, há uma proximidade muito forte entre o homem barroco (constituindo os inícios de um sistema social marcado pelo massivo e urbano e imerso em um universo cuja crise de valores foi radical) e o homem contemporâneo. E mais ainda, D. Lopes diz que o Barroco é crucial para a compreensão da contemporaneidade e frente às teorias que negam essa possibilidade argumenta (sem negar que se trata de dois tempos radicalmente distintos) que esta negação encapsula o Barroco em um ideal passado intocável, impedindo cruzamentos históricos que podem ser chave para entender o presente. Contudo, clarifica D. Lopes, ao pensar o Barroco para o presente não “se trata simplesmente de comparar fatos como a peste no século XVII, ou a Guerra dos Trinta Anos com o temor da Aids e o risco de uma hecatombe ecológica hoje em dia, mas de se perguntar como a catástrofe se constitui num dado da subjetividade contemporânea” (1999, p. 22). Isto é chave para analisar alguns dos fluxos da cena teatral aqui privilegiada denotando uma alteridade radical da história, trazendo à tona cenicamente um mundo quebradiço. A cena aqui se torna o lugar do fragmento, sendo isto o que está em jogo na alegoria e que move o teatro atual, um procedimento que advém de uma concepção barroca da arte.

O que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o estilhaço: essa é a matéria mais nobre da criação barroca. Pois é comum a todas as obras literárias desse período acumular incessantemente fragmentos, sem objetivo rigoroso [...] na incansável expectativa de um milagre. (BENJAMIN, 1984, p. 200)

Benjamin é agudo e categórico quando reflete a partir da figura – outra alegoria – do anjo da história. Este anjo tem seus olhos dirigidos para o passado e ali onde nós vemos o progresso e modernidade de uma nação, “onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos [à espera de um milagre?]” (BENJAMIN, 1993, p 226). O fragmento é frágil e descontínuo, um vazio, um fracasso, porque é impossível para ele alcançar a plenitude do absoluto.

67 O fragmento implica em uma dissolução da cadeia de acontecimentos do historicismo, acontecimentos que ficam flutuando no ar agora caótico da história, sem solução de continuidade (como percebe assombrosamente o anjo da história). Há assim um saber advindo de uma perda. O fragmento lida não só com a quebra do total, mas, sobretudo, com o vazio que dele resulta; nele “existe o residual, o que subsiste do que foi perdido” (L’YVONNET, In: BAUDRILLARD, 2003, p. 42). Na realidade, o fragmento dá sinais acerca dos resíduos provocados dessa visão teleológica da história, as histórias que foram negadas em prol do progresso, as vozes emudecidas. As ‘vozes mortas’, dirá Beckett no seu emblemático Esperando Godot, são elas que sussurram quebradamente, ‘como asas, como cinzas, como ruídos’28, no entrechocar dos fragmentos. Elas são as reminiscências.

Desse modo, o teatro de tese e didático (parente do pensamento progressista e teleológico), se vê completamente desacreditado. Pense-se no teatro didático europeu dos anos 20 e 30, pense-se no teatro político latino-americano dos anos 60 e 70; projetos utópicos. Não há como dirigir um discurso pleno e objetivo à platéia, querendo conduzir o imaginário para um sentido que se pretende verdadeiro. Isto é não deixar espaço ao intempestivo. É não deixar espaço à livre interpretação. É não deixar espaço ao borboletear enigmático das reminiscências, aos fragmentos e mortos secretos e/ou sociais de cada um. Acaso não é neste contexto que se pode situar o teatro contemporâneo?

3.3.4 De fragmentos cênicos

Para realizar a obra Os mansos, o diretor argentino Alejandro Tantanian diz que as linhas que sustentaram a criação dessa peça foram, entre outras referências,

“uma garrafa de vodka; um idioma perdido; alguns labirintos da memória; um bolso cheio de caramelos; a guerra; Rússia e depois Alemanha e depois Argentina; [...] um conto sobre Cristo que nunca foi contado; uma casa na Argentina e uma sopa russa feita com feijões vermelhos” (TANTANIAN, 2005, “tradução nossa”).29

Também no trabalho cênico do diretor norte-americano Bob Wilson diversas e múltiplas referências dão forma às suas peças: “câmara lenta, ondas cerebrais, cochilo, design

28 Alguns textos soltos do diálogo entre Didi e Gogo (primeiro ato) de Esperando a Godot, de Samuel Beckett. 29

Do original em espanhol: “[...] una botella de vodka; un idioma perdido; algunos laberintos de la memoria; un bolsillo lleno de caramelos; la guerra; Rusia y después Alemania y después Argentina; […] un cuento sobre Cristo que nunca se contó; una casa en Argentina y una sopa rusa hecha con porotos rojos. (TANTANIAN, 2005)