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A cena teatral configura um lugar onde reminiscências encontram uma morada. Contudo, não se trata de uma residência fixa, nem de um endereço - ou endereços - onde elas habitam. A cena lhes dá uma acolhida momentânea, fugaz, até a peça acabar. Não é possível saber a maneira exata como o espectador dialoga com elas durante o espetáculo, nem se esse íntimo diálogo continua ou morre uma vez que a peça tenha finalizado (e se continua, não se pode saber se é por muito ou pouco tempo). No entanto, o que importa é notar a possibilidade desse íntimo diálogo aberto pela arte teatral. Considere-se, por exemplo, a fala do diretor Ramón Griffero a respeito de sua encenação 99 La Morgue: “quebra-cabeça de múltiplas dimensões, unidas pela lógica das associações, que podem ser levadas até o infinito na imaginação do espectador” (1986).1

A peça, ambientada em um necrotério, foi montada em uma das épocas mais violentas da ditadura chilena, em 1986. O que imaginar da sensação e associações dos espectadores ao ver, quando começava o espetáculo, uma imagem onde alguns dos personagens, vestidos de médicos e com adereços de hospital, se movimentavam como um coro em câmera lenta, e em silêncio, durante aproximadamente dez minutos? Algo similar se pode dizer do espetáculo O Livro de Jó, montado em São Paulo-Brasil, em 1995, pelo Teatro da Vertigem, cujo espaço cênico consistiu em um hospital desativado. O que imaginar do impacto dessa peça no público ao considerar a peste do personagem bíblico Jó como metáfora de outra ‘peste’ contemporânea, a Aids, retratada por um ator nu e com o corpo ensangüentado, vagando pelos diversos espaços daquele hospital abandonado? Em outro registro, o que imaginar do espetáculo Chuá, do grupo baiano Dimenti, montado em 2004, quando os atores realizam movimentos emperrados e ridículos ao modo de uma estranha dança de personagens dementes, sendo acompanhados por uma música infantil,

1 Do original em espanhol: “puzzle de múltiples dimensiones, unidos aún por la lógica de las asociaciones, que

se pueden llevar hasta el infinito de la imaginación del espectador” (GRIFFERO, 1986). O texto corresponde à introdução de sua peça 99 La Morgue, escrita em 1986.

46 delicada e terna? Enfim, está-se falando de um tipo de teatro cujo procedimento espetacular passa pelo “fraturado, eclético, plurilíngüe, e [que] desborda as molduras de uma narrativa excessivamente reguladora do discurso” (MUGUERCIA, 1991, p. 98, “tradução nossa”).2

Pensar na relação entre teatro e reminiscência é pensar certamente em um fluxo indomável que atravessa a cena contemporânea e que possibilita perceber o jogo cênico, expondo a face vertiginosa da memória, vislumbrando nela um abismo caótico de referências – reminiscências – pessoais, históricas, estéticas, sociais, culturais, entre outras. Aqui começa a mescla, no teatro aqui estudado: memória e presente não são vistos como um antes e um depois do outro, nem tampouco um e outro, senão um no outro. E neste contexto, o que acontece com o futuro? O que se quer indagar ao relacionar teatro e reminiscência? Que relação se gera entre teatro e tempo ou - um dos seus desdobramentos - entre teatro e história? Aqui entra em jogo outro termo chave para este estudo: alegoria. Teatro, reminiscência e alegoria: tríade na qual vai se articular este postal, que traça um horizonte teórico de reflexão não somente acerca do campo teatral contemporâneo, mas como parte deste, também acerca dos modos de construção cênica e a teatralidade da cena latino-americana.

A cena teatral atual (na vertente que aqui se está estudando, cuja preeminência está no jogo cênico, que estimula sensações e associações, como dizia Griffero) é capaz de oferecer a possibilidade de vislumbrar o ‘inconcebível universo’, do modo como Borges (1988 – 1989) consegue ver no Aleph:

O que os meus olhos viram foi simultâneo: o transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. [...] vi uma pequena esfera furta-cor, de um fulgor quase intolerável. No início julguei-a giratória; depois compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. [...] Cada coisa (a lâmina do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. [...] vi o meu quarto sem ninguém, vi num escritório de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos multiplicado infindavelmente, [...] vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que há na terra [...] vi a circulação do meu sangue escuro, vi a engrenagem do amor e a transformação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi o meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objeto secreto e conjectural cujo nome os homens usurpam mas que nenhum homem contemplou: o inconcebível universo. (BORGES, 2008, p. 148-150).

O Aleph borgeano se toma aqui como uma valiosa figura que permite pensar o teatro atual, para refletir sobre modos de ação e construção cênica que passam pela simultaneidade e a heterogeneidade. O que se procura exercitar são modalidades de pensamento abertas pela

2 Do original em espanhol: “…brota naturalmente fracturado, ecléctico, plurilingüe, y desborda los marcos de un

47 arte, que operem sem estabelecer verdades absolutas, mas sim possibilitando inúmeras leituras. Se o Aleph fala do simultâneo, heterogêneo, fragmentário, inacabado, com suas implicações estéticas e filosóficas, é na alegoria que todos estes termos vão confluir para serem lançados ao terreno da história – onde o Aleph borgeano se mostrará como exemplo eminentemente alegórico. E da história no que esta tem de mais enigmático, na sua relação com o transitório, com o findável, enfim, com a morte. Trata-se, então, parafraseando Borges, da visão através do teatro de uma ‘inconcebível história’ e porque não, de uma ‘inconcebível política’. O que significa isso?

Há que se referir ao teatro aqui escolhido pensando-o a partir da figura literária do Aleph. Pense-se, por exemplo, em um dos aspectos das peças que instigaram o início desta pesquisa, tanto BR-3 (do grupo brasileiro Teatro da Vertigem) como Gemelos (do grupo chileno La Troppa), o fato de ambas possuírem uma vertiginosa mobilidade cênica: 1) os bonecos de diferentes tamanhos que vão aparecendo em Gemelos ou suas rápidas mudanças de cenário frente ao espectador; 2) o deslocamento dos espectadores em um rio, em barco, na peça BR-3, levando-os de um cenário a outro, às vezes muito próximo ou muito distante dos atores. Nesses espetáculos, diferentes imagens teatrais vão se mostrando ao público, em uma espécie de caleidoscópio cênico, maravilhando o olhar, o ouvir e o sentir. Esta mobilidade cênica,3 na realidade, é característica não só destes espetáculos, mas sim de qualquer teatro que maneje uma linguagem cênica não textocêntrica, que valoriza as imagens, os sons, as formas corporais, os ritmos, de modo igual ao do texto dramatúrgico. Pense-se, também, em outro tipo de poética, no espetáculo Mil quinientos metros sobre el nivel de Jack (1999), por exemplo, do diretor e dramaturgo argentino Federico León,4 no qual se podia ver uma atriz de idade, dentro de uma banheira que não deixava de derramar água. Ela, na narrativa da peça, era uma mãe já idosa cujo marido tinha desaparecido embaixo do mar, e que não sairia dali até ele voltar. Devido a esta única imagem, a peça, ainda que não conte com a mobilidade de imagens dos dois espetáculos anteriores, permite da mesma maneira uma série de associações por parte do espectador, sem fechá-la em um significando único. Quem é o marido? Um sonho perdido da mãe? Um desaparecido político que foi jogado ao mar? Quem é essa mãe que não quer sair dessa água? O que pode significar essa água que desborda da banheira,

3 Esta mobilidade cênica constitui um aspecto caro não só ao teatro atual, de fato seus referentes podem ser

encontrados na história do teatro ocidental. Tanto para o teatro medieval, o barroco e o romântico, entre outros, esta mobilidade cênica era de extrema importância. Contudo, uma singularidade contemporânea desta valorização de todos os aspectos cênicos, consiste na sua carga crítica dirigida a todo teatro que valorizava – ou valoriza ainda – o discurso das idéias (políticas, morais, religiosas, etc.) por sobre o discurso imagético e sonoro da cena, em uma espécie de logocentrismo teatral, como foi discutido no postal número dois.

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48 chegando até os pés dos espectadores? O importante aqui é ressaltar que estes modos cênicos podem ser lidos ao extremo, no enigma da sua vertiginosidade poética, por meio do Aleph, na versão borgeana dessa figura do misticismo judaico.

Vale clarificar que a opção por teorizar sobre a cena teatral a partir de Borges não significa necessariamente que ele foi a inspiração dos grupos aqui nomeados. O interesse pelo conto do autor argentino é a percepção de que ali há um pensamento que opera em fluxo, evidenciando a potência da ficção que desestabiliza muitas vezes um pensamento normativo, de pretensões dominantes.