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5.1 Curto-circuito

5.2.1 Do depoimento pessoal

Há implícito no ‘depoimento pessoal’ um abismo íntimo-coletivo no qual o ator mergulha durante um processo de criação. Isto não faz deste um ser especial já que esse abismo pode corresponder a uma característica existencial e sócio-cultural de qualquer pessoa; o que é especial (no sentido de específico) nestes artistas de teatro é o fato de poder transformar este ato em material para uma criação artística. Para Miriam Rinaldi, atriz do Teatro da Vertigem, o depoimento pessoal

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Do original em espanhol: “centralidades difusas y de márgenes corridos cuyos mecanismos de control se han vuelto ubicuos en sus razones y poderes, segmentados por escala de valores oscilantes [… en un constante…] conformismo adaptativo de los nuevos enrolamientos sociales en las filas del poder político y del éxito económico […] que censuran las conexiones entre pasado y presente” (2001, p. 39).

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Do original em espanhol: “desatadura emocional del recuerdo sólo nombra a la memoria con palabras exentas de toda convulsión de sentido” (RICHARD, 2001, p. 31). Torna-se aqui significativo que Oryarzún tenha repensado a noção de benjaminiana de progresso, levantando uma interpretação do ‘fim da história’, para pensar nossa época, nossas sociedades neoliberais.

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“é uma qualidade de posicionamento do ator, de sua opinião frente a alguma coisa, pode parecer que se trata de um ator de palanque, com um discurso verbal forte. De fato, não é isso. Muito do material proposto pode nos remeter a sensações a respeito do tema, por vezes com grande poder simbólico, não chegando a uma narrativa linear [...] o depoimento artístico autoral exige um campo de amoralidade, onde é permitido expressar-se com liberdade.” (2006, p. 140)

O material de criação advém tanto da biografia do artista como de textos já pré- existentes, podendo ou não ter uma forte carga emotiva; segundo Rinaldi, não há uma forma pré-estabelecida para o depoimento (2006, p. 140). Vale notar o fato de que este exercício é um ‘expressar-se com liberdade’ e, por esta razão, para o diretor da companhia, Antônio Araújo, este possui um grau de revelação, de ‘desvelamentos’ do ator (RINALDI, 2006, p. 140) – referência a Grotowski, reprocessada pelo grupo, para quem o ator deve estar disposto não a mascarar-se em um personagem mas sim a expor generosamente o seu ‘eu’.

Rinaldi se apóia nas idéias do estudioso brasileiro da performance Renato Cohen para reforçar a exposição do ‘eu’: o processo do performer “vai se caracterizar muito mais por uma extrojeção (tirar coisa, figuras suas) que por uma introjeção (receber a personagem)” (COHEN, 2007, p. 105). Pode-se perceber também em Cohen um reprocessamento do conceito de via negativa65 de Grotowski, na qual o trabalho do ator não é visto como exibicionismo e sim como um modo de abrir e explorar o indivíduo na sua intimidade, para que ele possa realizar o “ato de ‘emergir de si mesmo’” (2006, p. 140) e compartilhar algo único, que passa a ser segredo de todo o grupo durante o processo de criação.

Contudo, Rinaldi observa também que durante o processo de ensaios esse ‘eu’ do ator dá passagem ao ‘eu’ do personagem, ou seja, o ator passa de um trabalho como si mesmo para assumir um outro. A atriz tenta explicitar esse outro que é o personagem, considerando que a palavra personagem não é adequada porquê os seres ficcionais gerados durante um processo de criação não respondem aos parâmetros de uma dramaturgia clássica:

“Seja pela sua natureza impura, conseqüência das múltiplas contribuições no processo colaborativo, seja pelos ‘contornos incertos’ que apresentam no resultado cênico, ou por sua reticente função narrativa, tais ‘criaturas’ parecem estar distantes da concepção de personagem da dramaturgia tradicional.” (2006, p. 142) 66

65 Na via negativa o trabalho do ator para criar não deve consistir em se armar de métodos e mais métodos de

interpretação, mas sim em se despojar de travas corporais, emocionais e psicológicas para poder expor a si mesmo em cena; não como exibicionismo, mas realizando uma entrega generosa e humana ao espectador, permitindo-lhe um verdadeiro encontro com ele. Esta é a base do teatro pobre de Grotowski, primeira fase da sua trajetória como diretor teatral.

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Em seu estudo Rinaldi toma como referência o processo de criação do espetáculo Apocalipse 1,11, no qual participou como atriz.

152 Do mesmo modo, o estudioso da performance Jorge Glusberg analisa a relação do eu do performer como um Outro. Por sua estrutura formal as performances muitas vezes causam estranheza, havendo uma espécie de halo hermético em suas formas que impede uma leitura imediata e facilmente acessível, o que se deve ao fato de que “na performance se perde a densidade do significado do signo e se conserva o significante” (2005, p. 112), provocando uma “variedade de sentidos (no sentido perceptivo do termo): visual, olfático, táctil, auditivo etc.” (2005, p. 76). Há um esboroamento do sentido, já que se trata de atos não-significativos, porém ricos em simbolismos (2005, p. 113), que apontam ao profundo do seu mistério, onde a racionalidade não chega, tornando-a uma experiência mística e artística – em proximidade ao corpo-luz e à viagem à subjetividade em sua vertente antropológica tal como proposta por Muguercia (1991;1992). Afirmando a importância do performer, Glusberg observa que ele

“cria sobre a arena da performance uma clara consciência de seus atos imprevistos e de seus fracassos. Porque o discurso do performer está cheio de buracos e fissuras [...] A performance é fonte de numerosos fantasmas psicológicos que tocam a interioridade do sujeito e põe em crise sua estabilidade – literalmente falando – que se fundamenta na repetição normalizada de convenções gestuais e comportamentais” (2005, p. 84 e 65).

Esta afirmação reforça, mais do que uma força mística, a força material da cena cuja potencia sensória é a de deslocar a percepção cotidiana para planos do não dito, desmitificando o estabelecido. Aqui se está aplicando um olhar alegórico, que vai permitir o deslocamento – na discussão do ‘eu’ e do ‘outro’ do ator, ou da cena – de uma visão mística (ou metafísica) para uma visão material da arte teatral. A performance, segundo Glusberg, “implica atos que apesar de serem sem sentido são necessários para a realização de um objetivo sagrado” (2005, p. 112), sendo que este sagrado é o Outro. O olhar alegórico vai permitir ver esse Outro como o Outro do tempo, da história, percebendo que as fissuras íntimas expostas no Depoimento pessoal falam de um lugar esquecido do presente; o enigmático apelo do passado ao presente. Desta maneira, no trabalho do ator e na sua individualidade (subjetividade) se dá a possibilidade de abrir seu ofício a um horizonte estético e ético para a contemporaneidade, no que esta carrega de histórico.

A pensadora espanhola Amelia Valcárcel (2005) analisa a distinção e também a inseparabilidade dos termos ética e estética. Nesse vertiginoso entremeado teórico, onde se debatem a beleza e o bem assim como os seus reversos, Valcárcel apresenta uma noção de individualismo, que nomeia como solidário em contraposição ao possessivo. Este último se caracteriza por ser ‘o individualismo a seco’, tal como é entendido comumente na sua acepção

153 egoísta, ‘desagregadora’ e ‘corruptora’, em crítica que impediu outros pontos de vista sobre o mesmo (2005, p. 70). Isto favoreceu uma noção massificadora do social, característica do século XX, que a pensadora chama de “estética do nós” (2005, p. 70) (que aqui se vem chamando de administrativo, ou melhor, de midiática e neoliberalmente consensual):

“Se há uma face boa do individualismo é precisamente a repugnância a admitir o dado como dado, no interesse de qualquer ethos que lhe venha imposto: alguns objetos possuem denominação de origem e para eles isso é conveniente, mas os seres humanos não têm tal denominação.” (2005, p. 72).

Se torna significativo aqui conectar as fissuras do performer, citadas por Glusberg, com as já citadas falas de Audio, ator do Teatro da Vertigem e Zagal do La Troppa, e a incerteza também denotada em Spregelburd, a partir dos quais se atribui visibilidade e importância às fraquezas pessoais no processo de criação. Ao aproximar arte e vida, o depoimento pessoal liga diretamente o trabalho dos artistas à noção de experiência. Se o autoconhecimento implícito no depoimento pessoal é entendido como um mergulho abismal entre o pessoal e o coletivo, é preciso trabalhar com um conceito de experiência condizente com esse mergulho.

Benjamin problematiza a noção de experiência entendida como mero acúmulo de memória (como riqueza de exemplos delegados pela tradição), e propõe uma experiência ligada à pobreza. A riqueza da tradição – re-focalizando esta questão em função deste contexto teatral –, foi aniquilada pelo “monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo- se ao homem” (1993, p. 115), cuja experiência mais radical e significativa foi a da 1° Guerra Mundial, na qual os “combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiência comunicáveis e não mais ricos” (1993, p. 115). Benjamin também aponta outras experiências que expõem a sua pobreza, ainda reconhecíveis no mundo de hoje (seu ensaio é de 1933): “a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governadores” (1993, p. 115) – e pode-se pensar em muitas outras que fazem parte das temáticas abordadas por espetáculos como os do Teatro da Vertigem e o La Troppa.

BR-3 trata de três gerações de uma família de personagens marginais e malditos, debatendo-se em um país convulsionado por mega-projetos de urbanização, realizados sem o cuidado respectivo para com a maioria da população nem com o meio ambiente, e a marginalização política, social e religiosa que surge à margem destes projetos. A peça mostra os percursos existenciais dos personagens em um trajeto que percorre três cidades do país, Brasilândia, Brasília e Brasiléia, ressaltando-se nesta viagem a miséria social oculta em um

154 mega-projeto de nação. Na guerra de Gemelos, baseado no livro O Grande Caderno da escritora húngara Ágota Kristóf (1935-), os soldados não têm nome, nem as cidades; os invasores, numa invasão atrás da outra, são chamados de estrangeiros ou de novos estrangeiros. O espetáculo refere-se, deste modo, tanto à Segunda Guerra Mundial quanto ao estado de barbárie da ditadura chilena, referência feita, no entanto, em tempos democráticos, o que permite ver o espetáculo como uma reflexão acerca de uma sociedade pós-ditatorial e democrática e nela o esquecimento da memória ferida de um país.

Torna-se assim significativa a evidência, no depoimento pessoal, das fraquezas e das fissuras da experiência dos atores. Zagal, de La Troppa, explicita essas fissuras referindo-se à perda: “Em termos pessoais, algo importante se perdeu [...] me criei com essa sensação de andar sempre deambulando por aí, deambulando sem alcançar o perdido” (apud. HURTADO, 1999, p. 15, “tradução nossa”).67

Esta constitui a pobreza da experiência, e como propõe Benjamin, tem de ser assumida não para ser superada, mas para ser aceita no cerne da sua carência e do seu vazio. Deste modo, o depoimento pessoal, mais do que uma atitude de vítima e/ou masoquista perante o fazer cênico, fala da difícil autonomia desses artistas, que, em consonância com sua época, sabem que esse vazio da representatividade social faz parte também de suas vidas.

É isto que vai permitir a pergunta, tal como apontado com D. Lopes, de como a ‘catástrofe’ se constitui como um dado da subjetividade contemporânea (1999, p. 22). É isto que está implicado na fragilidade da experiência assumida por estes artistas, já que é nessas fissuras que estes formulam indagações artisticamente: “é em nossas hesitações, em nossas dúvidas, em nossos desvios, que pode ainda se insinuar o apelo messiânico, ali, enfim, onde renunciamos a tudo preencher para deixar que algo de outro possa dizer-se” (GAGNEBIN, 2007, p. 98). Desse modo se usa aqui o conceito de alegoria: dizer o outro, ou melhor, atender ao chamado do outro, às vozes mudas, que sempre se apresentarão como outro, sendo por isso in-administráveis.

Historicamente considerada apenas como um jogo de formas, como uma ilustração figurada de alguma idéia abstrata, a alegoria adquire força expressiva como uma escrita que fala o Outro (a pobreza da experiência) na visão de Benjamin. A alegoria simultaneamente se torna uma noção preciosa para pensar o teatro na sua materialidade cênica, pela sua atenção à sua própria carga corpórea de exibição, seus artifícios, e não à sua interioridade que já se sabe sempre vazia, outra. Mais ainda, a alegoria permite pensar que o ‘eu’ do depoimento pessoal é

67 Do original em espanhol: “En lo personal, algo importante se perdió […] me crié con esa sensación de andar

155 o Outro, que em vez de ser um poder político ou alguma força metafísica é um ausente, re- focalizando completamente a questão da autoria. Como? E que tipo de peças pode corresponder a esta modalidade de autoria? Além do Teatro da Vertigem e o La Troppa, entre outros que dão sinais desta questão na cena latino-americana, é significativo o grupo teatral peruano Yuyachkani, sobretudo pelas mudanças de concepção poética na trajetória de seu diretor, Miguel Rubio.

5.2.2 “Não falo, sou falado”

O grupo Yuyachkani foi criado em 1971, no calor dos movimentos revolucionários da esquerda no continente, sendo conhecida sua marca brechtiana inicial. Posteriormente, por meio de um encontro significativo com Eugenio Barba,68 o grupo se volta para a pesquisa do trabalho do ator, assumindo assim a carga antropológica e a viagem à subjetividade descrita em postal anterior. O viés antropológico lhe permite conceber suas montagens não mais do ponto de vista meramente político (ou sociológico, diria Muguercia), e sim a partir do corpo do ator e do sentido de ‘presença’. Mas em um país de enormes contrastes sócio-culturais e com uma história política turbulenta,69 é difícil para o grupo – graças também à trajetória construída em direta relação com essa realidade – trabalhar uma concepção corpórea do ator em detrimento do político: segundo Rubio, se no princípio as obras que “refletiam a realidade política e social de nossos países estavam carregadas de esperanças [...] pouco a pouco foram se convertendo em inventários do horror: personagens vítimas da violência, imigrantes, marginalizados, desaparecidos, povoaram os nossos cenários” (2008, p. 190, “tradução nossa”).70

68 Em 1978, graças a um encontro internacional de teatro no Perú, Encuentro Ayacucho, organizado pelo Festival

Mundial de Teatro das Nações, patrocinado pela UNESCO, o Yuyachkani conhece o trabalho de Jerzy Grotowski e Eugenio Barba. Principalmente este último influenciaria definitivamente o trabalho do grupo, fazendo-o desdobrar sua marca político-militante em um trabalho teatral mais focado na pesquisa poética e antropológica da cena (GUERRERO, 2008, p. 124).

69 Lembrar que este país sofreu a ditadura de Juan Vellasco Alvarado (1968-1975), única ditadura de esquerda

no continente; as ações de luta armada do Sendero Luminoso e sua contrapartida, a milícia oficial, que instauraram no país um clima de horror; o auto-golpe ditatorial do neoliberal Fujimori (1990 – 2000), não menos violento que o anterior, sobretudo para as classes baixas (rurais e urbanas), entre outros acontecimentos sócio- políticos.

70 Do original em espanhol: “Nuestras obras que reflejaban la realidad política y social de nuestros países estaban

cargadas de esperanza y poco a poco se fueron convirtiendo en inventarios del horror: personajes víctimas de la violencia, migrantes, desplazados, desaparecidos, poblaron nuestros escenarios” (RUBIO, 2008, p. 190). Os espetáculos deste grupo são de caráter popular, pelo menos nos seus inícios, cujas referências culturais, de raiz andina, se vêem palpáveis em cena, nos figurinos, nas cores, nas máscaras das manifestações folclóricas

156 Muguercia (1997) observa a força cada vez mais proeminente do corpo nos processos criativos do Yuyachkani: no espetáculo No me toquen ese valse (1990), por exemplo, a “teatralidade está encravada na dimensão do vital, no plano que concerne a uma subjetividade corpórea e voltada à ação [... o que a torna uma fábula...] ‘não lógica’ na qual domina a dimensão física, com a sua carga de impulsos e motivações não sempre explicáveis” (1997, “tradução nossa”).71

Contudo, não obstante a força corpórea, de ‘presença’, que começa a adquirir o trabalho deste grupo emblemático do teatro peruano contemporâneo, Rubio comenta que:

“Então sentimos como esse corpo, centro e fonte da ação, se diluía frente a nós, perdia valor, pois nada pareciam valer os corpos de centos de peruanos, vítimas da violência política [...] Assim, nossos atores, que tinham como centro a presença, tiveram que trabalhar a ausência em si mesmos para evocar os corpos ausentes.” (2008, p. 36-37, “tradução nossa”)72

Para Ileana Diéguez, investigadora teatral cubana, há nos trabalhos do Yuyachkani uma visão da ausência,73 sendo que esta atua como gestos mais do que estéticos, éticos, e por meios dos quais “se faziam visíveis os corpos ausentes, emprestando [os atores] seus próprios corpos para a recuperação metafórica de tantos rostos borrados” (2008, p. 26, “tradução nossa”).74

Aqui a noção de presença adquire outras variantes, já que para a autora esta não é a simples afirmação material do corpo do ator, mas implica em uma eticidade desse ato, “a responsabilidade de estar em um espaço cênico ou público, assumindo a intervenção como pessoa-artista-cidadã do seu tempo, com todos os riscos que supõe intervir no espaço público”

peruanas reprocessadas poeticamente. Mas as marcas sócio-culturais da sociedade peruana, seu conflitos políticos, e a direta relação que tem com ela o grupo vai produzindo significativos desdobramentos no seu fazer cênico. Neste sentido, a complexidade, os traumas, a violência irão marcando o trabalho do grupo, mas não somente o dele, mas da maioria dos grupos de teatro que surgiram naquela época no Peru. (GUERRERO, 2008, p. 121-134)

71 Do original em espanhol: “teatralidad está enclavada en la dimensión de lo vital, en el plano que concierne a

una subjetividad corpórea y volcada a la acción, lo cual permite presentar el deseo […] ‘no lógica’ en la que domina la dimensión física, con su carga de impulsos y motivaciones no siempre explicables.” (MUGUERCIA, 1997)

72 Do original em espanhol: “Entonces pudimos sentir cómo ese cuerpo, centro y fuente de la acción, se diluía

frente a nosotros, perdía valor, pues nada parecían valer los cuerpos de los cientos de peruanos víctimas de la violencia política […] Así, nuestros actores, que habían tenido como centro la presencia, han debido trabajar la ausencia en sí mismos para evocar los cuerpos ausentes.” (RUBIO, 2008, p. 36-37)

73 Diéguez se refere a trabalhos posteriores do grupo, mas que de alguma forma dão continuidade à questão do

corpo e da ausência frente a uma situação política catastrófica, traumática: os espetáculos Adiós Ayacuho (1990), Antígona (2000) – versão do dramaturgo peruano José Watanabe –, Rosa Cuchillo (2004) e uma série denominada por Rubio como ‘Performances políticas’.

74 Do original em espanhol: “se hacían visibles los cuerpos ausentes, prestando sus propios cuerpos para la

157 (DIÉGUEZ, 2008, p. 27, “tradução nossa”).75

Trata-se assim de propiciar à comunidade um ‘ritual coletivo’ (e não mais projetos ideológicos partidários que objetivariam também o poder) colocando em cheque os sistemas de representação política – o que parece ser uma característica decisiva no teatro do continente operado pelas micro-poéticas – modificando assim “a própria noção de representação nos cenários artísticos, onde os corpos forçadamente desaparecidos pelas forças repressivas das chamadas societás recuperam uma presença simbólica nos corpos e vozes das communitas que emergem nos interstícios” (DIÉGUEZ, 2008, p. 29, “tradução nossa”).76

As micro-poéticas operam em consonância com as communitas, assim descritas por Diéguez: “communitas efêmeras e espontâneas, expressões daquelas zonas que as instituições oficiais [societás] não podem mais representar” (2008, p. 28, “tradução nossa”).77 E é por meio desta visão do intersticial e do micro-lógico operado pelo Yuyachkani que se dá a possibilidade realizar ‘ATOS’ que possam outorgar “presença simbólica às múltiplas ausências, tornando VISÍVEIS os corpos dos desaparecidos, [e] que constituem ação de resistência contra o olvido” (2008, p. 29, “tradução nossa”).78

Mas, destacando a insistente e urgente tarefa de recuperação simbólica de querer tornar VISÍVEL os corpos ausentes, é possível realmente evocar os corpos ausentes nos corpos dos atores? É isto que está em jogo nessa eticidade da presença? Rubio, quando diz que os atores tiveram que ‘trabalhar a ausência em si mesmos para evocar os corpos ausentes’, diz também que, se antes esses atores procuravam outros corpos no seu próprio corpo,79 agora “tiveram que emprestar o deles porque em nossa cena irromperam presenças que buscavam seu próprio corpo, concreto, material, desprovido de toda metáfora” (RUBIO, 2008, p. 37, “tradução nossa”).80

O que significa essa presença material e concreta do corpo ausente?

75 Do original em espanhol: “la responsabilidad de estar en un espacio escénico o público, asumiendo la

intervención como persona-artista-ciudadano de su tiempo, con todos los riesgos que supone intervenir en el espacio público” (DIÉGUEZ, 2008, p. 27)

76 Do original em espanhol: “modificado la propia noción de representación en los escenarios artísticos, donde

los cuerpos forzosamente desaparecidos por las fuerzas represivas de las llamadas societás recuperan una