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4.2 Do dobramento político.

4.2.2 Da problemática do ditatismo em Lo que está en el Aire

Na trama da peça, um professor é testemunha da captura e prisão de um de seus antigos alunos, Farías (com o qual tinha se encontrado por acaso no aeroporto da cidade), e do mundo fantasmagórico o qual enfrenta ao tentar denunciar esta situação. O desaparecimento do rapaz é constantemente falseado, seja pela mídia, pelos advogados ou pelo os seus próximos, que acham tudo um delírio. Por meio de quadros curtos, com diálogos em estilo realista, mas com situações ilógicas, sabe-se do desaparecimento, tortura e morte desse aluno. A peça se estrutura em dois espaços diferentes: uma antesala (onde ocorrem as cenas atemporais) e outros espaços em tempo presente (aeroporto, casa, escritório, entre outros). Na antesala muitas vezes aparecem dois personagens misteriosos, armados, e uma aeromoça também armada, que freqüentemente irrompem de modo repentino também nos espaços do tempo presente, gerando uma situação ilógica e fantasmagórica, apoiada ao fundo pelo som de tímpanos. Segundo Villegas, esta peça do ICTUS se constituiu como “um dos textos nacionais mais ousados em relação à apresentação de uma sociedade nacional sob a pressão do medo e a contínua presença das forças de opressão.” (2000, p. 25).46

Para este autor, trata- se de uma denúncia da perversa lógica dos serviços de inteligência secreta da ditadura chilena,

46 Do original em espanhol: “uno de los textos nacionales más osados con respecto a la mostración de una

sociedad nacional bajo la presión de miedo y la continua presencia de las fuerzas de opresión.” (VILLEGAS apud. ADLER; WOODYARD. 2000, P. 25)

95 podendo-se também aplicar o selo de kafkiano. Mas, pode-se realmente falar em selo kafkiano?

Vale destacar o monólogo do protagonista (professor de música), quando faz um comentário sobre o músico Gustav Mahler (1860 – 1911) para expor de forma categórica ‘o que está no ar’ (Lo que está en el aire):

“Sua música é produto de uma tremenda sensibilidade de antecipação e a expressão de uns sentimentos, sensações e emoções que corresponderam aos fatos acontecidos com posteridade ao seu tempo, mas que de alguma maneira já «estavam no ar». Por isso Leonard Bernstein comentou de Mahler: «que seu tempo chegou somente depois de cinqüenta, sessenta, setenta anos de holocaustos mundiais; de simultâneo avanço da democracia; unido à nossa crescente impotência para eliminar as guerras, da magnificação dos nacionalismos e da intensiva resistência à igualdade social...»” (CERDA; ICTUS, 2002, vol II, p. 207)47

Na peça a cena inicial e a final se repetem em um jogo cíclico, como dizendo que o pesadelo não termina, tendo como referente o teatro do absurdo. O final circular pode ser lido de duas maneiras complementares; a primeira, a partir de uma fala do protagonista, quase no final da peça, quando comenta a sua filha: “O tempo, o único infinito contém, necessariamente, a eterna repetição do que morre. Se ao cabo de alguns anos luz encontro a Farías [o aluno desaparecido], tratarei de quebrar esta rotina!” (CERDA; ICTUS, 2002, vol II, p. 215).48 A segunda, a partir de um conflito doméstico, paralelo ao desaparecimento político, entre o protagonista e sua filha (casada e com família). Eles moram juntos, não gostam dessa situação e nunca o expressaram, salvo no momento auge da peça, em que, quando todos negavam o desaparecimento do aluno (Farías), o professor/protagonistas se atreve a falar acerca da importância da ‘verdade’. Tanto da ‘verdade’ do desaparecimento do seu aluno, que ele a todo custo não nega, como simultaneamente da verdade de que ele não gosta de morar com a filha. O texto estabelece um paralelo acerca da ‘verdade’ frente à falsidade não só no âmbito social como também no pessoal, estando ambos implicados. Somente assim se entende que no início e final da peça o que se destaca é a fala do professor à filha: “Porque você me mentiu?” (CERDA; ICTUS, 2002, vol II, p. 216).49

Emblemática então, é a afirmação do

47 Do original em espanhol: “Su música es producto de una tremenda sensibilidad de anticipación y la expresión

de unos sentimientos, sensaciones y emociones que correspondieron a hechos acaecidos con posteridad a su tiempo, pero que de alguna manera ya «estaban en el aire». Por eso Leonard Bernstein ha dicho de Mahler: «Que su tiempo ha llegado sólo después de cincuenta, sesenta, setenta años de holocaustos mundiales; de simultaneo avance de la democracia; unido a nuestra creciente impotencia para eliminar las guerras, da magnificación de los nacionalismos y de intensiva resistencia a la igualdad social...»” (CERDA; ICTUS, 2002, tomo II, p. 207)

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Do original em espanhol: “El tiempo, el único infinito contiene, necesariamente, la eterna repetición de lo que muere. ¡Si al cabo de algunos años luz encuentro a Farías [el alumno desaparecido], trataré de quebrar esta rutina!” (CERDA; ICTUS, 2002, tomo II, p. 215)

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96 diretor da peça, Nissim Sharim, anos depois (em 2002), de que a missão do protagonista era estabelecer a verdade, citando um texto do professor quando este declara ter visto o seqüestro do seu aluno: “O vi. Ocorreu. E eu, Exequiel Soto, manterei esta posição sempre, sejam quais sejam as conseqüências da verdade... da verdade!... da verdade!... da verdade...! (CERDA; ICTUS apud SHARIM, 2002, vol I, p. 11). 50

Ainda que aqui se fale em ‘falsidade’ e em ‘verdade’, este conflito não se dá entre personagens bons contra os policiais maus, mas no interior de cada personagem, vítimas do mal oculto, do factum brutum – comentado anteriormente com Oyarzún (2009) – da polícia secreta. O maniqueísmo, tal qual o aponta Hurtado na peça chilena, se aplicava muito mais a, por exemplo, Tiradentes, do Teatro Arena,51 ou a boa parte do teatro de esquerda que vai mitificar algum herói como redentor e modelo a seguir contra as forças do mal. Aqui o modelo não é um herói, mas é uma idéia, a ‘verdade’, e não somente a verdade dos fatos, mas uma atitude verdadeira, como se esta fosse tão importante quanto a verdade dos fatos – a evidência desse factum brutum –. Neste sentido, não se trata exatamente, como diz Hurtado, dos bons contra os maus, mas da idealização da ‘verdade’ como o grande Bem a ser seguido. Mas daqui não se deriva uma visão errada da pensadora chilena e sim apenas um pequeno deslocamento em relação à sua exposição do maniqueísmo da peça; a missão – ambição – que esta peça se põe a si mesma é maior. Falar de personagens bons (contra maus) é manter-se no singular, no adjetivo; já ao se falar de exigência de Verdade, no sentido do substantivo Bem, se dá um salto ao Universal.52 O protagonista é um Herói Moral, e talvez tenha sido isso o difícil e doloroso, não havendo naquele momento condição para ser um Herói Revolucionário.

Lo que está en el aire, neste sentido, pode ser equiparado com a peça de Guarnieri, Um grito parado no ar, onde há uma exigência dos personagens por serem ‘responsáveis’ perante a realidade ditatorial no Brasil da década de 1960. Mostaço vai destacar esta característica da peça como um iluminismo racionalista que a cruza, ressaltando uma fala do

50 Do original em espanhol: “Lo vi. Ocurrió. Y yo, Exequiel Soto, lo sostendré siempre, sean cuales sean las

consecuencias de la verdad…!la verdad...!la verdad... la verdad…!” (CERDA; ICTUS apud SHARIM, 2002, tomo I, p. 11)

51 Mostaço fala de uma ‘retórica do herói’ nesta peça, para exaltar a sua platéia já cativa com “lenitivos

estéticos/retóricos” (1982, p. 94), desta forma Tiradentes se torna modelo a seguir devido à sua qualidade de “verdadeiro revolucionário, inquebrável e austero” (1982, p. 93). Algo similar Mostaço comenta do espetáculo Arena Conta Zumbi, onde “os negros são sempre belos, altaneiros, alegres; os brancos despóticos, sorumbáticos, desprezíveis e cruéis” (Contudo, este tinha o mérito de sua força cênica, sensorial, diz Mostaço, obliterando, de alguma forma, o racionalismo extremo deste teatro de tese). O mesmo pode se dizer das outras duas peças referidas acima, tendo como protagonistas personagens históricos, o Padre de las Casas e Tupac-Amaru.

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Está-se lendo estes termos, o bom e o Bem, a partir de uma ótica clássica: “La concepción del Bien como bien metafísico no excluye su concepción como bien moral; por el contrario, la incluye, aun cuando el Bien metafísico parece gozar siempre de una cierta preeminencia, especialmente en la ontología clásica.” (FERRATER, 1965, p. 209)

97 personagem Augusto: “Falar para os outros é importante paca. Disso eu sei, e tenho uma bruta responsabilidade”.53

Há tanto na peça brasileira como na chilena um logocentrismo em jogo que quer superar o ‘factual’ da violência, entendê-lo claramente (cientificamente, diriam estes também brechtianos) inclusive para explicar, de maneira organizada, o panorama social dela derivado. O mesmo ocorre, segundo Piña, na famosa peça de Ariel Dorfman,54 La Muerte y la Doncella, quando defende que nesta se clarificam as posições ideológicas dos personagens, tratando-se de uma espécie de teatro de tese (1996, p. 213-215).

O que se expôs acerca destas peças é o que Muguercia critica no teatro de esquerda latino-americano em geral, chamando-o de ‘sociológico’, preocupado, a partir do seu brechtianismo, por entregar um nítido quadro do mundo, explicitando objetivamente as relações de poderes sociais (1991). Aqui vale voltar ao que o texto e a montagem do ICTUS apresentam de ‘supostamente’ kafkiano, vendo-os como um sinal das contradições nas quais se viu imersa boa parte do teatro político de esquerda latino-americano, sobretudo apontando o porquê da impossibilidade de se ler nele um saber da perda.