• Nenhum resultado encontrado

2.4 REALIZABILIDADE JURÍDICA E INTERDEPENDÊNCIA DOS SABERES JURÍDICOS

2.4.3 Da prática

A cidadania mal implantada que temos em nosso país manifesta-se no receio em conhecer diretamente a lei, verificável na população em geral. Assim, qualquer tarefa de ler a lei é remetida para o profissional do Direito. Milita, no inconsciente coletivo, o conceito de que o Direito é lei.

A lei é para todos e apenas no caso de obscuridade em sua interpretação cabe solicitar esclarecimento técnico. Ora, a tarefa do jurista é entender de Direito, conhecê-lo; apenas por via reflexa, mediata, de leis, que são o seu principal instrumento de trabalho, mas não seu fim. Algo de todo indesejável.

Aquela concepção exclusivista favorece a dominação política da comunidade, pois transforma o jurista em oráculo e os cidadãos em ovelhas obedientes. Atira-se o papel de interpretar ao jurista e este, por sua vez, pode estar viciado.

Para o Direito, interessa sua difusão, sua partilha pelo grupo social onde atua. Não seu encastelamento e conseqüente distanciamento.

Todos temos noções, ofertadas na escola, de higiene, cuidados pessoais, geografia, etc. Mas de Direito, pouco ou nada recebemos desse ensino. E que não se diga que aqueles são conhecimentos menos complexos.

Há um receio de se perder o pouco que se conhece. A nossa "linguagem enigmática" que nem nós mesmos entendemos. Fatalmente, é o que ocorre quando se reduz o Direito ao texto de lei.

É preciso ver que o Direito não considera as pessoas em sua integralidade (daí o tema da igualdade como classificação). Essa limitação ocorre desde o primeiro instante de exteriorização mental, a qual já é sensivelmente desproporcionada em relação ao mental individual. Noutras palavras, não há mesmo como compreendermos o outro em sua inteireza.

Não expressamos aquilo que em realidade sentimos, daí a separação. O pensar e o expressar estão em diferentes planos de análise.

Donde se notar que o Direito opera no nível da linguagem86. As relações entre os homens são intermediadas por objetos do mundo sensível (tudo capaz de produzir

86

Segundo Tercio Sampaio Ferraz Junior, o direito é, rege e usa uma linguagem (Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 6.

sensações neurológicas)87. Observe-se que o ser humano pode fazer o próprio ou outro corpo (suporte biopsíquico) como veículo de estímulo.

Por ter mecanismo semelhante a uma textura intermental e supraindividual88, o Direito funciona como uma "máscara" em relação ao real.

Há várias "verdades" escondidas por trás das "aparências" (que são o nosso modo de perceber o mundo real, portanto, não é autônomo em relação a este) daí se poder falar em um conceito e em concepções de Justiça (Rawls) ou em sentimento e idéia de Justiça (Cláudio Souto).

Como ciência, o que hoje se tem por Direito pode não sê-lo amanhã. Daí a dificuldade na fixação de critérios gerais para a legitimidade, “porque os argumentos jurídicos não se apresentam unicamente como silogismos mas incluem argumentos estratégicos, erísticos.”89

Essa verdade acerca de qual o melhor ou pior, mais correto ou errado proceder para a sociedade, corresponde à busca pela Justiça. Aqui a indagação não é por aspectos do mundo físico, como formas e cores, por exemplo (o que vemos é o que vemos? Essa sensação é verdadeiramente partilhada?... Até pôr em xeque a própria existência do processo comunicativo), o que apenas atingiria o Direito na medida em que permitisse uma avaliação mais precisa dos eventos e assim uma criação mais precisa da norma (como ao estabelecer padrões de periculosidade trabalhista, revisões de perícias criminais, etc). A realidade aqui se refere a outro elemento do mundo material, um elemento incorpóreo: a energia. Para maior especificidade: a energia mental.

É a procura por saber o que verdadeiramente se pensa. Não um indivíduo em particular, pois ao Direito interessa o pensamento enquanto manifestado dialeticamemte. Mas a energia que se encontra indiretamente dissipada entre todos os indivíduos do grupo social e que lhes governa as ações (as normas sociais). Razão pela qual se conclui que o Direito,

87

WALZER, Michael. Las esferas de la Justicia: una defensa del pluralismo y la igualdad. Trad. por Heriberto Rubio. México: Fondo de cultura económica, 1997. (Política y Derecho) p. 20: “los bienes com sus significados – merced a sus significados – son un medio crucial para las relaciones sociales, entran a la mente de las personas antes de llegar a sus manos, y las formas de distribución son configuradas com arreglo a concepciones compartidas acerca de qué y para qué son los bienes.”

88

Cf. ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência através de um exame da ontologia de Nicolai Hartmann. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 178-92. O autor analisa detidamente a aplicabilidade aos dias atuais da ontologia de Hartmann e expõe as dificuldades para a determinação do espírito objetivo e seus reflexos com a democracia, bem como, para objetivar-se. Ressalta a falta de amparo histórico para a legitimação do direito por via natural (o “reto caminho”).

89

enquanto instrumento para conformação de expectativas de condutas em sociedade com vistas ao progresso social, apenas existe em grupos com um mínimo de coesão. Ou seja, onde haja predominância do elemento agradabilidade sobre pontos comuns suficientes para justificar a vida em grupo.

Se não há essa unidade, não há Direito, apenas caos. Em um sistema no qual se verifique esse problema, apenas a força (o elemento vontade da interação social) aliada ao sentimento pode funcionar e impor um mínimo direcionamento do ambiente político e da parcela pública do ser humano. Pois, quando da descoesão social (verdadeira inexistência de grupo), descabe insistir no debate em torno de elementos racionais.

O que não se mostra como solução, já que isso apenas conduz a um distanciamento no espaço sócio-político, com a correspondente difusão de um sentimento de desagradabilidade grupal. A força continuamente utilizada para prevenir um afastamento, se não visar à busca de elementos comuns para cooperação, termina por fazer-se um fator de profundo conflito.

Desnuda-se, assim, o Direito como mais um dos elementos de nossa tessitura "real", que cabe ser localizado, identificado e explorado pelos juristas devido ao seu elevado potencial para garantir a coexistência humana. É preciso, caso a caso e passo a passo, no Judiciário – já que a estrutura estatal pátria brinda a classe jurídica com um veículo de coercibilidade para a aplicação de seus conceitos – buscar o tratamento mais adequado para determinada situação.