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Definir o motivo pelo qual o Estado será responsabilizado implica em se determinar a que o Estado é obrigado. Isso passa, inexoravelmente, pela definição de que modelo de Estado se fala. Conforme será notado no decorrer do trabalho, o Estado brasileiro, a partir da Constituição de 1988, adquiriu contornos que justificam classificá-lo como um Estado Social, alicerçado na idéia de dignidade da pessoa humana.

A responsabilidade, então, é a manifestação jurídica de uma atitude política. Segundo Fausto de Quadros, há uma dose de “permissividade e lassidão” na sociedade “que é suficiente para que cada um de nós, a começar pelos titulares do Poder, não faça questão em se considerar responsável nem goste de ser responsabilizado.”24 Mas, em contrário a esse sentimento, a Democracia e o Estado de Direito assentar-se-iam em três elementos25: Liberdade (respeito aos direitos e garantias estabelecidos pela legalidade), autoridade26 (assentada na vontade popular e responsável pela submissão dos interesses individuais às necessidades coletivas) e responsabilidade, para conter os excessos dos outros dois.

É nesse contraste, maior nas sociedades periféricas, entre o real e o ideal, que vai se encontrar a responsabilidade do Estado. Do seu estudo depende a evolução não só da ciência jurídica, mas da democracia como um todo.

24

QUADROS, Fausto de. Introdução. In: _____ (coord.). Responsabilidade civil extracontratual da administração pública. Coimbra: Almedina, 1995. p. 8.

25

Ibidem, p. 9.

26

Para Paulo Bonavides, o poder é de fato (suportado pela força – dominação material e obediência obtida por violência) ou de direito (assentado na competência – consentimento dos governados), “[…] a autoridade enfim traduz o poder quando ele se explica pelo consentimento, tácito ou expresso, dos governados (quanto mais consentimento mais legitimidade e quanto mais legitimidade mais autoridade). O poder com autoridade é o poder em toda sua plenitude, apto a dar soluções aos problemas sociais.” (BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 106-7).

Cada grupo social apresentará sua forma de responsabilidade. E, não raro, como resultado do tenso relacionamento entre a política e os agentes jurídicos, surgirá o conflito entre a realidade e suas necessidades e os dizeres dos textos legais.

Aqui, é preciso refletir sobre esse relacionamento.

Burdeau principia seu Droit Constitutionnel com uma bem elaborada exposição acerca da distinção entre proposições sobre a realidade (ser) e normas (frase pela qual se declara que algo deve ser)27. Como resultado de tal separação, à norma não se aplicam critérios de verdade e falsidade, mas sim de validade28. Daí, segue-se a “Lei de Hume”: do fato de algo ser não se pode deduzir que deve ser.

Necessário, nesse contexto então, compreender que a norma retira sua validade da precedente e assim por diante, em virtude da norma fundamental, a qual em si determina que se deve obedecer a hierarquia normativa. Esse composição hierárquica forma um sistema, o sistema jurídico. E, não sendo jurídicas por si próprias, as normas adquirem tal qualidade por pertencer ao sistema29.

Tal concepção do jurídico, de iniludível matiz kelseniana30, que o autor, em sua exposição, prossegue até retirar as conseqüências para o conceito de Direito Constitucional31, revela em seu íntimo um trabalho sobre a “vontade geral” que a lei representaria.

Pois, ao utilizar uma visão monista do Estado e do Direito (por entender ambos como realidades imbricadas e de referência tautológica32), Kelsen constrói sua concepção de Estado de Direito sobre proposições oriundas da leitura científico-descritiva das normas, prescritivas.

27

25. ed. Atual. por Francis Hamon e Michel Troper. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1997. (Col. Manuels). p. 15 e segs.

28

Sobre a conceituação de validade e conceitos correlatos (como vigência e eficácia) e a título de exposição dos posicionamentos relevantes sobre o tema, cf. VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no Direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 12; FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 49-55. FRANÇA, Vladimir da Rocha. Invalidação judicial da discricionariedade administrativa: no regime jurídico- administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 21-2.

29

BURDEAU, HAMON, TROPER. ob. cit., p. 18.

30

Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4. ed. Trad. por João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1994. (Ensino Superior) p. 5-10, 18-25, dentre outras passagens.

31

V. BURDEAU, HAMON, TROPER. ob. cit., p. 32-4.

32

Cf. Ibidem, p. 32-3. BURITY, Tarcisio de Miranda. A teoria das fontes do Direito em Kelsen e a sua concepção democrática do Estado. João Pessoa: [s.n.], 1990. p. 5-7.

E essa proeminência das leis, à parte sua justificativa histórico-cultural33, também vai buscar apoio na necessidade de maior segurança por parte dos agentes econômicos do mercado livre na condução de suas operações e planejamento34 (certeza e previsibilidade) – influência do econômico sobre o jurídico.

Kelsen expôs ainda que o dever jurídico35 seria a conduta cuja observância se impõe para que não incida a sanção do ordenamento. Essa é a construção da norma jurídica enquanto comando para as formas de agir do ser social. É uma dedução do texto legal.

Por outro lado, aponta Siches36 que, inobstante a sensibilidade com que Rousseau abordou os temas jurídicos, o racionalismo então imperante e sua busca obcecada pela universalização (razão pura matemática, já aplicada aos dados da natureza pela física) transferiu-se para as codificações no século XIX. Desenhou, Rousseau, a vontade geral, divorciada de sua contextualização real, ela seria o fator racional harmonizador das liberdades individuais37.

Enquanto idéia racional, a vontade geral estaria sempre certa em seus direcionamentos, todavia, a decisão do povo, em dado momento, poderia equivocar-se na interpretação daquela. Nisso, estão inseridos concepções socráticas e platônicas acerca da vontade humana e do mundo das idéias.

Assim, o texto legal codificado passou a ser tido como manifestação dessa razão naturalista e, portanto, verdade, independentemente da realidade circundante38. Em

33

Bem captada por Nelson Saldanha (Formação da teoria constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 183), nos seguintes termos: “Na tradição rousseauniana o prestígio da lei e do legislador – o legislador como entidade criadora da ordem – radicava no fato de que o ato legisferante revelava e renovava o ato fundamental do contrato. Do mesmo modo, anote-se, que os ritos, nas diversas religiões, revelam e renovam atos cósmicos primordiais.” Sobre a comparação entre lei, mito e atuação do Judiciário, cf. MENDONÇA, Fabiano André de Souza. Responsabilidade do Estado por ato judicial violador da isonomia: a igualdade perante o Judiciário e a constitucionalidade da coisa julgada face à responsabilidade objetiva. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000. p. 19.

34

Cf. ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 74-5. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 84, 126, 144. MENDONÇA, Fabiano André de Souza. “Democracia e legalidade da tributação na Constituição Federal de 1988”. Recife, Revista da ESMAPE, v. 2, n. 4, p. 181-203, abr./jun., 1997, p. 189.

35

KELSEN, Hans. ob. cit. p. 130.

36

SICHES, Luis Recaséns. Nueva filosofia de la interpretación del Derecho. 2. ed. México: Editorial Porrúa s/a, 1973. p. 150-2.

37

Ibidem, p. 151. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: ou princípios do direito político. Trad. por Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Os pensadores) p. 91: “[…] a vontade geral é sempre certa e tende sempre à utilidade pública; donde não se segue, contudo, que as deliberações do povo tenham sempre a mesma exatidão. Deseja-se sempre o próprio bem, mas nem sempre se sabe onde ele está.”

38

seguida, vem a escola da Exegese, que esquece o fato de o próprio direito positivo também conter normas particulares, é o “fetichismo do geral”39.

Inicialmente criadora da legalidade burguesa, o setor econômico da sociedade, a partir do momento em que ocupa os cargos políticos, passa a buscar válvulas de escape para as regras existentes (discricionariedade e medidas de necessidade)4041. É quando a lei adquire seu papel de só interessar a quem precisa dela.

Para quem está no controle da sua execução, a lei é apenas um parâmetro inicial guardado. Apenas a partir do momento em que um sujeito de direitos se sinta lesionado seus termos passam a ter relevância, como salvaguarda mínima de dignidade. Até lá, não há fiscalização.

Esse, na verdade, é um fenômeno social que vai fazer com que determinados textos se tornem obsoletos, que a mutação constitucional seja possível42 e que determinadas interpretações que obstaculizam o desenvolvimento social sejam ultrapassadas. Por outro lado, é por ele que as normas contra corrupção muitas vezes caem no esquecimento.

Mas a lei permanece com seu desiderato de regra geral. Com um sentimento interno de ser a expressão racional para a convivência de todos.

E é sobre essa concepção que se constrói a resposta do ordenamento à sua violação. A resposta à violação daquilo que permite a existência da sociedade.

39 Ibidem, p. 156. 40 V. nota 34. 41

Na atualidade, essa influência no modo de ser legislado, da assunção de cargos por grupos políticos, repete-se na transição das mesmas pessoas de cargos do legislativo para o executivo, e vice-versa. O administrador, por seu grupo ou mesmo pessoalmente, faz a lei que irá cumprir. Daí a comodidade política da legalidade estrita (afastamento da supremacia constitucional e da capacidade de raciocínio) para o Poder Executivo, pois não há responsabilização, já que as leis são feitas pelo próprio grupo social.

42

Sobre o tema, v. ZANDONADE, Adriana. “Mutação Constitucional”. São Paulo, Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 9, n. 35, p. 195-227, abr./jun., 2001. passim.