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2.4 REALIZABILIDADE JURÍDICA E INTERDEPENDÊNCIA DOS SABERES JURÍDICOS

2.4.2 Um sentido para a Teoria do Direito

Não se desconhece a inspiração positivista dos defensores de uma "Teoria Geral do Direito" e as fundamentadas críticas que recebe71. Porém, é noutro sentido que se a usará aqui.

Para os nossos propósitos, a teoria, enquanto indissociável da prática, senão por imaginação72, será a parcela de abstração e sistematização existente nas várias ciências jurídicas. Assim, será a soma das parcelas metacientíficas da Ciência Social do Direito, da Filosofia do Direito (predominantemente teórica) e da Dogmática Jurídica (esta particularmente esvaziada no Brasil de seu grande aprofundamento filosófico).

Para os que negam essa contextualização científica do Direito73 resta solucionar um problema: qual o papel, por exemplo, do conhecimento filosófico para o jurista? É sensível, nos autores que adotam esse posicionamento, a tendência em se colocar aí a diferença entre o bom e o mau profissional, a razão do sucesso ou a medida da amplitude cultural do jurista

Sabe-se que a fundamentação extradogmática é requisito indispensável para um bom profissional. O que não significa que só esse elemento lhe garantirá o sucesso profissional. Pode-se até obter sucesso, mas sem aquela sorte de conhecimento, não há como ser um bom profissional.

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SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 22: “Confundindo o seu campo de temas [da Filosofia do Direito] com o Direito Natural, no século dezenove, os positivistas (do positivismo filosófico-sociológico genérico) tentaram cancelá-la como disciplina acadêmica, substituindo-a pelo que denominaram ‘Teoria Geral do Direito’, uma visão global do mundo jurídico que incluía diversas áreas integradas.”

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Não há teoria sem prática, e vice-versa. Como tal, são indissociáveis e se constituem em dois ângulos do mesmo fenômeno: no caso, o Direito. Se há um divórcio entre ambas, se não são coincidentes, surge lugar para a repetida oração ou equivalente: "isso é muito bonito na teoria, mas na prática é muito diferente..." Daí para a providencial interpretação de que a teoria deve ser abandonada em prol de uma prática descompromissada há curta distância. Se há um divórcio entre a realidade e a Teoria (que, como toda teoria, tem uma prática e vice- versa) só uma resposta é possível: ou uma ou outra está “errada”. E como, o mais das vezes, é reconhecida a “beleza” da Teoria, a opção fica entre continuar fazendo algo “errado” ou procurar "entrar" no caminho certo para não se perder na estrada. Lembre-se que trabalhar com o Direito é trabalhar com a sua realização. O Direito, não as leis, existe para ser realizado. A teoria deve permitir sua adequação à realidade. Cf. ADEODATO, João Maurício. Bases para uma metodologia da pesquisa em Direito. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da UFPE, Recife, v. 8, n. 8, 1997, p. 205: “Outra regra é nunca separar ‘teoria’ de ‘praxis’, pensar conceitualmente e realidade empírica só têm sentido um com o outro.” No mesmo sentido, MILLER JR., Tom O. ob. cit., p. 5.

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Não se discorda do fato de que o questionar filosófico direto e puro pode surgir poucas vezes na vida de uma pessoa. Todavia, isso antes de diminuir sua importância resulta em sua indispensabilidade.

Pois uma simples resposta que seja dada a determinada questão dessa estirpe tem potencial para direcionar toda a vida de um jurista. Pode ir de um "de onde vim" a um específico "por quê inverter o ônus da prova nas relações de consumo". Seu caráter geral faz com que a resposta se ramifique em "n" outras observações.

Não se nega sua pouca ocorrência, mas isso apenas reforça o seu papel. Não é à toa que, até hoje, discutimos curtos diálogos de Platão e um opúsculo como “a luta pelo Direito” (Jhering) revoluciona e outros livros não.

As próprias ciências naturais, tão invocadas como exemplo de objetividade científica, têm seus maiores saltos cognitivos possibilitados por revisões teórico-filosóficas, como no caso da Física74.

Assim, se esse tipo de conhecimento é necessário ao profissional do Direito, por quê excluí-lo do seio das investigações? A questão pode até parecer uma estratégia psicológica para forçar o conhecimento daqueles campos do saber75. Todavia, vai além.

A sua raiz está no próprio conceito de Direito adotado. Ali, tem-se em mente um forte apego dogmático no conceituar um direito em sentido estrito. Uma contínua referência ao texto legal.

Antes de ir adiante, tenha-se em mente a observação de Tobias Barreto, para quem "uma ciência, que é realmente tal, não tem necessidade de fazer de sua própria existência a primeira questão que lhe cumpre resolver. Se ela de fato existe, os seus resultados incubir-se-ão de defendê-la76".

Nesse mesmo sentido, Nelson Saldanha:

O que na filosofia geral tem sido uma freqüente auto-referência – própria, em verdade, das disciplinas de cunho “cultural” –, na teoria jurídica se constituiu em verdadeiro

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Para uma comparação entre a investigação das ciências sociais e naturais, cf. MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: elementos de uma teoria constitucional I. Trad. por Peter Naumann. Porto Alegre: Safe, 1995. p. 13-4.

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Em referência à habilitação profissional básica, não há o jurista classe “A”, “B” ou “C”, ou se é ou não um bom profissional, não há uma formação “média”, com ou sem disciplinas extradogmáticas.

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narcisismo. Um misto de insegurança (inclusive diante da apregoada solidez das ciências “positivas”) e de rotina temática vem propiciando ao saber jurídico um interminável questionar-se sobre seus próprios fundamentos.

Um pensamento filosófico não pode comprazer-se na ênfase sobre o óbvio, nem por outro lado constituir-se em um feixe de paradoxos. O pendor ao formalismo lógico, tão comum em certos cultores (e setores) do pensamento jurídico, tende a demorar-se demasiado nos circunlóquios epistemo-metodológicos, e a cultivar com excesso de empenho o rigorismo conceitual. (…) A mania do método termina por transformar em um fim aquilo que é necessariamente um meio.77

Sob o risco recém apontado, vê-se que uma das contribuições mais originais ao debate é a dos brasileiros Cláudio e Solange Souto78. Abandonado o apego formalista, o estudo é direcionado para a busca de uma fundamentação substantiva do Direito. E a resposta é encontrada na conjugação entre sentimento de justiça e cientificidade, guiada por um instinto de conservação individual e da espécie79. “É o formular científico-positivo atualmente incontestável do sentido básico permanente do dever ser.”80

Desse dever ser profundamente avaliativo exsurge uma compulsoriedade física atual ou possível81, mas não a força, já que essa lhe é estranha. A força, a lei, é fator externo que não possui o condão de alterar a verdade científica. Apenas, enquanto sistema de conteúdo normativo das formas de coercibilidade, é objeto de estudo científico-valorativo por parte da Ciência Positiva do Direito.

A mudança, então, dá-se a partir do próprio conceito de Direito, que passa a abranger a ciência formal do Direito (dogmática jurídica), a ciência social do Direito (sociologia jurídica) e a ciência filosófica do Direito (Filosofia do Direito). Bem como, a tratar de seus correspondentes e indesejáveis formalismo, sociologismo e filosofismo jurídicos. A auto-suficiência de cada um desses saberes seria uma ficção apenas superável pela articulação deles de modo interdisciplinar82.

Vale assentar que o processo meramente dogmático de pesquisa (dogmatismo) se torna estéril. Pois, reduz o campo criativo do jurista e limita-o à vontade do legislador. A

77

Ob. cit., p. 36. Sobre o tema, observar ainda a crítica de HART, Herbert L. A. O conceito de Direito. 2. ed. Trad. por A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 5 e segs. à insistente busca por esse conceito, se comparado com outros ramos do conhecimento, como a química e a medicina.

78

Cf. desenvolvimento atualizado do tema em SOUTO, Cláudio. Ciência e ética no Direito: uma alternativa de modernidade. Porto Alegre: Safe, 1992.

79

SOUTO, Cláudio. ob. cit., p. 101-2.

80

SOUTO, Cláudio. Da inexistência científico-conceitual…, p. 138.

81

Ibidem, p. 133.

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maneira como se coloca o papel do jurista em classificar as leis e buscar aconselhar a melhor forma de se implementar determinada medida legislativa transforma-o em um mero assessor parlamentar. Não que essa atividade seja menos importante, mas descaracteriza a profissão jurídica.

Outrossim, não há como explicar uma ciência que se compraz em folhear e rediscutir velhos pensamentos, sem descobertas. Sem verdadeira pesquisa científica rigorosa.

E, afinal, para se conhecer bem as leis e classificá-las já há muitos profissionais de biblioteconomia e seus bolsistas ocupados com essa espécie de recuperação de dados. Não que, igualmente, não sejam importantes, mas não é a área de atuação do jurista.

A ausência de uma causalidade unívoca e necessária entre a formalidade proposicional e o sistema dos fatos é mediada por um processo psíquico que impede uma relação direta de causalidade83. É assim que o Direito, enquanto estrutura normativa, permite uma abordagem científica, e enquanto "dogma" situa-se, paradoxalmente, no reino da opinião (doxa). Não por isso merecedora de menor estudo; na verdade, é este que valida aquele84.

Lembre-se que o jogo da tipicidade (lícito-ilícito) só tem razão de ser enquanto confrontado com a realidade sobre a qual ele foi elaborado. De fato, é tão-somente uma construção mental (pois a relação de causalidade lógica não existe na realidade) que tende a ser o mais abrangente possível dos dados da experiência; é, de certo modo, um acessório que busca revelar a origem. Uma atitude cognoscente. Alterada a realidade no que há de radical para a formação do sistema, descabe insistir naquela primeira construção.85

83

VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 6.

84

Cf. ADEODATO, ob. cit., p. 207: a pesquisa dogmática é "destinada a sugerir estratégias de argumentação e decisão diante de conflitos a partir de normas jurídicas estabelecidas." O termo científico apresenta para o autor um sentido amplo, do qual não se discorda aqui. Ivo DANTAS (ob. cit., p. 168) entende que a não correspondência norma-realidade poderá gerar um hiato constitucional, pela ruptura do regular processo histórico-constitucional. Cf: MENDONÇA, Fabiano André de Souza. O diálogo norma-sociedade. In: _____. Responsabilidade do Estado por ato judicial violador da isonomia: a igualdade perante o Judiciário e a constitucionalidade da coisa julgada face à responsabilidade objetiva. Dissertação de Mestrado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 1998. p. 35-8.

85

Cf. VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 4. COSTA, Newton C. A. da. Ensaio sobre os fundamentos da lógica. 2. ed. São Paulo: HUCITEC, 1994. p. 23-8. GRAU, Eros Roberto. Conceitos indeterminados. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO TRIBUTÁRIO. (1.: 1998: Vitória): Justiça tributária: direitos do Fisco e garantias dos contribuintes nos atos da administração e no processo tributário. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 119-24. RABENHORST, Eduardo. Falácia naturalista e semântica dos mundos possíveis. Anuário dos cursos de pós-graduação em Direito da UFPE, Recife, n. 8, p. 65-76, 1997.