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Partindo do pressuposto da gradação "sentimento, valor, princípio jurídico", com facilidade vê-se a vinculação princípio-direito fundamental. Esse relacionamento permite melhor vislumbre das funções de ambos.

Os princípios têm a função de subsidiar a aplicação do ordenamento jurídico, harmonizar sua interpretação - conferindo-lhe unidade - e direcionar a criação das normas410.

Por sua vez, os direitos fundamentais, na exposição de Canotilho411, comportam quádrupla função: defesa ou liberdade412, prestação social413, proteção perante

409

V., também, p. 112.

410

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 139-40.

411

Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. p. 383-6.

412

Áreas de limitação de competência do Estado, liberdades positivas e negativas.

413

Direito do particular de obter determinada prestação estatal, sem prejuízo da possibilidade de obtê-las do "comércio privado" (Ibidem, p. 384). Tais direitos, de caráter social, econômico e cultural, podem ser, no que cabe profundo debate, originários - diretamente derivados dos textos constitucionais, derivados – dependentes de integração legislativa infraconstitucional ou representados pelo direito à participação igualitária nas

terceiros414 e não discriminação415.

Essa função de não-discriminação, na medida em que é decorrência do princípio da igualdade, irá seguir igual problemática.

Primeiro, há a igualdade na aplicação e na criação da lei. Na criação, é importante vislumbrar a insuficiência de uma universalização relativa do objeto da lei e dos sujeitos de direito, que apenas sectorize a diferenciação em determinados grupos isolados sem um critério racional palpável para tanto. É preciso haver um critério sério e razoável e que busque uma Justiça material entre os indivíduos416.

Outro tema, intimamente ligado à concepção social do Estado é o da igualdade de oportunidades, cuja realização é dependente da existência de uma verdadeira cidadania.

Ainda, é preciso ver que a própria Constituição, enquanto fruto do trabalho do Poder Constituinte originário, coloca não só a regra, mas também as exceções ao exercício da igualdade (direitos do servidor público e do trabalhador da iniciativa privada, garantias dos magistrados e membros do Ministério Público, estatuto jurídico diverso para algumas categorias - professores universitários, notários, advogados públicos, entre outros - etc; conforme desenvolvimento efetuado em tópico próprio). Canotilho a isso denomina de "direitos de igualdade"417, os quais correspondem à aqui intitulada regra de igualdade.

Por fim, e no que importa mais de perto ao deslinde desta pesquisa, ressalta a igualdade perante os encargos públicos. Por ele, nenhum cidadão deve ser compelido a arcar com encargos públicos (tributos, restrições a direitos) em grau maior do que os outros – repartição igualitária de ônus e bônus entre os cidadãos, respeitada a igualdade material. E, "no caso de existir um sacrifício especial de um indivíduo ou grupo de indivíduos justificado por razões de interesse público, deverá reconhecer-se uma indemnização ou compensação aos

prestações sociais, econômicas e culturais estabelecidas pelo legislador – ou direitos a políticas sociais ativas (instituições, serviços e prestações).

414

Dever do Estado de reprimir violações a determinados direitos e atuar preventivamente, mesmo no campo legislativo, como a vida e a privacidade, sem, contudo, surgir relação jurídica entre o protegido e o Estado, e sim entre os particulares (Ibidem, p. 384-5). Seriam aqueles momentos em que a postura do Estado seria marcadamente subsidiária das relações sociais, sendo marcante para a efetivação dessa função a consciência do provável agressor.

415

Direito a ser tratado de modo eqüânime pelo Estado. Daí exsurge a problemática das políticas de ação afirmativa. Atua em áreas como religião, política, saúde etc. Encontra também suporte na idéia de uma "sociedade multicultural e hiperinclusiva" (Ibidem, . 386).

416

Ibidem, p. 398-402.

417

indivíduos particularmente sacrificados."418

Em termos de direito a tratamento igualitário por parte do Estado (função de não-discriminação, coadjuvada pelo dever de proteção, mais a igualdade perante os encargos públicos e o Acesso à Justiça), surge a indagação sobre saber se é possível extrair diretamente do texto constitucional um direito originário com função de prestação social no relacionamento Jurisdição-jurisdicionado (se a Constituição estabelece um poder-dever para a Jurisdição, ou seja, o dever do Estado agir respeitando certos limites, consubstanciados na faculdade constitucionalmente atribuída ao cidadão de exigir determinada prestação).

E, ao menos num aspecto, isso é possível: o direito a um tratamento digno e eqüânime.

O estudo desses limites é capaz de identificar os dois lados contíguos: até onde pode o Estado ir, seja pela limitação de sua autoridade ou de sua responsabilidade (onde pode ir além).

O professor português refere-se ao fato de o vislumbre desse dever ressaltar o dever de efetivar os direitos fundamentais. Todavia, fala de uma “reserva possível”, a qual seria “a dependência dos direitos econômicos, sociais e culturais dos <<recursos económicos>>”, de modo a haver verdadeira imposição ao legislador para promover as alterações sociais necessárias para prover os devidos meios de efetivação419.

Quando é a lei que estabelece um direito (derivado), há o direito do cidadão a ter igual acesso ao mesmo e de ter igual participação na fruição do mesmo, tudo “na medida das capacidades existentes”420. O autor, todavia, critica essa postura teórica pelo fato de resultar numa ausência de vinculação jurídica, principalmente, devido ao alto custo dos direitos sociais, para os quais os cofres públicos nunca estariam cheios. Também, falar em mínino possível seria pregar o contentamento apenas com ações básicas de solidariedade.421

A primeira consideração a ser feita é acerca da licitude do ato judicial. Ou

418

Ibidem, p. 403.

419

Ibidem, p. 448. Cf. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987. p. 201 e segs., refere-se à existência da “reserva do possível”, e admite a impossibilidade de se retirar da Constituição conteúdo normativo exato para reger a prestação de serviços (emprego, habitação, estudo, cultura etc.) do Estado. Todavia, ressalta a inexistência de liberdade dos órgãos concretizadores de políticas públicas diante de tais preceitos, as normas dos direitos sociais impõem a atuação do legislador e vinculam o intérprete.

420

CANOTILHO, ob. cit., p. 450-1.

421

Cf, sobre o tema, COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 86, n. 737, p. 11-22, mar., 1997. passim.

seja, até que momento toda decisão judicial é lícita (até onde o ordenamento a admite como tal), vez que para isso deve respeitar regras formais e materiais.

A conclusão é que um ato que desrespeita a isonomia, malgrado sua escorreita roupagem, apresenta vício de conteúdo que deve ceifá-lo. Na verdade, ter-se-ia o ato judicial constitucional, visto que emanado de acordo com as regras do sistema pelo Poder que cabe vigiá-lo, mas inconstitucional, já que seu conteúdo não se enquadraria no sistema. Um ato judicial constitucional inconstitucional.

Essa contradição terminológica resolve-se pelo recurso à noção de que a inconstitucionalidade não tem uma forma prevalecente, mas uma vez verificada, age, em maior ou menor grau. Portanto, seria ato judicial inconstitucional.

Todavia, é ao Judiciário que cabe dizer a melhor interpretação para o ordenamento. Porém, nem aos representantes eleitos do povo é dada essa discricionariedade forte (talvez por aspectos históricos essa fato possa ser proveitoso), e, com certeza, a própria idéia de Poder Constituinte e de democracia põe um freio em maiores vôos.

Pois, nem sempre o tutor adota a orientação correta para o tutelado422.

A incerteza que páira sobre o resultado provável de um debate judicial é um fator que milita em prol da licitude da decisão judicial, por ter seguido escorreitamente os procedimentos decisórios, independentemente do conteúdo que venha a adotar. Eventual debate sobre sua invalidade fica condicionado ao ajuizamento de ação própria. Todavia, é “possível fazer um juízo do resultado provável do julgamento que não houve e, assim, atribuir a responsabilidade civil pela perda de uma chance”423. A incerteza não é absoluta, isso é garantido pelo dever jurídico de observar a razoabilidade, presente em nosso Direito. O que enseja, por exemplo, a análise de culpabilidade em inúmeras situações envolvendo a responsabilidade do advogado, de acordo com a viabilidade do debate processual.424

422

“Inclusive os funcionários supremos na aplicação do Direito têm deveres jurídicos”. (LAGERSPETZ, Eerik. Normas y sanciones. In: AARNIO, Aulis; VALDÉS, Ernesto Garzón; UUSITALO, Jyrki (comps.). La normatividad del derecho. Barcelona: Editorial Gedisa, 1997. p. 51-64. p. 59).

423

DIAS, Sérgio Novais. Responsabilidade civil do advogado na perda de uma chance. São Paulo: LTr, 1999. p. 50. O autor refere-se à súmula 400 do STF, a qual limita, o cabimento recurso extraordinário quando se tratar de interpretação razoável, seguida pelo STJ, e têm aplicação mitigada sobre temas constitucionais. Acrescente-se que a súmula STF 343, que impede o acatamento de pleito rescisório quando da postura controvertida nos Tribunais ao tempo da decisão rescindenda, também é submetida à importância dos temas constitucionais.

424

Ibidem, p. 72-82: ação não proposta, pedido não formulado, recurso não interposto, ônus probatório, extravio de autos, ausência de contra-razões, ausência de sustentação oral, rescisória não intentada.

Como fecho de cúpula da estrutura política do sistema, o ordenamento entrega ao Judiciário a tarefa de tornar retas suas razões. Assim, o ato seria constitucional por forma, mas seu conteúdo precisaria – e aqui o trabalho do jurista – adequar-se às prescrições do Direito.

Portanto, se em face de uma postura uniforme da jurisprudência (direitos de servidores, planos econômicos etc) o Judiciário resolve conceder, quando não seria o caso, direito a servidor, sem considerações maiores que afastem o substrato jurídico da tese que ele mesmo adota, é preciso ver que se trata de exercício condicionado de direito.

Nesses termos, apenas mediante a previsão de reparação econômica será o ato válido.

Aqui, distinguem-se os atos de efeitos concretos daqueles produtores de normas.

No ato de efeitos concretos, caberá ao prejudicado buscar a reparação do dano (prejuízo – ilícito estrito – oriundo do descumprimento de um dever – ilícito amplo).

Naquele normativo, caberá pleitear a sua nulidade, com a reparação apenas na ocorrência de prejuízo.

A pergunta sobre que atitude adotar em circunstância de violação dessas regras é logo respondida pelo ordenamento brasileiro com as hipóteses de duplo grau de Jurisdição425. Um erro de procedimento poderia (respeitado o princípio pas de nullité sans grief) resultar na nulidade de todo o processo (igualdade perante o Judiciário).

Há, à semelhança da revogação legislativa e da declaração de inconstitucionalidade em controle concentrado, mecanismo próprio para a retirada do ordenamento das normas judiciais: a ação rescisória e a revisão criminal.

Também, é possível a existência de lei nula (quando tal nulidade principia a ser reconhecida em controle judicial repressivo difuso de constitucionalidade) e de decisão judicial do mesmo tipo. Caso de liminar concedida de modo contrário a jurisprudência mas

425

Sobre a conformação de tal princípio no Direito Brasileiro, cf. LASPRO, Orestes Nestor de Souza. Duplo grau de jurisdição no direito processual civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. [Col. Estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman, n. 33] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996. [Col. Estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman, n. 21] ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995.

devidamente fundamentada pelo magistrado e que, posteriormente, vem a ser revogada pelo Tribunal.

Essa temática finaliza o quadro teórico onde se trabalha. Em tosca síntese, é preciso reler a semântica da Constituição Brasileira de 1988 em todas as categorias jurídicas envolvidas no tema da responsabilidade do Estado: responsabilidade, invalidade, nulidade, ilicitude, propriedade e sua função social, direitos fundamentais, dignidade humana, Estado e igualdade.

6 RETORNO AO DIREITO PROCESSUAL

Este estudo foi apresentado como continuação de pesquisa anterior426 onde, ao que nos interessa momentaneamente – e sem desmerecer os demais aspectos abordados ou seu uso posterior – houve conclusão em dois pontos: a) é possível a responsabilidade do Estado por ato judicial para além das hipóteses referidas na lei e na Constituição; b) é possível a responsabilidade do Judiciário por decisões contraditórias. As considerações que recebeu da doutrina nacional estimulam seu aperfeiçoamento427

Sobre a ilusão científica de um acerto em casos como tais, foi colocado que: “É interessante notar que o fato de decisões contraditórias serem incompreensíveis para o cidadão comum leva o tradicionalismo jurídico a ter isso por prova da especificidade de sua linguagem enigmática. Sem maior substância, que o Direito é assim (?). A verdade é que o próprio jurista evita indagar tal assunto, porque também não sabe. Apenas diz, quando muito, que deve ser evitado.”428

E, a corroborar esse posicionamento, tem-se: “faz-se crer à sociedade que o Direito é um sistema lógico, no qual os ideais contraditórios aparecem como naturais. Essa ‘crença’ é obtida no campo da dogmática jurídica graças ao que Warat chama de sentido comum teórico dos juristas.”429 O autor expõe como a dogmática atua como um conjunto de instrumentos tranqüilizadores e que podem impedir uma reflexão aprofundada sobre a realidade, uma linguagem oficial para o Direito430.

426

Fabiano MENDONÇA, ob. cit., passim.

427

Cf., por todos, STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 555: o autor aborda a idéia em tópico próprio e obtempera, com profundo conhecimento do tema, acerca da verificação da causalidade no caso concreto e explana acerca da forma de indenização (p. 551).

428

Fabiano MENDON, ob. cit., p. 116.

429

STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 46.

430

Como enfatizado ao longo do texto, não se pode condenar à prática do impossível, nem à perfeição. E é precisamente em razão da imperfeição que existe a responsabilidade. A matemática se dispõe a resolver problemas matemáticos, as ciências sociais, problemas sociais.

Para John Rawls, a Justiça é um entendimento capaz de proporcionar a convivência e o desenvolvimento sociais431. Em Cláudio Souto, isso se dá pela diminuição do tempo e do espaço sociais, o que resulta em maior coesão e progresso432. Para alcançar a sua Justiça, o Direito se vale da interpretação dos fatos sociais (o Direito é um ponto de vista sobre a realidade, no dizer constante de Lourival Vilanova). Assim, os fatos serão judídicos ou injurídicos, conforme sejam favoráveis ou não, respectivamente, ao desenvolvimento social. Porém, há um outro código, com o qual trabalha o direito dogmático: lícito/ilícito.

Já foi colocado que o Direito (Ciência descritiva que se ocupa do objeto direito) destina-se a resolver problemas sociais. Mas, no quotidiano forense do que a prática denomina direito - e que, por sua vez, não corresponde nem à Ciência nem ao seu objeto - não estão diretamente em causa as questões que o direito busca resolver, mas sim os problemas do próprio direito positivado.

Os problemas que chegam às raias do Judiciário são deformações na observância do direito dogmático. São expectativas de conduta frustradas ou em vias de frustração433.

Ou seja, o litígio judicial, enquanto parcela do conflito social juridicamente interpretado (em relação ao direito positivo e seus mecanismos), é um aspecto da vida sob debate. Sua relação com os fins do Direito (fundamentação científico-filosófica para a existência do objeto social direito) é indireta. Portanto, ao materializar a norma no caso judicial, os intérpretes estão, somente, solucionando um problema que os textos legais encontraram para funcionar. Não aplicando "o Direito" (ordenação ideal da conduta humana) à sociedade.

431

RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Trad. por Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 5.

432

Cf. SOUTO, Cláudio. Tempo do direito alternativo: uma fundamentação substantiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 137.

433

GRAU, Eros Roberto. O Direito posto e o direito pressuposto. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 21: “

no interior do litígio, ele [o direito] não trata de problemas empíricos, de problemas sociais, porém apenas de problemas internos a si próprio, de seus próprios problemas. [...] Pois não é senão disso que tratam,

imediatamente, os juristas - dos problemas do direito, apenas; os juristas, em regra, não tratam dos problemas que o direito estaria destinado a resolver…”

Quem opera a interpretação que soluciona o litígio não é o cientista, mas o juiz434. A avaliação acerca da juridicidade ou não de uma conduta situa-se em plano distinto.

O Estado435 compromete-se a organizar a vida social e, para tanto, disponibiliza um conjunto de normas escritas. Para além disso, disponibiliza parcela de sua estrutura - o Judiciário, para se encarregar de sua escorreita aplicação.

Isso, num regime democrático, caracterizado por uma rigidez constitucional e mecanismos de defesa dos direitos dos cidadãos e escolha popular dos governantes436. Até este ponto tudo concorda com a explicação de que o Estado "disponibiliza" um aparato jurisdicional para a comunidade. Nesses termos, razões não há para se contestar a democracia de tal sistema; aparentemente.

Diz-se aparentemente porque, na verdade, essa idéia não encontra raízes na história brasileira - à qual passamos doravante a nos referir - ou seja, explicações na cultura brasileira. Daí a primeira contradição: o povo, que, por intermédio do Poder Constituinte promulgou uma Constituição, não a escreveu.

Entenda-se, o ordenamento foi, sim, construído com a participação de interesses de nacionais, porém, a realidade brasileira trabalha com um elevado grau simbólico437. Daí a explicação de uma certa crença popular de que a lei tudo resolve.

Essa estrutura, em princípio tão democrática, na verdade, pode revestir-se de puro autoritarismo e abuso de poder quando vários aspectos tradicionalmente ligados a uma generalidade democrática da lei são postos em questão. Assim ocorre com: o caráter legitimador do voto – onde há interferência do econômico sobre o político – e faz que o voto, por si só, não seja sinônimo de democracia; a aplicação da lei em locais isolados da comunidade nacional – onde há até motivos para desconhecer mesmo o dever de obediência a

434

Ibidem, p. 32.

435

O qual Sundfeld (Fundamentos de direito público) denomina de Estado-governo, em contraposição ao Estado-sociedade, adiante referido apenas como sociedade.

436

MENDONÇA, Fabiano. ob. cit. p. 48 e segs.

437

Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das letras, 1998. p. 36-42: a autora mostra bem a utilização do imaginário popular na época imperial pelo grupo politicamente dominante para a construção e afirmação de um modelo de monarquia nacional em seu benefício. Para o que foram utilizadas as artes (pintura, escultura, gravura, teatro, etc), de modo a gerar todo um conjunto de símbolos a gravitar na figura do rei, o maior dentre eles. Donde se concluir que a tendência em simbolizar o poder e as relações sociais data das origens de nossa formação política. Cf., sobre o caráter simbólico da legislação, NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994. p. 26-41.

determinado Estado; e, como já explorado, a noção de legalidade – que, na verdade, nem sempre representa a vontade do povo.

É preciso, aqui, reafirmar que a justiça é o objetivo de todas as ciências sociais e respectivos profissionais, não privilégio do Direito. Afinal, ninguém tem o direito de ser injusto. Antes, cada ciência trabalha a busca de Justiça para determinado problema.

E qual o papel do Judiciário nisso tudo? Impor a vontade do Estado, manifestada na lei, defendendo-a de ataques?

A resposta a essa questão só pode ser negativa, pois cabe ao Estado intermediar o diálogo do texto normativo com a sociedade, por meio da edificação de um arcabouço normativo que seja justo.

E por que ela teria que fazer isso, se é apenas um órgão subordinado? Em primeiro lugar porque é um Poder Constituído e, portanto, diretamente subordinado ao Poder Constituinte, não a vontades de ocasião ou aos outros poderes. Depois porque seria admitir o suicídio estatal crer que um órgão pudesse ditar posturas prejudiciais ao corpo. Uma coisa seria reconhecer esse fato e estudá-lo; outra é protegê-lo teoricamente, o que deve ser evitado.

Ainda que a forma de organização política Estado possa não ser para sempre, já dizia o poeta, "mas que seja infinito enquanto dure"438. O Estado apresenta, então, mecanismo indispensável de conservação, que é o Judiciário. Ele precisa seguir regras, mas, para tanto, não precisa agir como um ser desprovido totalmente de razão. Afinal, é constituído por seres humanos.

A par disso, é preciso o olhar da paixão pelo direito.

O olhar, para quem o recebe, pode ser indecifrável (enigmático) ou de cristalino significado. O apaixonado sempre sabe o que o olhar significa. O olhar da paixão pelo Direito resolve todas as dúvidas (sobre discricionariedade, o olhar apaixonado, olhar vago, estabelece o compartilhamento do código comunicacional com o verdadeiro destinatário – a sociedade – por isso o juiz tem de integrar-se nela).

O Judiciário tem persistido num modelo absenteísta e burocrático que não se altera há séculos. Particularmente, na realidade brasileira, tem apresentado mínimas