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1.2. Da reflexividade «moderna» à elaboração de uma tipologia de reflexividades Se a reflexividade pode ser considerada como uma dimensão intrínseca da

1.2.2. Da teoria da estruturação ao conceito de reflexividade

A noção de “reflexividade social” aparece como uma ideia central na argumentação que Giddens desenvolve nas suas diversas análises, nomeadamente nas mais recentes (1998,2001). A influência do pensamento filosófico desenvolvido por Descartes, Kant, Hegel e Husserl no quadro teórico deste autor (cf. Domingues, 2002, p.57), permite-nos considerar que o sentido de “reflexividade” se enquadra na matriz racionalista ocidental, significando, por isso, reflexão racional (cf. Domingues, 2002, p.57).

Partilhamos, assim, da opinião de Domingues, segundo a qual a reflexividade de Giddens se refere, “de uma forma ou de outra, ao que Descartes consagrou como o cogito, ou seja, a capacidade da consciência de pensar-se a si mesma” (sublinhados do autor, Domingues, 2002, p.58). Será, pois, devido ao papel da razão – enquanto algo abstracto, que se encontra desvinculado da corporalidade e da experiência – que o indivíduo possuirá a capacidade “para se encarar a si mesmo e reconhecer-se para além das suas experiências comuns” (Domingues, 2002, p.58).

Todavia, em nosso entender, a reflexividade não se poderá reduzir ao conceito de reflexão ou razão, uma vez que Giddens a associa, também, à ideia de conhecimento e à importância deste no controlo das acções dos actores sociais.

Com efeito, a sua teoria assenta no pressuposto de que a mudança social é possível, porque os actores sociais possuem a capacidade racional de analisar as informações que recebem para conceberem estratégias de actuação que visam transformar, positivamente, as condições de existência em que se encontram11 (cf. Giddens 1989, 2000, 1998, 2001).

Esta relação entre interesse, consciência individual racional e acção é desenvolvida por Giddens na teoria da estruturação, nomeadamente nas considerações que efectua a propósito das acções intencionais e não intencionais, da agência humana e da sua relação com o poder (cf. Giddens, 1989, 2000).

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Ora, como Domingues chama a atenção, quer o racionalismo cartesiano combinado com o utilitarismo de Hobbes, quer a herança de Weber (nomeadamente a sua tipologia da acção) não serão de todo alheias a esta concepção (Domingues, 2002, p.58).

Valerá a pena determo-nos sobre estes conceitos12. De acordo com o autor, “«agência» não se refere às intenções que as pessoas têm ao fazer as coisas mas, à capacidade delas para realizar essas coisas em primeiro lugar (sendo por isso que «agência» subentende poder (...) agente (...) como alguém que exerce poder ou produz efeito)” (Giddens, 1989, p.7). Assim, como afirma, “agência” diz respeito “a eventos dos quais um indivíduo é o perpetrador, no sentido em que ele poderia, em qualquer fase de uma dada sequência de conduta, ter actuado de modo diferente” (sublinhados nossos, Giddens, 1989, p.7).

Contudo, um actor social pode perpetrar um determinado acto de forma intencional ou não intencional. Neste último caso, o agente não sabe ou não acredita que qualidades ou desfechos caracterizam os seus actos, não podendo, por isso, prever as consequências involuntárias das suas acções (Giddens, 1989, p.8). Aliás, quanto mais as consequências de um acto se distanciam no tempo e no espaço do contexto original desse acto, menos provável é que essas consequências sejam intencionais mas, e esta parece ser uma das premissas fundamentais da análise deste autor, a intencionalidade das consequências dos actos perpetrados é influenciada pelo alcance da cognoscitividade que os actores possuem e pelo poder que são capazes de mobilizar” (sublinhados nossos, Giddens, 1989, p.9).

É, pois, devido à “conexão lógica” existente entre acção e poder que os indivíduos, segundo Giddens, poderão desenvolver processos de mudança social. O autor considera, com efeito, que “os agentes sociais são capazes de actuar de outro modo, isto é, são capazes de intervir no mundo, ou abster-se de tal intervenção, com o efeito de influenciar um processo ou estado específico de coisas” (sublinhados nossos, Giddens, 1989, p.11).

A sua concepção dos indivíduos como agentes corrobora precisamente esta ideia. Assim, de acordo com as suas palavras, “ser um agente é ser capaz de exibir cronicamente, no fluxo da vida quotidiana, uma gama de poderes causais, incluindo o de influenciar os manifestados por outros”. A acção depende, desta forma, da capacidade e do poder que os indivíduos possuem para “criar uma diferença” em relação ao estado de coisas ou curso de eventos preexistente13 (sublinhados nossos, Giddens, 1989, p.11).

Não significa isto, no entanto, que o autor não reconheça que não existam lógicas de coerção social que limitam o poder dos indivíduos e a sua capacidade de obter determinados

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Dado que apenas pretendemos salientar em que medida alguns dos pressupostos da teoria da estruturação de Giddens poderão auxiliar-nos a esclarecer melhor o significado do conceito de reflexividade, não iremos desenvolver exaustivamente estes diferentes conceitos.

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Esta acepção do indivíduo como agente estará subjacente à visão do “indivíduo como sujeito capaz de reconhecer os seus interesses e agir racionalmente em função deles” defendida pela tradição utilitarista e pelo individualismo metodológico (Domingues, 2002, p.58).

resultados. Uma das características da dualidade da estrutura reside justamente no facto de o poder “pressupor relações regularizadas de autonomia e dependência entre actores ou colectividades em contextos de interacção social” (sublinhados nossos, Giddens, 1989, p.12).

Trata-se, assim, de o poder possuir “duas faces” - uma correspondente à capacidade dos actores colocarem em vigor determinadas decisões e a outra relativa à “mobilização de tendências” que estão embutidas nas instituições (Giddens, 1989, p.12). Isto não corresponde, no entanto, a uma concepção de poder «soma-zero», uma vez que, para Giddens, “todas as formas de dependência oferecem alguns recursos por meio dos quais aqueles que são subordinados podem influenciar as actividades dos seus superiores” (sublinhados nossos, Giddens, 1989, p.12).

É esta possibilidade de os agentes serem autónomos relativamente à “estrutura”, ou, por outras palavras, é o facto de os indivíduos não só reproduzirem as características dos sistemas sociais na sua acção, como de serem também capazes de as produzir (sublinhados nossos, Giddens, 1989, p. 72) que nos permite associar os conceitos de “agência”, “poder” e “acção” ao conceito de reflexividade.

De facto, ao considerar que os indivíduos detêm a possibilidade de “penetrar” nas condições de reprodução do sistema social, na medida em que produzem conhecimento sobre esse mesmo sistema (cf Giddens, 1989, p.73), parece-nos que o autor atribui ao conceito de reflexividade uma forte carga «capacitante».

Será, aliás, nesta ordem de ideias, que Giddens apresenta, nas suas obras mais recentes (1998, 2001), a noção de “reflexividade institucional”. O princípio que explicita a “dupla hermenêutica”, parece-nos, com efeito, subjacente a este conceito. Referimo-nos, concretamente, à sua perspectiva segundo a qual as instituições não funcionam “apenas «por detrás»” dos actores sociais que as produzem e reproduzem, já que, como Giddens afirma, “todo o membro competente de qualquer sociedade sabe bastante sobre as instituições dessa mesma sociedade, não sendo tal conhecimento secundário para o funcionamento da sociedade, encontrando-se antes necessariamente envolvido no mesmo” (sublinhados do autor, 2000a, p.46).

Tendo em atenção a presente expansão dos sistemas periciais e o aumento substancial de possibilidades para se aceder ao vasto conjunto de informações especializadas que são difundidas, Giddens considera que estarão criadas as condições para as sociedades actuais desenvolverem processos acrescidos de reflexão e análise sobre si mesmas (cf. Giddens, 2001, p.18). A noção de “reflexividade institucional” ou reflexividade característica da fase da “modernidade tardia” parece-nos, assim, directamente associada à ideia de que todos os

indivíduos possuem competências para incorporar os conhecimentos científicos divulgados e produzir, a partir destes, outros conhecimentos que, por sua vez, irão contribuir para enriquecer os novos conhecimentos científicos que os cientistas sociais constroem sobre a realidade social (cf Giddens, 1989, 1998, 2000a, 2001). Nesta ordem de ideias, a “reflexividade institucional” é realizada em larga escala, encontrando-se socialmente disseminada.

1.2.3. Reflexividade científica, reflexividade prática e reflexividade discursiva

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