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Lógicas contraditórias que presidiram à expansão do sistema educativo nacional

3. CAPÍTULO – A EMERGÊNCIA DOS RANKINGS ESCOLARES NO CONTEXTO DA ACTUAL MODERNIDADE EDUCATIVA

3.1. Os media e a escola «para todos» como sistemas centrais da modernidade Afirmar, neste momento, que tanto o sistema educativo como os meios de

3.1.3. Lógicas contraditórias que presidiram à expansão do sistema educativo nacional

No que se refere ao processo de escolarização da população portuguesa, este concretizou-se “a duas velocidades”, pois se foi durante o Estado Novo que foi alargada a todos a escolaridade básica obrigatória, apenas alguns tinham acesso a uma estrutura escolar pós-obrigatória, estrutura esta que era configurada de forma fortemente estratificada57 (sublinhados nossos, Almeida e Vieira, 2006a, p.61). Deste modo, enquanto na maioria dos países da Europa tinha lugar uma explosão escolar entre os anos 50 e os anos 70 do século XX, traduzida numa generalização do ensino secundário e numa enorme expansão do ensino superior (Delcourt, 1984), em Portugal apenas se massificava a escolaridade mínima.

Para isso terá seguramente contribuído o processo de urbanização do País, o crescimento da industrialização e as correlativas transformações sócio-ideológicas nas elites dirigentes, bem como a incorporação das teses do capital humano nos objectivos da política educativa portuguesa nos anos 50 (Valentim, 1997, p.49). Segundo Candeias, a escola só se terá implantado no campo quando a cultura camponesa das aldeias deixou de ser a cultura dominante ao ter sido submergida pela influência das cidades. Na realidade, “modos de vida que se regem pelo Sol e pelas estações, com épocas de trabalho intenso e continuado, e em que a sobrevivência obriga a que todos se ocupem com a agricultura e pecuária, são tremendamente difíceis de conciliar com uma instituição que se rege por horários que pressupõem uma disponibilidade total da criança, de uma criança liberta do trabalho quotidiano” (Candeias, 2001, p.84). A difusão e massificação da escola só terá principiado então a fazer sentido para a maioria da população, quando a extensão da sociedade urbana a todo o país demonstra que é realmente possível atingir-se a ascensão social através da escola (Candeias, 2001, p.84-85).

Por sua vez, a influência das teorias do capital humano na formulação das políticas

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São estabelecidas duas vias de ensino, sendo uma destinada ao “exercício do trabalho intelectual, visando o «saber desinteressado» - o ensino liceal – e o prosseguimento universitário dos estudos e a outra destinada ao exercício de um trabalho manual fortemente qualificado – o ensino técnico – dirigida às elites oriundas essencialmente do operariado urbano e da pequena burguesia local” (Almeida e Vieira, 2006a, p.61)

educativas nacionais – hoje reafirmada na retórica sobre educação - leva o então ministro da Educação, Leite Pinto, a advogar a necessidade de o sistema escolar corresponder com mão- de-obra qualificada às exigências do mercado de trabalho, para poder desempenhar as novas funções impostas pela indústria moderna (Almeida e Vieira, 2006 a, p.62). É neste período que o sistema de ensino português recorre, pela primeira vez, a uma instituição pericial supra- nacional – a OCDE – para desenvolver uma “ambiciosa avaliação do estado da educação portuguesa” (Almeida e Vieira, 2006 a, p.62). Nos resultados da comparação que é realizada com outros países do Sul da Europa, nomeadamente com Espanha, Itália, Jugoslávia, Grécia e Turquia é evidenciada a incipiente escolaridade da população portuguesa nos anos 50 (Almeida e Vieira, 2006 a, p.63).

O atraso educativo acumulado em Portugal não mais deixará de ser ressaltado nas comparações internacionais periodicamente efectuadas pela OCDE até à data. Já então, tal como presentemente, se apontava a necessidade de se investir na educação nacional – isto é, na qualificação dos recursos humanos - como forma de se proceder ao desenvolvimento económico do país. A dependência de Portugal relativamente à assistência técnica e especializada desta instituição pericial supranacional de natureza intergovernamental e a sua influência na formulação e desenvolvimento das políticas educativas nacionais (cf Teodoro, 2001), comprovam bem como este sistema pericial têm vindo a influenciar a reflexividade simbólico-ideológica e técnico-ideológica produzida pelo Estado português a respeito da educação. Na verdade, segundo Teodoro, a OCDE desempenhou um papel de primeiro plano na assistência técnica à expansão do sistema escolar português e de legitimação política das opções estatais subjacentes58 (Teodoro, 2001, p.136).

Não obstante o alargamento da escolaridade obrigatória para seis anos e a previsão de um “«ciclo preparatório do ensino secundário” na primeira metade dos anos 60 do século XX (Almeida e Vieira, 2006a, p.62), o panorama respeitante à alfabetização da população em idade activa é ainda bastante deficitário em 1970. Assim, nesse ano, 96% dos indivíduos com idades compreendidas entre os 20 e os 24 anos encontravam-se alfabetizados; esta percentagem descia para 80% nas faixas etárias entre os 30-34 anos; diminuía para 70% na faixa que compreende os 40-44 anos, sendo somente de 59% na faixa etária dos 50-54 anos e de 47% na faixa de idades entre os 60 e os 64 anos (Candeias, 2005, p.494).

Foi, porém, na viragem para a década de 70, “em plena renovação marcelista do

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Para além de ter desenvolvido, em diversos relatórios, um conjunto intensivo de recomendações à política educativa portuguesa, a OCDE participou directamente, através de peritos seus, em diversos projectos do Ministério da Educação, como por exemplo, o do lançamento da Tele-escola, nos anos 60, e o que visou a reforma do ensino superior, com a criação de novas universidades (Teodoro, 2001, p.136).

regime ditatorial, que os argumentos da «democratização escolar» foram finalmente acolhidos pelos poderes públicos” (Almeida e Vieira, 2006 a, p.62). O problema da «massificação escolar» terá sido trazido para a ordem do dia quando, em 1971, o ministro da Educação Veiga Simão, colocou “à discussão pública os projectos de uma ambiciosa reforma de todo o sistema educativo visando o ensino básico, o ensino secundário e o ensino superior” (Almeida e Vieira, 2006 a, p.62-63). Foi, portanto, no início da década de 70, que a «democratização do ensino» entrou no discurso oficial, dando origem ao alargamento da escolaridade obrigatória para 8 anos em 1973 (Valentim, 1997, p. 51). Para além desta medida, institucionalizou-se a educação pré-escolar, a polivalência do ensino secundário e a inclusão de um 12º ano. A expansão e diversificação do ensino superior e uma nova estruturação da formação profissional e da educação permanente fizeram ainda parte deste ambicioso plano (Almeida e Vieira, 2006a, p.63).

Apesar de ter sido posto em causa em 1974, com a Revolução, este plano não deixou de ser “inspirador de muitas das medidas educativas tomadas e postas em prática após o 25 de Abril” (Almeida e Vieira, 2006 a, p.63). Foi o caso da reforma da formação de professores que se revelou muito útil para a revalorização do estatuto profissional e científico dos professores e para a sua afirmação como especialistas do ensino. Na verdade, foi no contexto da Reforma Veiga Simão que se criou, nas Faculdades de Ciências, um Ramo de Formação Educacional, promovendo-se, deste modo, o retorno da formação profissional dos professores à universidade. O percurso de formação passou a ser integrado numa única instituição, apesar de existir uma relativa compartimentação entre as componentes pedagógica e científica. A habilitação para a docência passou a ficar apenas dependente da obtenção do grau universitário (Pintassilgo, 2002a, p.4).

A rápida difusão da escolaridade iniciada com a Reforma Veiga Simão provocou, ao longo da década de 70 e 80 uma “verdadeira explosão quantitativa do corpo docente”, tendo o seu número aumentado tanto em termos absolutos como em termos relativos (Cruz, 1988, p.1191). Este crescimento foi particularmente relevante no caso dos professores do 2º e 3º ciclos do ensino básico e dos professores do ensino secundário (Cruz, 1988, p.1191-1192).

Todavia, até meados dos anos 80, este crescimento quantitativo não foi acompanhado por um correspondente crescimento qualitativo. Dada a escassez de instituições de ensino vocacionadas para a formação de professores no início da década de 70, e face ao aumento de procura de formação escolar, verificava-se um grande desequilíbrio entre o número de professores profissionalizados e o número de vagas disponíveis para a docência. Assim, em 1973-74, a percentagem de professores do ensino secundário – precisamente o mais afectado

por esta situação – sem habilitação própria atingia os 31%. Em 1981-82, os professores deste nível de ensino sem curso superior eram de 25% (Cruz, 1988, p.1193). Esta situação contribuiu fortemente, segundo Cruz, para a degradação académica e profissional do estatuto dos professores (Cruz, 1988, p.1193).

A criação de escolas superiores de educação e departamentos universitários de ciências da educação, fruto da preocupação com a especialização pedagógica dos docentes permitiu, no entanto, que se efectuasse a correcção progressiva da qualificação dos docentes, possibilitando ainda que esta tenha sido extensível a todo o País, pois era sobretudo nas regiões mais desfavorecidas do interior e Sul que existia o maior número de professores sem habilitações próprias e sem curso superior. Assim, em 1985-86, a percentagem dos professores do ensino secundário sem habilitações próprias tinha já baixado para 11,9%, tendo igualmente diminuído para 18% a percentagem dos que não possuíam curso superior (Cruz, 1988, p.1193-1194).

O estatuto de especialistas do ensino foi reforçado pelo facto de esmagadora maioria dos professores (90% em 1985-86) exercerem em regime de exclusividade a sua profissão (cf Cruz, 1988, p.1201-1203). No entanto, este estatuto não deixa de continuar a ser marcado pela ambivalência da sua dependência face aos poderes estatais, ao contrário do que sucede, por exemplo, com os médicos, engenheiros e advogados que possuem uma autonomia profissional reconhecida pelas respectivas Ordens. Com efeito, se a profissão docente se encontrava já estatizada, a expansão do sistema de ensino e do número de contratações de professores – assegurada sobretudo pelo Estado, dada a diminuta intervenção do sector privado neste processo – veio acentuar o estatuto de “funcionários públicos” que os professores já detinham.

A tendência para a feminização da profissão, já anteriormente assinalada, consagrou- se em todos os graus de ensino (cf. Cruz, 1988, p.1198). Se no caso do ensino primário a percentagem de mulheres já era maioritária em 1965-66, o mesmo não sucedia no ensino secundário, uma vez que este era ainda composto por 54,6% de homens. Todavia, em 1974-75 estes haviam descido para 44,8%, passando a representar apenas um terço dos docentes no ano 1985-86. Nessa mesma data, comparativamente com os outros países da OCDE, Portugal apresenta uma das mais elevadas taxas de feminização docente: 76,85% (Cruz, 1988, 1197).

Ora, tal como Nóvoa e Araújo, Cruz considera que a feminização da docência, comparativamente com outras profissões que igualmente possuem saberes especializados, contribuiu para a degradação do estatuto sócio-profissional e económico dos professores, afectando ainda o seu prestígio social (Cruz, 1988, 1197). Nesta ordem de ideias não é

surpreendente que sejam os níveis de ensino menos prestigiados os mais feminizados: 61,8% no “secundário complementar” (actualmente designado apenas como ensino secundário); 69,1% no “preparatório” (2º ciclo do ensino básico); 92,4% no primário (1º ciclo do ensino básico) e 98,7% no pré-primário, em 1985-86 (Cruz, 1988, 1197-1198).

A opção das mulheres por ascenderem socialmente através da via ensino – já verificada no período anterior ao 25 de Abril de 1974 – continuou a manifestar-se. Na verdade, a julgar pela origem social dos professores, a profissão docente constituía “um importante factor da mobilidade social ascendente”, sendo a origem social mais referida a das classes trabalhadoras e diminuta a referência às classes médias59 (Cruz, 1988, 1203). Ainda assim, a profissão docente parece também constituir um facto de confirmação de status para as classes medias (Cruz, 1988, 1205).

O facto de os professores percepcionarem a docência como instrumento de mobilidade social ascendente não invalida que a maioria (63%) tenha referido a vocação como a principal razão da sua escolha profissional. Foram, no entanto, os elementos do sexo feminino a referir mais esta razão, ao contrário dos professores homens que afirmavam, em maior percentagem, ter ingressado na profissão por ausência de outras alternativas (cf Cruz, 1988, 1207-1209). Não quer isso dizer, porém, que a esta vocação estivesse forçosamente associado o “sentido de missão e dedicação às crianças” que o Estado Novo tanto difundiu na representação da imagem desta profissão. Embora significativas, as percentagens de professores que escolheram o seu nível de ensino, qualquer que ele seja, em função dos seus educandos, não se aproximavam dos 63% que indicaram a vocação como a principal razão da sua escolha profissional (cf. Cruz, 1988, p.1210.1211).

Por outro lado, mais de 35% declararam que abandonariam a actividade docente se tivessem oportunidade, (Cruz, 1988, p.1224) o que é sintomático da insatisfação destes profissionais com a sua situação na profissão. A “remuneração” é a razão mais indicada para justificar este desejo, logo seguida pela “degradação da carreira” e pela “falta de estímulo” (Cruz, 1988, p.1226). A procura pela dignificação da carreira e por melhores condições de trabalho e remuneração parecem, assim, acompanhar a história da construção e afirmação da profissão professor. É, aliás, em nome da defesa dos seus interesses profissionais que cerca de 45% dos professores do ensino não-superior se encontra sindicalizada (Cruz, 1988, p.1272). A acção dos sindicatos terá contribuído para que as remunerações dos professores tenham

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Nos estudos recentemente realizados sobre a composição sócio-profissional da população estudantil universitária que frequenta as licenciaturas via ensino, verifica-se igualmente que a maioria é oriunda das fracções de classe menos favorecidas, ao contrário do que sucede, por exemplo, com os estudantes de medicina, medicina dentária e farmácia (Almeida e Vieira, 2006b).

sofrido uma evolução real positiva, bastante significativa para alguns, entre 1985-1988 (Cruz, 1988, p.1293). Mas nem por isso o “mal-estar” dos professores terá diminuído. Como veremos, o acréscimo constante de funções a que estes profissionais foram sujeitos nas últimas décadas será fortemente responsável por esta situação.

Saliente-se, porém, que a esta amplificação do papel social dos docentes e da escola corresponde a um processo de revalorização da actividade docente nem sempre devidamente reconhecido. Com efeito, esta só será realizada porque o Estado vai conseguindo – muito lentamente, é certo – atingir o propósito de escolarizar todos os cidadãos. Todavia, à medida que isto sucede, reproduzem-se os discursos sobre a «crise da escola» como se na escola “mítica” do passado todos os professores vivenciassem com muita satisfação a sua actividade e só nela estes verdadeiramente ensinassem e os alunos realmente aprendessem (Almeida e Vieira, 2006a, p.72-80). A este propósito, Almeida e Vieira salientam bem como tem sido sempre na “reivindicação de «mais escola» que está a chave para a solução do «problema» da alegada «crise» da escola” (Almeida e Vieira, 2006a, p.73).

Após a Revolução do 25 de Abril de 1974, sob o desígnio da igualdade e da justiça social e com vista à integração de todos na mesma escola, o Estado unifica o 3º ciclo, terminando com a divisão entre liceus e escolas técnicas, tida como socialmente selectiva (sublinhados das autoras, Almeida e Vieira, 2006a, p.66). Promove ainda a gestão democrática dos estabelecimentos de ensino – autonomizada da sua tutela – e a expansão efectiva de uma rede regional pública de ensino superior (Almeida e Vieira, 2006 a, p.66). Em 1986, com a promulgação da Lei de Bases do Sistema Educativo, a escolaridade obrigatória é elevada para nove anos, sendo, contudo, somente em meados de década de 90 que se farão sentir os seus efeitos práticos (Almeida e Vieira, 2006a, p.66).

Não obstante o histórico atraso na expansão do sistema educativo nacional no contexto de “modernidade inacabada” (Machado e Costa, 1998) em que Portugal se encontra, o ensino obrigatório encontra-se finalmente massificado no início do século XXI. Os dados do Ministério da Educação (2002a) são elucidativos a este respeito: se em 1991, 8,1% de alunos com idades compreendidas entre os 6 e os 15 anos, abandonaram a escola antes de completar o 9º ano de escolaridade, em 2001 esta percentagem já só era de 1,7%.

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