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2 AMERICANOS QUEM SÃO OS AMERICANOS?

2.2 A dança e o Partido Comunista

Comício do Partido Comunista no Madison Square Garden (1931).

A dança política ganhou força entre os trabalhadores a partir da segunda metade da década de 1920 e, portanto, na mesma época em que os pioneiros da dança moderna estavam chegando à cidade de Nova Iorque. Edith Segal, filha de imigrantes judeus russos, nascida e criada no Lower East Side, foi uma das primeiras artistas da dança a produzir coreografias para o Partido Comunista. Em 1924, ela estava em Chicago quando soube da morte de Lenin48. Ela então convenceu os

48 No mesmo ano, a famosa bailarina clássica Anna Pavlova liberou entrada gratuita para

dirigentes do PC que seria interessante incluir uma dança na cerimônia preparada para homenagear o líder revolucionário. Não sabemos de muitos detalhes sobre a apresentação, que ocorreu no Ashland Auditorium, mas alguns dos recursos formais documentados já indicam o tipo de simbolismo utilizado pela coreógrafa. Segundo consta, o solo era dividido em duas partes. Na primeira, ao som da marcha fúnebre de Chopin, Segal dançava envolta por um manto negro, buscando representar o luto pelo líder morto. Na segunda parte, ela retirava o véu negro e dançava com uma túnica vermelha ao som da Internacional, lembrando a todos que a luta por justiça social precisava continuar (PRICKETT, 1990).

Esse foi o início de uma longa colaboração entre Segal e o PC. De volta à cidade de Nova Iorque, ela começou a ensinar dança para crianças e adultos da classe trabalhadora, com intuito de promover entre eles consciência de classe e preparar apresentações para os encontros e comemorações políticas. Ela treinava diversos grupos de imigrantes e trabalhadores usando propostas simples, como correr, andar, balançar e saltar, para que eles experimentassem o movimento coletivo. Em 1928, por exemplo, dez anos antes de Graham criar Documento Americano, Segal criou as coreografias para um grande espetáculo (pageant) do PC produzido no

Madison Square Garden pelo grupo New Playwrights Theatre, com direção de Edward

Massey. Esse grupo de teatro havia surgido a partir do Workers’ Drama League, que trabalhava com as propostas políticas do encenador e diretor alemão Erwin Piscator. Entre os fundadores do New Playwrights Theatre estavam Mike Gold, John Howard Lawson e John dos Passos49. Para se ter uma ideia do tamanho do evento, basta saber que, na época, o Madison Square Garden tinha algo em torno de 18 mil lugares. O pageant era dividido em sete episódios que contavam, cronologicamente, a história da Rússia. GRAFF (1999), em seu livro Stepping Left50, conta que o texto da peça foi escrito pelo poeta Adolf Wolf, a música foi composta por integrantes da Sociedade Filarmônica de Nova Iorque e pelo coro do Singing Society of Freiheit, formado por 200 vozes e organizado pelo jornal comunista iídiche51. Na cena final, o grupo de

49 Mike Gold foi um escritor e crítico literário importante, editor da revista New Masses e

responsável por uma coluna no jornal Daily Worker. John Howard Lawson foi um dramaturgo e roteirista também ligado ao PC. John dos Passos foi um importante romancista, autor de Manhattan Transfer e da Trilogia U.S.A.

50 Uma tradução aproximada de Stepping Left seria ‘Dando um Passo para a Esquerda’. 51 O nome Singing Society of Freiheit, parte em inglês, parte em alemão, significa

bailarinos amadores organizado por Segal, a maioria membros do ARTEF, formavam uma foice e um martelo, dando corpo ao símbolo máximo do comunismo.

Os pageants eram espetáculos que envolviam pessoas comuns em performances que representavam o seu passado histórico. Eles ganharam força nos EUA na segunda metade do século XIX e viraram moda nas primeiras décadas do século XX. Entretanto, o tom original da maioria desses espetáculos era apaziguador, pois eles omitiam qualquer tipo de conflito histórico. Na década de 1910, há uma interessante mudança de sinal nesse tipo de produção. Segundo a professora Iná Camargo COSTA (2001), um marco importante foi o enorme Paterson Pageant, organizado pela Industrial Workers of the World (IWW) no Madison Square Garden em 1913 para divulgar e dar apoio financeiro a uma longa greve de tecelões que estava ocorrendo naquele momento52. O público do evento foi estimado em quinze mil pessoas. Só o elenco, que incluía inclusive os próprios grevistas, contava com aproximadamente mil pessoas. Com a participação de importantes representantes da esquerda radical, o espetáculo conseguiu chamar a atenção da imprensa para a greve e a dos artistas mais progressistas para as possibilidades condensadas nesse tipo de produção cênica. Costa ressalta, entretanto, que mesmo os críticos culturais mais consequentes da esquerda norte-americana têm dificuldade em perceber a continuidade entre essa experiência de 1913 e as produções culturais da década de 1930. Sabemos que durante o período da Primeira Guerra Mundial, o governo norte- americano instaurou uma perseguição violenta ao movimento operário, que ficou conhecida como o Red Scare (ameaça vermelha). Mesmo assim, a própria continuidade do uso dessa forma de espetáculos pela esquerda e pelo PC já indica que o Paterson Pageant deu início a algo que só pôde florescer em toda a sua potência durante a Depressão.

No final dos anos 1920, a inclusão do movimento do corpo coletivo nos espetáculos do partido parece ter agradado tanto ao público quanto às lideranças políticas. Em 1930, para o Memorial de Lênin também produzido no Madison Square

52 Outro evento importante promovido em 1913 em Nova Iorque pelas mesmas pessoas que

produziram o Paterson Pageant foi o Armory Show, uma grande exposição de obras modernistas das vanguardas europeias e norte-americanas.

Garden, Segal criou as coreografias para o pageant The Belt Goes Red53, dirigido por Emro Basshe, também do New Playwrights Theatre. O elenco de The Belt Goes Red contava com a participação de doze grupos de teatro do Workers Dramatic

Council, do Worker’s Laboratory Theatre54, do Workers’ Dance Group, do Labor Sports

Union, além dos cantores e músicos do Workers’ International Relief Chorus and Brass Band, do Singing Society of Freiheit e da companhia de Segal, os Red Dancers. Na

coreografia, os trabalhadores de uma linha de montagem se rebelavam e envolviam a esteira de produção com um enorme tecido vermelho, simbolizando ao mesmo tempo a tomada dos meios de produção pelos trabalhadores e o apoio do PC à classe operária (PRICKETT, 1990; GRAFF, 1999).

Esses pageants, cujas produções envolviam um número imenso de participantes, tinham grande força política. Sua estrutura básica, com a divisão em episódios que apresentavam diferentes momentos históricos e terminavam discutindo o momento social contemporâneo, foi reaproveitada ou retrabalhada tanto pelo teatro quanto pela dança. Um exemplo simples, que nos interessa: as duas últimas partes de The Belt Goes Red eram intituladas Carry on!55 e 1928. Ora, o último episódio de American Document se chamava Hold Your Hold!56 e começava com o interlocutor indicando o ano da apresentação. Além disso, podemos destacar outras semelhanças estruturais entre a obra de Graham e esse espetáculo: enquanto o pageant contava a história da Rússia, American Document apresentava a história dos Estados Unidos; ambos eram divididos em episódios que narravam eventos históricos marcantes; em ambos a dança e o texto criavam um diálogo cênico; e, por fim, os dois espetáculos terminavam com uma reflexão sobre o momento histórico da produção do espetáculo e conclamavam o público, por meio do apelo à emoção, a continuar a luta por um mundo mais justo.

53 Podemos traduzir The Belt Goes Red como O Cinto fica Vermelho, porém, é importante

notar que a tradução oculta a ambiguidade da palavra belt, que além de cinto, pode também significar esteira, como as encontradas nas linhas de produção das fábricas.

54 O Worker’s Laboratory Theatre foi um dos primeiros grupos de teatro operário de agitprop

da cidade a apresentar suas peças em inglês.

55 Em português: Continuem! 56 Em português: Segurem firme!

Publicação não identificada disponível no fundo Martha Graham do Arquivo da Biblioteca do Congresso.57

A questão dos conteúdos parece ter afetado a dança não só no âmbito mais partidário e militante, mas também nas experimentações do grupo de artistas mais ligados ao modernismo e à abstração. Graham, quando começou sua carreira de coreógrafa, ainda sob efeito da sua formação com Ruth St. Denis, criava danças com nomes que evocavam o exótico e o estrangeiro como The Flute of Krishna (1926) ou Tunisia (1927)58. Aos poucos, entretanto, questões do mundo contemporâneo norte- americano foram aparecendo como temas das novas danças. Já em 1927, Graham coreografou um solo chamado Revolt e no ano seguinte criou uma dança em duas partes intitulada Immigrant: Steerage, Strike59. Não por acaso, Revolt e Strike eram também títulos de dois dos episódios de The Belt Goes Red. Não queremos sugerir aqui que Segal ou o Emro Basshe copiaram Graham ou vice-versa. Queremos apenas demostrar que as formas e os temas da arte não são criações individuais, mas produtos de um tempo histórico, que incorporam formas das estruturas sociais, dos seus conflitos internos e dos desejos que esses conflitos produzem.

57 O texto diz: “Martha Graham, em uma dança para a música moderna de Honegger,

captou o espírito da revolta que move o mundo atual em todos os aspectos da vida”.

58 Em português: A Flauta de Krishnae Tunísia.

59 Em português: Imigrante: Terceira Classe, Greve. A tradução, entretanto, esvazia as

ambiguidades. Steerage pode significar direção de um barco, mas também pode designar a terceira classe de um navio. Strike pode significar greve ou pancada.