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Coristas no Radio City Hall de Nova Iorque, no início dos anos 1940.

Os figurinos do balé, embora reveladores pelo modo como se agarram ao corpo (corpetes apertados, meias, saias curtas e tutus), contrastavam com a imagem de castidade que ainda ressoava no balé como uma espécie de volúpia camuflada. Os Music Halls eram mais diretos em seu apelo sexual e, sob a orientação de produtores do sexo masculino, a mulher se tornou uma mercadoria comercializável, um ligeiro nível acima ou mesmo em pé de igualdade com as prostitutas.

Holly E. CAVRELL, em Dando corpo à história (2015, p.87)

Nesse trabalho consideramos como dança moderna norte-americana um conjunto de práticas de treinamento corporal, pesquisa do movimento e composição coreográfica criados e difundidos por um grupo de artistas, críticos e produtores na cidade de Nova Iorque, durante o período que durou da metade dos anos 1920 até o final da década de 1930. Esse grupo de pessoas, notoriamente liderado por mulheres, incluia bailarinos, coreógrafos e professores de dança como Martha Graham, Doris Humphrey, Hanya Holm, Helen Tamiris, Charles Weidman, Martha Hill, Anna Sokolow, Jane Dudley e Sophie Maslow, mas também outros profissionais e críticos como o músico Louis Horst, o empresário Lincoln Kirstein e o crítico do The New York Times, John Martin.

O papel da crítica e dos críticos que atuavam em jornais e revistas da época divulgando, discutindo e participando ativamente desse movimento artístico não deve ser subestimado. Em uma série de quatro conferências proferidas entre 1931 e 1932 na New School for Social Research27, Martin, o primeiro crítico de dança do jornal The

27 A New School for Social Research foi fundada em 1919 por um grupo de professores

progressistas dissidentes da Columbia University, que incluía os historiadores Charles Beard e James Harvey Robinson, o economista e sociólogo Thorstein Veblen e o filósofo e

New York Times, buscou explicar para os seus ouvintes o que era a dança moderna.

Só o fato dessas conferências terem acontecido numa instituição dedicada à pesquisa social e terem sido publicadas em livro no ano seguinte já sinaliza que algo novo estava surgindo na arte da cena e que era preciso, se não definir, ao menos propor seus limites e horizontes. Tanto o texto de Martin como outros textos da época procuram explicar a nova dança indicando ou sugerindo o que essa dança não era. Dito de outra forma, o que esse grupo de artistas e críticos estavam propondo era uma dança do seu tempo, ligada às questões, formas e ritmos da vida contemporânea e, para defender essa ideia e ainda manter aberto o campo de experimentação era preciso demonstrar que o repertório de formas de dança da cena disponíveis à época estava antiquado ou, no mínimo, não dava conta de expressar as pulsões da vida social naquela cidade e naquele momento histórico.

Caricatura de Martha Graham ao lado da estrela burlesca Sally Rand produzido por Miguel Covarrubias para a revista feminina Vanity Fair (1934)28.

É importante reconhecer que a dança das coristas não apenas representava a eficiência do trabalho, mas constituía em si mesma a eficiência do trabalho na dança.29

Mark FRANKO, em The work of dance: labor, movement,

and identity in the 1930s (2002, p.30)

28 O artista, Miguel Covarrubias, foi um pintor, caricaturista, ilustrador, etnólogo e historiador

de arte mexicano. A proposta de suas ilustrações de ‘Entrevistas Impossíveis’ era retratar dois contemporâneos opostos em uma situação em que provavelmente nunca seriam

encontrados. No artigo satírico publicado na Vanity Fair de 1934, Martha Graham e a estrela burlesca Sally Rand se envolvem em uma ‘Entrevista Impossível’, onde as duas divas se enfrentam ao dividir o palco.

29No original: It is important to recognize that chorus dancing not only represents labor

Esse repertório que deveria ser superado incluía basicamente o balé de origem europeia, a chamada dança romântica da geração anterior e as produções de dança burlesca do teatro mais comercial da Broadway. Em seu livro sobre trabalho e dança, Mark FRANKO (2002) demostra como as linhas de coro características dos musicais e filmes da crescente indústria cultural norte-americana na década de 1930 não só representavam na cena o ritmo do trabalho industrial serializado, mas eram também um exemplo vivo do trabalho produzido por trabalhadoras alienadas. A objetificação do corpo feminino para a contemplação de um público masculino e a alienação do bailarino em relação ao seu trabalho iam totalmente contra o projeto das artistas da dança moderna, que acreditavam que o movimento nascia do impulso subjetivo e que, como agentes criadoras, não pretendiam se submeter aos desejos do sexo oposto. Por isso, era necessário estabelecer uma distinção clara.

Os teatros da Broadway ficavam disponíveis logo imediatamente após a performance do sábado à noite. O último show era desmontado e o novo montado em seguida. Então, lá pelas duas ou três da manhã, os bailarinos eram admitidos no palco para ensaiar. Eles ensaiavam até às quatro, retornavam às nove da manhã e permaneciam até a hora de as cortinas se abrirem.

Holly E. CAVRELL, em Dando corpo à história (2015, p.132)

Durante aquele período, a dança moderna era muitas vezes tratada como uma dança de concerto30. Essa denominação claramente buscava aproximar a dança moderna da música clássica e, portanto, do universo da chamada “arte elevada” ou do que Martin chamaria de “belas artes”. Essa aproximação, que hoje soa elitista, foi muito importante para que a dança moderna conquistasse respeito entre os críticos e pudesse ocupar certos espaços de trabalho. Em 1930, por exemplo, a coreógrafa Helen Tamiris comandou um movimento para conseguir autorização da prefeitura para usar os teatros de Nova Iorque aos domingos. Por lei, musicais e outras formas de entretenimento estavam proibidos no dia de descanso religioso. Por isso, a maior parte dos teatros da Broadway ficavam vazios e os preços de aluguel eram bem mais baratos. Como descrito por CAVRELL (2015), os artistas da dança moderna

costumavam alugar os teatros para se apresentar apenas aos domingos, mas às vezes, os fiscais da prefeitura impediam essas apresentações e, com o aumento do número de espetáculos, os conflitos foram ficando mais frequentes. Eventualmente, o grupo de artistas comandado por Tamiris conseguiu convencer as autoridades de que a dança moderna era uma arte de respeito e acabou conseguindo permissão para realizar os seus “concertos” e apresentar as suas “composições” aos domingos nos teatros da cidade.